[158] Os Messias na Bíblia Hebraica: conclusões

A Estrela da Redenção
17 min readAug 19, 2021

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Fiz 10 posts a respeito da questão messiânica no contexto judaico, o 1º falando da esperança messiânica tradicional no judaísmo rabínico, e os outros 9 falando a respeito de como o imaginário messiânico aparece ou não nas diferentes porções da Bíblia Hebraica, fazendo ainda algumas remissões a como esses elementos da Bíblia Hebraica se conectam ao modelo messiânico plural da tradição judaica oral rabínica.

O objetivo do presente post será sumarizar os resultados encontrados nesses 10 posts anteriores, de maneira a dar um panorama geral da questão messiânica na Bíblia Hebraica (e de sua conexão ao modelo judaico tradicional pós-bíblico).

O caráter mais distintivo da esperança messiânica no judaísmo é o seu modelo plural, admitindo múltiplas figuras messiânicas, incluindo aspirantes messiânicos em cada geração. Há pelo menos 4 figuras abordadas na tradição judaica oral: Messias filho de Davi, Messias filho de José, Sacerdote messiânico e o Profeta Elias. As 4 figuras correspondem a 4 cargos: o Rei/Cabeça de Judá (e do Israel Unificado), o Rei/Cabeça de Efraim (e Vice-Rei do Israel Unificado), o Sumo-Sacerdote do Templo Reconstruído, o Profeta da Corte. Isto é, 2 cargos dinásticos, 1 cargo sacerdotal e 1 cargo profético. Além disso, o sanhedrin, o povo judeu inteiro e o próprio Deus ocupam diferentes papéis nessa trama messiânica. Que haja uma Era Messiânica é mais relevante que qualquer figura específica. ([149])

Outro aspecto importante da esperança messiânica no judaísmo é que a redenção humana não é pensada de forma “espiritualizada”, mas sim em termos concretos: a paz mundial, o fim da opressão sociopolítica, o conforto daqueles que sofrem, a restauração de Israel, o fim do exílio judaico, o fim da fome e da pobreza, a cura das doenças, a realização da justiça no seu sentido mais pleno para todos, a destruição dos opressores, a exaltação dos oprimidos etc. Dessa forma, é uma esperança terrena, material, ‘carnal’, sociopolítica, ‘corporificada’. ([149])

Ilustração para “Der Jüdische Mai” (Maio Judaico), E.M. Lilien, in: Morris Rosenfeld’s Lieder des Ghetto, 1902. Aqui mostra-se muito bem como a esperança messiânica no contexto judaico é acima de tudo uma esperança por redenção sociopolítica, das cadeias de opressão que hoje nos limitam e constrangem.

O modelo judaico, pautado na pluralidade de papéis messiânicos por diferentes pessoas e no caráter sociopolítico e material da redenção, é apoiado pelas fontes das Escrituras Hebraicas, cujos elementos foram retrabalhados pela tradição judaica oral em um desenvolvimento bem orgânico.

A Torá não apresenta esperança messiânica, mas fornece alguns dos elementos que irão alimentar esse imaginário posteriormente: 1) a preponderância relativa de Judá e Efraim sobre as demais tribos; 2) o sacerdócio como distinto da liderança civil-político-militar do povo; 3) o surgimento de profetas dentre o povo; 4) o sistema de juízes como a instância mais básica do auto-governo judaico; 5) a temática do exílio e do retorno. E tudo isso sob o fio condutor de que Deus é o Redentor de Israel — não algum humano em específico. ([150])

Os livros históricos dos Profetas Anteriores, também conhecidos como História Deuteronomista, dentro dos Neviim/Profetas, não apresentam esperança messiânica, mas apresentam um modelo protomessiânico identificando certas pessoas da história ali relatada como reis ou profetas ‘prometidos’. ([151])

