[136] O Povo Judeu é MULTIÉTNICO e MULTIRRACIAL

A Estrela da Redenção
7 min readJun 28, 2021

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“E o remanescente de Jacó estará no meio de muitos povos, como orvalho da parte do Senhor, como chuvisco sobre a erva.” (Miquéias 5:7)

Um mal entendido comum a respeito do judaísmo — nem sempre explicitado, mas muitas vezes implícito em certos discursos que vemos por aí — é que ele se basearia em algum tipo de “pureza de sangue”, de caráter étnico ou racial.

Essa confusão deriva do fato de que a determinação padrão de quem é judeu desde a antiguidade é puramente genealógica, seja matrilinear, patrilinear ou ambas (a depender do período histórico e da comunidade). Nenhum rito é necessário, nem mesmo a circuncisão no caso masculino: ser judeu é uma herança genealógica. Uma vez que uma pessoa não-judia torna-se judia por conversão, seus descendentes automaticamente serão judeus, por herdarem o vínculo com a Aliança que formou o povo judeu (na tradição clássica herdado via transmissão matrilinear, por ser filho de mãe judia).

O aspecto genealógico é uma faceta importante do judaísmo, contudo, isso não tem nada a ver com pureza racial ou étnica. Um dos motivos que mais deixa isso claro é que o povo judeu nem sequer forma uma única etnia ou raça sob NENHUM critério usado para determinar tais categorias.

No começo de tudo, como vemos na Bíblia Hebraica, o povo judeu era um pequeno povo na região do Crescente Fértil, cuja terra localizava-se exatamente no meio dessa região. Ou seja, um intenso intercâmbio cultural ocorria ali, inclusive genético.

A própria tradição judaica (Avodah Zarah 36b) debate quando exatamente a proibição de casamento e de relação sexuais com não-judeus teria sido instituída na Lei Judaica, o que reflete o fato de que nem sempre houve um preceito proibitivo concernente a isso (o original referia-se exclusivamente aos povos caananitas). E em todo caso, a conversão de não-judeus nada mais era do que imigrar para a terra de Israel e juntar-se à comunidade judaica e sua Aliança (como vemos no livro de Rute).

Contudo, a história não parou ali, onde ainda poderia se dizer que houvesse um grau alto de homogeneização genética e étnica. Desde o exílio babilônico, iniciado em 597 AEC, houve dispersos judeus em ao longo da Babilônia, do Egito e da Pérsia. Mesmo com a permissão de retorno dos exilados a partir de 539 AEC, muitas comunidades permaneceram fora da terra de Israel. E mesmo na terra de Israel, o aramaico tornou-se muito comum, enquanto o hebraico ainda fosse usado.

Então, aos tempos do Império Romano, os judeus já encontravam-se espalhados por todo o Império, mesmo antes da expulsão dos judeus da Palestina após a derrota na Guerra Judaica (134 EC) e, segundo algumas estimativas, representavam cerca de 10% da população do Império!

E com o já citado desfecho da Guerra Judaica, veio a perda definitiva de autonomia política judaica na terra prometida (a qual só veio a ser recuperada em 1947 com a fundação do Estado de Israel), significando que o povo judeu não mais teria um centro territorial privilegiado. O exílio e a diáspora tornaram-se a condição normativa de uma civilização letrada agora inteiramente portátil, cuja persistência não mais dependia de ter uma terra própria.

Indo agora mais para frente na história, na Idade Média o hebraico parou completamente de ser usado no cotidiano, tornando-se uma linguagem litúrgica e de estudo (pela Bíblia Hebraica e pela Mishná estarem escritas e serem lidas em hebraico). A Guemará do Talmude já foi escrita em aramaico, língua muito importante para os judeus de Babilônia. Depois disso muitas novas línguas judias apareceram, geralmente tomando por base um dialeto local, mas misturando com o hebraico e o aramaico, inclusive por utilizar o alfabeto hebraico para escrevê-lo.

No que podemos denominar de “centro da Diáspora”, as divisões linguísticas geradas nesses termos refletiram as divisões étnicas mais amplas que até hoje perduraram: a tríplice divisão entre judeus sefarditas (sefaradim), judeus askhenazi (askhenazim) e judeus mizrahi.

Todos esses braços vindos diretamente daquele núcleo original que outrora habitara no Levante, como atesta toda a evidência histórica, arqueológica, linguística, etc. e também a genética, essa última podendo ser encontrada no artigo “Abraham’s Children in the Genome Era: Major Jewish Diaspora Populations Comprise Distinct Genetic Clusters with Shared Middle Eastern Ancestry” (2010).

Os sefarditas são os judeus que tradicionalmente viveram na Península Ibérica e no Norte da África, os askhenazi tradicionalmente viveram na Europa Central e Oriental, e os mizrahi tradicionalmente viveram no Oriente Médio e no Norte da África.

Aos primeiros associamos o ladino (espanhol medieval com hebraico), aos segundos o ídiche (alemão medieval com hebraico) e aos terceiros o judeu-árabe (árabe com hebraico).

Mas outras línguas menores também existiram dentro dessas comunidades. Por exemplo, a hakitía dos judeus marroquinos (que entrariam como um subgrupo sefardita, ou na fronteira entre sefardita e mizrahi, considerando que também há uma divisão entre os judeus marroquinos, em relação aos que vieram expulsos de Espanha/Portugal e os que já viviam ali antes dessa expulsão).

