[135] Drogas: legalizar é mais TRADICIONAL que proibir

A Estrela da Redenção
5 min readJun 28, 2021

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Em um dos primeiros textos desse blog, o “[12] Razões TRADICIONAIS para pautas PROGRESSISTAS?”, expliquei como muito do que se entende hoje por uma defesa da ‘postura tradicional’ na verdade não é tradicional de verdade.

Então, tal como no caso do ‘literalista bíblico’ do sentido que NÃO é o literal, temos também o ‘tradicionalista’ da posição que NÃO é a tradicional. O literalista achava que o sentido literal de certos textos seja um que na verdade não é o literal. Já esse tradicionalista acha que certa posição (social, política, religiosa) é a tradicional quando na verdade o tradicional era muito diferente disso.

Já G. K. Chesterton (que muitos dos ditos tradicionalistas gostam de citar) nos avisava dessa tendência dos tempos modernos:

“O inteiro mundo moderno dividiu a si mesmo em conservadores e progressistas. O negócio dos progressistas é ir fazer os erros. O negócio dos conservadores é impedir que os erros sejam corrigidos. Mesmo quando logo o revolucionário ele mesmo poderia se arrepender de sua revolução, o tradicionalista já a está defendendo como parte de sua tradição. Então nós temos dois grandes tipos: a pessoa avançada que nos lança em direção à ruína e a pessoa retrospectiva que admira as ruínas. Ele as admira especialmente à luz da lua, para não dizer ao luar. Cada novo erro do progressista torna-se instantaneamente uma lenda de antiguidade imemorial para o esnobe. Isso é chamado de equilíbrio, ou mútuo cheque, em nossa Constituição.” (CHESTERTON, Illustrated London News, 1924, tradução livre)

Uma ilustração perfeita desse fenômeno ocorre na controvérsia política a respeito das drogas.

Os tradicionalistas e conservadores defendem que as drogas continuem criminalizadas e proibidas, enquanto os progressistas e liberais defendem que as drogas deveriam ser legalizadas e permitidas.

Muitos tradicionalistas e conservadores chegam mesmo a pensar que a legalização das drogas faz parte de um plot contra a civilização ocidental, como se acreditassem que durante quase 2.000 anos (desde a disseminação do cristianismo) as drogas sempre foram proibidas no Ocidente, mas agora os ‘esquerdistas’, no intuito de destruir o Ocidente, militam para que elas sejam liberadas.

O problema é que isso é patentemente falso e absurdo. A proibição às drogas é LITERALMENTE EXTREMAMENTE RECENTE. A chamada “guerra às drogas” começou na década de 60-70 em uma campanha global liderada pelos Estados Unidos. Ou seja, há pouco tempo que fez aniversário de…. 50 anos!

Para termos uma ideia melhor disso, o primeiro tratado internacional versando sobre drogas, a Convenção Internacional do Ópio (assinado em 1912, mas entrando em efeito apenas em 1915–1919) apenas limitava a exportação de ópio, cocaína e cannabis, não criminalizando seu uso ou cultivo. Em 1937, os Estados Unidos mesmo passou uma lei taxando a maconha (“Marihuana Tax Act of 1937”). No século XIX, o Reino Unido chegou a entrar em guerra com a China para forçá-la a permitir o livre comércio de ópio! (As famosas guerras do Ópio, a 1ª em 1839–1842 e a 2ª em 1856–1860)

“The Caterpillar using a hookah” [A Lagarta Usando um Narguilé], ilustração por John Tenniel para a 1ª edição de “Alice no País das Maravilhas” (1865), colorizada. Nessa cena do livro, fica ambíguo o que a lagarta encontrada por Alice estava fumando: se tabaco ou ópio. Em todo caso, a figura atesta o quanto as atitudes sociais em relação às drogas (e seu uso perto de crianças) mudaram desde 1865.