No caso dinástico, o Rei Josias é o rei vindouro prometido no livro de Reis, e ele de fato satisfaz a profecia, contudo, o Messias acaba morto pelo Faraó egípcio e o exílio babilônico ocorre no governo de seus sucessores. No caso profético, é provável que figuras como Samuel (mais ligado à tradição davídica) e Elias/Elizeu (mais ligados à tradição efraimita) sejam vistos como Grandes Profetas, destacando-se por seu impacto intergeracional, mas em cada geração surgem profetas legítimos, nos moldes previstos pelo livro de Deuteronômio da Torá. ([151])

Nos Profetas Anteriores/História Deuteronomista, mais especificamente livros de Samuel e dos Reis, aparecem duas tradições que mudam a história judaica para sempre. A tradição da aliança de Davi com o Deus de Israel, pela qual a família de Davi seria agraciada com um direito dinástico perpétuo. E a tradição da escolha de Sião (Jerusalém) para ser o lugar fixo para o Santuário portador da Arca Sagrada. Apesar de favorecerem a dinastia davídica em Jerusalém que governou a Região Sul de Israel (sob preponderância da tribo de Judá), os Deuteronomistas reconhecem a legitimidade de algumas dinastias da Região Norte de Israel (sob preponderância da tribo de Efraim). Assim, é apenas no Deuteronomista que chegamos na tríade de cargos dinásticos, sacerdotais e proféticos, com o cargo dinástico distinto entre Norte e Sul após a morte de Salomão. ([151])

Os samaritanos há milênios rejeitam a vinda de algum rei messiânico justamente porque os samaritanos não aceitam os Neviim (e nem os Ketuvim), mantendo apenas a Torá, sob uma variante textual, a Torá Samaritana. ([152])

Os samaritanos, ligados à história do Israel do Norte, rejeitam todas as tradições ligadas à dinastia davídica e à Sião, bem como rejeitam que tenha havido uma contínua atividade profética legítima desde Moisés até o Profetismo Israelita Clássico. Eles não aceitam que houve sucessores proféticos para além de Josué (efraimita). E tudo isso é possível de defender aceitando exclusivamente a Torá, mas não seria possível caso fossem aceitas a História Deuteronomista ou os Profetas Literários. ([152])

Enquanto os judeus tradicionalmente aceitaram uma pluralidade de figuras messiânicas, com o Messias dinástico filho de Davi, o Messias dinástico filho de José, o Messias Sacerdotal e o Profeta Elias, os samaritanos tradicionalmente rejeitaram a vinda desses Messias, aceitando apenas a vinda do Taheb, o Profeta dos tempos do fim, com base em um trecho de Deuteronômio interpretado de forma mais restrita. ([152])

A temática do exílio e de seu retorno como fomentador da imaginação messiânica ocorre entre os judeus, mas não entre os samaritanos, por conta das diferentes experiências com exílio envolvendo os israelitas do norte versus do sul. Com isso o povo judeu há milênios se tornou uma comunidade global, espalhada em todos os continentes, composta por diferentes grupos étnicos e raciais, enquanto o povo samaritano continuou sendo majoritariamente uma comunidade siro-palestina do Levante. Os samaritanos, que não tiveram a experiência exílica judaica, continuaram apontando Sumo-Sacerdotes e vivendo próximo ao Monte Guerizim, então não há, para eles, a necessidade de um retorno messiânico dos exilados nem de um Sacerdote messiânico. Já os judeus, tendo enfrentando a experiência de uma contínua existência exílica e diaspórica ao redor do mundo e não tendo Sumo-Sacerdotes há quase 2.000 anos, tiveram muito mais motivo para imaginar um futuro retorno messiânico dos exilados e uma figura messiânica sacerdotal que terminasse essa interrupção do sacerdócio por ocasião da destruição do Segundo Templo e do exílio romano. ([152])