A hakitía é um caso de estudo bem interessante da dispersão judaica, porque mistura o espanhol, o português, o hebraico e o árabe, justamente pelo Marrocos ter estado na fronteira entre o mundo sefardita do Ladino e o mundo mizrahi do judeu-árabe. Com a vinda de judeus marroquinos para a Amazônia a partir do início do século XIX, hoje em dia Belém do Pará é um dos poucos lugares do mundo onde ainda podemos encontrar falantes de hakitía! (Confira o acervo da revista Amazônia Judaica)

Mas a coisa toda não para por aí. Eu falei que essas três grandes etnias judaicas são as do Centro do processo diaspórico. Ainda temos de considerar a sua periferia…

O que chamo de periferia aqui são aquelas comunidades judaicas que ficaram mais isoladas por conta de ficarem nas extremidades do centro geográfico principal de dispersão judaica (europa, norte da áfrica e oriente médio). Isso tornou seu contato com a cultura judaica rabínica do Centro da Diáspora mais difícil (p. ex. o caso dos judeus iemenitas) ou mesmo impossível (p. ex. o caso dos judeus etíopes, de que falarei abaixo).

Nessa categoria entra a quarta maior etnia judaica, o Beta Israel, formado pelos judeus etíopes. A história dos judeus etíopes foi muito peculiar, incluindo mesmo a formação de um Reino Judaico na Etiópia que conseguiu derrotar o Reinado Cristão que perseguia os judeus ali! E sim, os judeus etíopes são judeus de pele negra, como a das populações subsaarianas em geral.

Outras comunidades judaicas periféricas foram as que se estabeleceram na Índia (p. ex. o Bene Israel na região de Kerala) e na China (p. ex. os judeus de Kaifeng). Se você olhar um judeu de Kaifeng, verá que ele de fato parece fisicamente com outras etnias chinesas. E isso não o torna menos judeu por isso. Hoje em dia poucos remanescentes dessas comunidades permaneceram no subcontinente indiano e no extremo oriente, mas outrora já foram comunidades bem expressivas.

Outro caso curioso foi a conversão do Reino da Khazaria ao judaísmo. Aparentemente, no meio da Idade Média, houve uma conversão em massa na Khazaria (que ficava localizada nas estepes do Cáucaso), promovida por um de seus Reis. Isso inspirou o judeu sefardita Judá HaLevi a escrever um livro chamado “Kuzari”, onde retrata imaginativamente o debate promovido pelo Rei da Khazaria que acabou culminando em sua conversão ao judaísmo. O debate fora promovido entre um representante do cristianismo, um do islamismo, um do judaísmo e um da filosofia. Mas essa linhagem periférica não persistiu até o fim da Idade Média.

Por fim, ainda temos os dissidentes do próprio Centro da Diaspóra. Já desde a Bíblia Hebraica, tivemos a divisão entre judeus e samaritanos, ou entre israelitas judeus e israelitas samaritanos. Os samaritanos continuaram a existir em todo esse percurso histórico, preservando suas próprias tradições e mantendo-se ainda mais insular. E na Idade Média, surgiram os judeus karaitas, que rejeitaram a autoridade da tradição oral rabínica, acabando por desenvolver comunidades próprias separadas com diferentes tradições.

Um mapa que tenta resumir tudo isso (mas deixando de fora samaritanos e karaítas), e que foca nas diferentes linguagens produzidas no processo diaspórico judaico, pode ser visto abaixo:

Mapa apresentando as divisões étnico-linguísticas judaicas ao redor do ano 1100. Fonte. (Obs: não posso garantir que esse mapa seja totalmente acurado, mas ele é útil para ter uma ideia da diversidade étnico-linguística e das localizações geográficas correspondentes)

O próximo mapa retrata também onde esses grupos étnicos judaicos distintos estão vivendo hoje:

Mapa apresentando a localização atual dos principais grupos étnicos judaicos. Fonte.

Dessa forma, torna-se claro que o povo judeu na verdade é MULTIÉTNICO e MULTIRRACIAL, composto por brancos, negros, orientais, africanos, europeus, asiáticos, etc. etc. ao longo de TODA a sua história.

Essas diferentes composições étnicas são JUDIAS e ao mesmo tempo têm o seu traço étnico local: a etnia askhenazi é uma etnia judia E europeia-oriental/europeia-central, a etnia sefardita é uma etnia judia E ibérica/norte-africana, a etnia etíope é uma etnia judia E etíope (e por extensão, africana subsaariana), a etnia de Kaifeng é uma etnia judia E chinesa, e assim por diante.

Isso sem contar que dentro desses grupos maiores foram também recebidos convertidos mesmo que sem nenhuma relação com tais agrupamentos étnicos históricos. E que atualmente na terra de Israel está em curso um processo de miscigenação entre esses diversos grupos étnicos judaicos (dado o retorno de judeus de diversas regiões do mundo para lá sob os auspícios do Estado de Israel).

Nesse sentido, gosto bastante da perspectiva apresentada pela Rabina Angela Buchdahl, em sua prédica denominada “We Jews are not a Race, We Are Family: Rethinking Race in the Jewish Community”, para o Yom Kippur de 5781/2020 (ano judaico/ano secular).

Essa rabina comenta como muitas vezes as pessoas se mostram céticas quando ela se afirma judia, apenas por ter traços físicos característicos do Extremo Oriente (por ter ancestralidade dessa região).

Nessa prédica ela argumenta decisivamente no sentido de que deveríamos parar de pensar no Povo Judeu como uma raça, para passar a vê-lo como uma FAMÍLIA.

Como parecerá a grande família judaica estendida daqui há 1.000 anos? 2.000 anos? 10.000 anos? 1.000.000 de anos? Só o tempo nos dirá.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.