Se formos para as fontes clássicas da religião na cultura ocidental, também ali não encontramos nenhum traço de proibicionismo em relação às drogas. Nem na Bíblia Hebraica (compartilhada entre judeus e cristãos) nem no Novo Testamento (exclusivamente dos cristãos), você não encontra nenhum preceito proibitivo em relação ao uso de drogas. Você encontra alertas quanto ao abuso de drogas, por exemplo, em relação à alcoolização excessiva, mas nada como uma proibição. E não há nenhum traço de sugestão mesmo que mínima de que o Estado devesse proibir as pessoas de usarem drogas. Então, claramente, a Bíblia NUNCA determinou tal coisa.

Então, como foi que as pessoas vieram a achar que a Bíblia ou o cristianismo (ou mesmo o judaísmo) teria algo a ver com proibir ou não as drogas? A raiz disso pode ser encontrada em desenvolvimentos religiosos e políticos especificamente dos Estados Unidos.

Foi nesse solo que surgiram as variantes de cristianismo protestante/evangélico linha dura contra drogas, incluindo contra o álcool, ao longo do século XIX (ou seja, após o advento da modernidade).

A origem dessa tendência foram os Grandes Reavivamentos da América do Norte, mais especificamente o Segundo (1790–1840) e o Terceiro (1855–1930). Então, foram as igrejas e/ou as tendências teológicas de caráter evangélico reavivalista RECÉM-NASCIDAS que embarcaram nesse caminho, enquanto os braços cristãos MAIS TRADICIONAIS se opuseram ao proibicionismo (exemplos: Igreja Católica, Episcopal e maioria das Luteranas).

A organização política em torno do proibicionismo se deu pelos movimentos de temperança, advogando a abstenção voluntária ou obrigatória do álcool e outras drogas, com base em argumentos religiosos e políticos. Mas note: a defesa dessa bandeira era uma postura altamente reformadora da sociedade e da cultura existentes, tanto que progressistas da época (como as sufragistas, em defesa do sufrágio feminino) se aliaram à causa da temperança.

A grande vitória desse movimento foi a 18ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que introduziu uma proibição nacional à produção, consumo e comercialização das bebidas alcoólicas. Referida proibição valeu de 1920 até 1933.

Então, o cristianismo linha-dura contra o álcool e as drogas de maneira geral é um desenvolvimento religioso recente, fruto dos Grandes Reavivamentos na América do Norte após a Revolução Industrial, e que moldou ostensivamente as políticas de Estado apenas no século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial com a expansão da influência cultural e política dos Estados Unidos no cenário internacional.

Uma vez formado esse desenvolvimento teológico-cultural, os aderentes dessas posições acabam reprojetando o proibicionismo para dentro dos textos sagrados milenares e da história religiosa ocidental mesmo que não haja nenhum embasamento histórico nisso. E como essas igrejas crescem por meio de evangelização ativa (e mesmo agressiva), mais e mais pessoas vão sendo formadas sob tal visão recente fazendo com que ela PAREÇA a visão tradicional (e mesmo bíblica) mesmo que ela NÃO SEJA. O fato de muitas pessoas nas últimas décadas já terem nascido com tais legislações altamente restritivas estando em vigor também acaba reforçando essa impressão no público em geral.

Portanto, ironicamente, a posição MAIS TRADICIONAL na questão política e jurídica envolvendo as drogas é ser a favor de sua legalização/permissão, e contra a sua proibição/criminalização. Se é a posição mais correta ou não é algo que pode ser debatido, mas com certeza não é anti-tradicional como os ditos tradicionalistas propagam falsamente por aí.

Observação: note que estou falando aqui do tradicional em se tratando da história cristã e da história judaica, que são as fontes religiosas mais relevantes no contexto ocidental e do nosso país, uma vez que em outras tradições religiosas isso pode ocorrer de forma diferente (por exemplo, o Islã contém uma proibição tradicional ao álcool, enquanto eu não possa afirmar com segurança aqui qual foi sua extensão concreta ao longo da história islâmica). No caso do nosso país, historicamente também seria relevante examinar a religiosidade nativa-indígena e a religiosidade afro-brasileira, mas até onde eu sei ninguém reivindica que tais tradições religiosas fossem proibicionistas.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.