Os livros proféticos dos Profetas Literários, compostos por 3 Profetas maiores e 12 Profetas Menores, são a principal fonte do imaginário messiânico. O Profetismo Israelita Clássico começa no período já monárquico da história israelita, com a divisão entre 2 Reinos, o do Norte (Israel, sob preponderância da tribo de Efraim) e o do Sul (Judá, sob preponderância da tribo de mesmo nome, sob a dinastia ininterrupta de Davi, e contendo o Templo em Jerusalém). Sua extensão completa percorre séculos-chaves para a continuidade da civilização judaica, à época sob ameaça de extinção: um período que vai de 1) os 2 Reinos israelitas existindo em paralelo; 2) o Reino de Efraim ser destruído pelos assírios, sobrando apenas o de Judá; 3) o Reino de Judá ser destruído pelos babilônios e sofrer exílio, com o Templo também destruído; 4) o retorno de exilados do Reino de Judá, para reconstruir Jerusalém e o Templo, mas sem formar um reino autônomo, e sim uma província do Império Persa. Ou seja, é um período que vai do 8º ao 5º século AEC, começando por volta de 760 AEC, i. e. há 2.790 anos atrás. ([153])

O principal tema que perpassa todos os Profetas Literários é o “Dia de YHWH”: várias ocasiões nas quais o Deus de Israel traz seu juízo indignado contra diversas nações, por suas injustiças, e contra o povo de Israel, por suas injustiças e idolatria (em transgressão à Aliança), se as nações e Israel persistem em sua injustiça (e, no caso de Israel, na idolatria, uma vez que a rejeição desta era exigida apenas do povo escolhido). O resultado desse Julgamento dos Povos seria trazer redenção aos oprimidos, por quebrar as estruturas opressivas responsáveis pela opressão, geralmente um governo ou uma elite dominantes (ou seja, fala-se aqui de redenções no decurso da própria história, e não num ‘fim da história’, como é na apocalíptica; não se deve confundir o profetismo com a apocalíptica!). ([153])

Ao contrário da crença popular, os Profetas não são focados em prever o advento de uma única figura messiânica descendente de Davi. As visões proféticas a respeito de possíveis figuras messiânicas ou protomessiânicas são muito variadas, e eles enfatizam muito mais o advento de uma Era Messiânica do que uma pessoa específica. ([153])

Amós e Oséias, profetas que atuaram junto ao Reino do Norte antes de sua extinção, falam da dinastia de Davi favoravelmente, mas não esperam o advento de um descendente de Davi específico, e sim um retorno dos exilados nortistas se reconciliando com os israelitas do Sul. ([153])

A 1ª metade de Isaías entende o Ungido ou Messias prometido como sendo o Rei Ezequias, para evitar o exílio assírio dos israelitas do Sul. ([153])

Miquéias fala da redenção messiânica e espera um Rei davídico justo que poderia ser como Davi. ([153])

Naum e Jonas não falam de nenhuma figura messiânica em específico, e nem falam da dinastia de Davi. ([153])

Habacuque não fala de uma figura messiânica, mas menciona um ato libertador divino pelo qual Deus liberta o povo judeu e seu Ungido (provavelmente o rei davídico em Sião que estivesse na ocasião). ([153])

Sofonias não fala de nenhuma figura messiânica em específico, e nem fala da dinastia de Davi, mas espera que Deus se torne o Rei. ([153])

Jeremias participa dos sofrimentos de Deus junto com seu povo por ocasião da ruína de Jerusalém e da destruição do Primeiro Templo, e promete o retorno dos exilados de Babilônia. Apesar da interrupção do ofício sacerdotal e do governo da dinastia davídica, Jeremias entende que, após a redenção, ambos os cargos seriam restaurados. ([153])

Obadias não fala de nenhuma figura messiânica em específico, e nem fala da dinastia de Davi, mas entende que a terra de Edom será incorporada à terra de Israel sob as casas de Judá e José. ([153])

Ezequiel fundamenta a esperança da redenção num misterioso novo Templo, onde a Presença Divina possa retornar de seu exílio por ocasião da destruição do 1º Templo. Nessa época a dinastia davídica retornará também, como consequência do advento desse Templo e de um Messias Sacerdotal, atuando como Sumo-Sacerdote no novo Templo. ([153])

A 2ª metade de Isaías entende o Ungido ou Messias prometido como sendo o Rei Persa Ciro, que permite o retorno dos judeus do exílio babilônico. ([153])

A figura do Servo Sofredor na 2ª metade de Isaías se refere ao sofrimento do povo judeu, ou mais especificamente dos judeus justos e inocentes, por ocasião do exílio babilônico, sendo maltratados pelas nações e por isso merecendo a redenção. ([153])

Ageu e Zacarias entendem que os Ungidos ou Messias prometido são Zorobabel, um descendente de Davi, e Josué, o sumo-sacerdote da reconstrução do Templo, ou seja, um dinástico e um sacerdotal. ([153])

Zacarias entende que, após a morte violenta de uma pessoa justa na guerra final antes da redenção (recordando a morte violenta do justo Rei Josias), a redenção irrompe e Deus se torna Rei. ([153])

Malaquias introduz a ideia do retorno do Profeta Elias. ([153])

Joel não fala de nenhuma figura messiânica em específico, e nem fala da dinastia de Davi, mas fala da redenção como algo que Deus trará para vingar o sofrimento inocente e injustificado do seu povo nas mãos de outras nações. ([153])

Os Profetas não articulam uma concepção unificada acerca dos Messias de Israel, e muito do que eles falam é altamente poético e metafórico. Todos esses símbolos poéticos utilizados apontam para algo que eles consideram muito real: a Fidelidade de Deus à sua Aliança e sua solidariedade para com os oprimidos resultaria em Redenção para Israel e para o mundo inteiro, em gerações futuras. Seu anseio comum é muito mais por uma Era Messiânica do que por figuras individuais (tanto que nem todos os profetas anunciam a vinda de algum indivíduo específico por ocasião da redenção). A maior unanimidade é que Deus trará de volta os israelitas exilados do Norte e do Sul, iniciando uma era de paz e harmonia universais. ([153])

A maioria dos Ketuvim/Escritos não abordam a esperança messiânica, com exceção de Salmos e Daniel. Os livros remanescentes podem ser divididos em: 1) Otimistas: Provérbios, Cântico dos Cânticos, Rute, Ester; 2) Pessimistas, ficam: Jó, Lamentações, Eclesiastes; 3) Intermediários entre otimismo e pessimismo: [1–2]Crônicas, Esdras-Neemias. Apesar de não abordarem a esperança messiânica, todos esses livros de alguma forma apresentam elementos que podemos conectar à esperança messiânica. ([154])

Os otimistas não esperam uma redenção messiânica ou porque no seu contexto de análise isso não é estritamente necessário ou porque sua temática foge totalmente dessa preocupação. ([154])

Os pessimistas não esperam uma redenção não esperam uma redenção messiânica porque de alguma forma já desesperaram com o exílio, com o sofrimento inocente ou com o vazio existencial e a constante opressão sociopolítica no mundo. ([154])

Os intermediários parecem frustrados com a redenção não ter advido logo por ocasião do retorno do exílio babilônico e reconstrução do Segundo Templo em Jerusalém, mas deixam sua expectativa em aberto. ([154])

O livro dos Salmos, como parte dos Ketuvim, é o livro mais davídico de todas as Escrituras Hebraicas, aceitando de forma mais incondicional e enfática as tradições relativas à aliança de Deus com Davi e a eleição de Sião para ser a localização do Templo Sagrado. Por conta disso, esse livro têm elementos no mínimo protomessiânicos, pois vários salmos destacam a atuação divina em favor de seu Ungido, seu Messias, como uma figura dinástica descendente de Davi, de uma maneira que irá alimentar a imaginação messiânica tanto quanto parte dos livros dos Profetas Literários o fizeram. ([155])

É importante ressaltar que 1) nem todos os salmos falam de uma figura dinástica, muitos deles refletem sobre situações muito mais cotidianas envolvendo qualquer judeu ou mesmo um não-judeu justo entre as nações; 2) quando os salmos que falam de “Ungido” ou “Messias” usam tais termos, eles estão usando os termos como basicamente toda a Bíblia Hebraica o faz, isto é, como designando alguém que foi ungido com óleo para um cargo dinástico ou sacerdotal e mais raramente profético (no caso dos salmos, dinástico principalmente). Portanto, quando encontramos nos Salmos falando de Deus e seu Ungido, o Ungido em questão pode potencialmente ser QUALQUER Rei descendente de Davi descrito nos livros de Samuel, Reis ou Crônicas. Pode também ser um descendente de Davi que veio depois ou que ainda não veio? Sim, mas a questão é que não podemos presumir que todas as referências ao Ungido digam respeito a uma só pessoa. No mínimo, temos referências a Davi, Salomão, e provavelmente Josias ou um de seus sucessores. ([155])

A intimidade entre Deus e o Rei judeu retratada nos Salmos é tão grande porque ambos moram na mesma cidade, Jerusalém. A cidade tem dois Palácios: o de Deus (o Templo) e o da dinastia davídica (o Palácio Real). Sendo que Davi muitas vezes canta sobre “morar” na Casa de Deus, firmando o modelo que todos os seus descendentes deveriam seguir. ([155])

O salmo 89, que fala de um Ungido derrotado e morto, provavelmente se refere ao Rei Josias ou um de seus sucessores, já às portas do exílio babilônico e a destruição do Templo. Então, o Salmo 89 reflete nesse triste fim da dinastia de Davi em Jerusalém. Apesar disso, tem esperança de que a dinastia seja, por fim, restabelecida em seu Trono de Direito. Parece que Deus quebrou sua aliança com Davi, mas os descendentes de Davi continuaram existindo depois disso. Daí a esperança que um dia um desses descendentes seja novamente líder do povo judeu em Sião, dando início novamente à dinastia davídica para dessa vez nunca mais acabar (com herdeiros e sucessores em todas as gerações futuras). ([155])

O livro de Daniel, como parte dos Ketuvim, aborda a esperança messiânica sob um novo estilo: a apocalíptica judaica. Daniel se debate com a profecia de Jeremias, que havia profetizado o retorno dos exilados judeus em 70 anos (o que de fato ocorreu). Mas esse retorno e reconstrução não tirou Israel do jugo de grandes Impérios, permanecendo dominado por estes. Isto é, após o retorno o povo de Israel mesmo vivendo em sua terra passou a ter uma existência colonial/subordinada. Por conta disso Daniel reinterpreta a profecia dos 70 anos em uma profecia de 70 semanas de anos (490 dias = 490 anos) e ainda acrescenta números bem maiores, como as 2.300 tardes e manhãs (2.300 anos?), em uma intrincada numerologia. Conclusão do livro de Daniel: na melhor das hipóteses, séculos, mas provavelmente MILÊNIOS de subjugação. ([156])

Mas Daniel viu esperança também, tal como Jeremias. Após séculos ou milênios, o povo judeu iria ser totalmente reerguido, “os santos do Altíssimo receberão o reino, e o possuirão para todo o sempre, e de eternidade em eternidade” (Daniel 7:18). Nesse contexto se destaca a figura do ‘semelhante a um Filho do Homem’ (ou semelhante a um humano), uma metáfora para o reino final do povo dos santos do Altíssimo. Caso seja entendida literalmente, é um ser místico, talvez o anjo Miguel, não um ser humano. ([156])

Dentro da visão, esse Filho do Homem é imaginado como um ser Celestial ou Místico (como um anjo), querendo destacar que esse Reino Final dos Santos do Altíssimo será ao mesmo tempo Humano E Celestial, por ser pautado na justiça, em contraste às Quatro Bestas vistas anteriormente, caracterizadas como Bestiais por serem pautadas em dominação violenta, e que representam Quatro Impérios que oprimiriam os judeus. “O Filho do Homem” é uma metáfora para “o Reino de Deus” tanto como “as Quatro Bestas” são metáfora para “os Quatro Impérios”. ([156])

O livro de Daniel almeja uma Era Messiânica, a Redenção Final do povo judeu em relação a tais Impérios opressivos, inaugurando um período de paz e harmonia globais. Contudo, não coloca suas esperanças em algum personagem específico, ao contrário, sua atenção se centra na comunidade dos santos do Altíssimo, na inteireza do povo judeu. Por isso, a questão da dinastia de Davi é totalmente ausente aqui. Esse livro não espera um restabelecimento da dinastia davídica, no mínimo sendo indiferente a essa questão. Mas dá um papel de destaque para os Sábios. ([156])

Um elemento novo que esse livro traz em relação a todo o panorama que já analisamos anteriormente a respeito de todos os outros livros da Bíblia Hebraica é que esse livro introduz um tipo de esperança para o pós-morte individual: uma ressurreição dos mortos, por parte de alguns, nos tempos do fim. Mas não fica claro se os ressuscitados serão apenas entre os mortos da guerra final descrita anteriormente, nem fica claro se os ressuscitados para a ‘vida eterna’ realmente viverão para sempre ou apenas por um tempo muito longo. ([156])

Em Daniel vemos o início do que vai ser a associação posterior entre as figuras messiânicas e a ressurreição dos mortos. Enquanto para os Profetas Literários e para os Salmos, podemos afirmar que ali ainda não se esperava uma ressurreição dos mortos, mas sim uma continuidade eterna do povo judeu, da dinastia davídica, da paz e da justiça etc. com a longevidade, a boa saúde e a ausência de morte violenta sendo uma certeza universal. O livro de Daniel inova, ao apresentar a ideia de que as próprias vidas individuais anteriores finalizadas antes do período messiânico poderiam retornar, sob uma ressurreição corporal. ([156])

Dentro da Profecia das 70 Semanas, fala-se de dois ungidos diferentes: o 1º é o Rei Persa Ciro que permite o retorno dos judeus de Babilônia e o 2º é ou: a) o Sumo-Sacerdote morto por Antiôco Epifânico na época helenista ou a extinção do Sumo-Sacerdócio pela destruição do Segundo Templo na época romana; ou b) o Rei Agripa II, rei da Judéia por ocasião da destruição do Segundo Templo e morto pelos romanos. ([156])

O Cântico dos Cânticos, como parte dos Ketuvim, é originalmente uma poesia erótica-romântica profana, desprovida de intenção sacra. Contudo, em continuidade à metáfora profética de que Deus e Israel são como um casal de apaixonados, esse livro acabou sendo lido metaforicamente pelos sábios como falando desse relacionamento erótico entre Deus e Israel, especialmente após a destruição do Segundo Templo e o exílio romano subsequente. ([157])

Apesar de concordar totalmente com a pesquisa acadêmica no sentido de que o Cântico dos Cânticos não foi escrito tendo em vista essa metáfora sagrada, o fato de ter sido lido metaforicamente pelos sábios da tradição oral judaica dessa forma não foi algo “forçado” ou “artificial”, mas sim um desenvolvimento bem orgânico de um imaginário cultural que usava o relacionamento amoroso erótico como símbolo privilegiado da jornada da Presença Divina no povo de Israel ao longo de toda a história que começou com a libertação do Egito (ou mesmo antes, quando Deus se apaixona por Abraão). A interpretação em questão não deserotiza o Cântico dos Cânticos, mas sim erotiza o Divino (o que será levado a extremos na Kaballah). ([157])

O Cântico dos Cânticos foi ligado à esperança messiânica, pela ideia de que a HISTÓRIA da aliança entre Deus e Israel pode ser vista como um HISTÓRICO de relacionamento entre duas pessoas. Mais concretamente ainda, os acontecimentos entre o casal apaixonado retratado no Cântico dos Cânticos teriam correspondência ou analogia com acontecimentos do relacionamento histórico entre Deus e o povo judeu. ([157])

A exegese rabínica entende o desespero da amada pela perda de seu amado em certos trechos do Cântico dos Cânticos como análogo ao desespero do povo judeu pelo ocultamento da Presença Divina com o exílio. A experiência do exílio é comparada à experiência de ‘se desencontrar’, ‘se perder’ de alguém que você ama, sem saber se irá reencontrar essa pessoa amada. ([157])

Quando ficou claro que o exílio romano iria durar muito tempo, os Rabinos da tradição oral concluíram que era melhor que o povo judeu não tentasse obter a terra de Israel à força do Império Romano, e fundamentaram isso no Cântico dos Cânticos. Trata-se de 3 Juramentos, entre Deus, Israel e as nações: 1) o povo judeu não deve ir para a terra de Israel em bloco (i. e. à força); 2) o povo judeu não deve se rebelar contra as nações do mundo; 3) em troca, as nações do mundo não devem maltratar o povo judeu. Tais juramentos estariam aludidos no Cântico dos Cânticos, em 3 trechos nos quais a Amada fala com as filhas de Jerusalém utilizando as mesmas palavras em uma mensagem a respeito de seu Amado. ([157])

A analogia aqui funciona então do seguinte modo: tal como a amada, mesmo ansiando ardentemente pela presença total e permanente de seu amado, não tenta apressar esse reencontro, de forma similar o povo judeu, mesmo ansiando ardentemente pela presença total e permanente de seu Deus na terra de Israel, não deveria apressar esse reencontro. Então, tal como a amada e as filha de Jerusalém entram em acordo para não forçar esse reencontro antes da hora, deixando que o amado durma até que queira se levantar, o povo judeu e as nações do mundo entram em acordo para não forçar esse reencontro antes da hora (i. e. por meio de violência), deixando que Deus sozinho escolha o momento da redenção final do povo judeu. ([157])

Os 3 juramentos descritos normatizaram a existência judaica na Diáspora, onde os judeus acabaram se tornando uma população global, espalhada em todos os continentes, de caráter multiétnico e multirracial. A sobrevivência judaica seria ganha não por tentar reobter o controle da terra de Israel pela violência armada, mas por se espalhar ao redor do globo de maneira pacífica em relação às nações já residentes nas demais regiões do mundo. Em troca, as nações deveriam tratar bem os judeus, dada sua intenção pacífica de residir em harmonia com os residentes não-judeus. Infelizmente, a recíproca muitas vezes não foi verdadeira. ([157])

Quando a Redenção finalmente chega fazendo Israel reencontrar seu Deus na terra prometida em plena primavera verdejante, isso é comparável ao reencontro entre o Amado e a Amada para viverem seu amor, sua companhia, suas relações sexuais, de modo livre e desimpedido nos jardins do campo, com intenso prazer erótico. A Redenção é comparável ao orgasmo de um casal intensamente atraído um pelo outro. ([157])

O fundamento do reencontro é o amor radical e incondicional do casal apaixonado. Mesmo a distância por muito tempo, mesmo os obstáculos por vezes esmagadores, NADA pode destruir esse amor. E é assim que o Cântico dos Cânticos se relaciona à esperança messiânica: o amor profundamente erótico entre Deus e Israel fundamenta a expectativa da Redenção definitiva, findando toda opressão e permitindo uma existência tranquila para toda a humanidade. O amor dará a nota final da História. ([157])

Assim, podemos observar quão profundamente o imaginário messiânico tradicional judaico deu continuidade às Escrituras Hebraicas, sob as condições de um novo e mais longo exílio, o romano.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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