[177] Mesmo se a origem sem causa do Universo foi necessária, Deus ainda seria o Fundamento do Ser
No texto “[108] Redescobrindo Deus — mesmo numa visão naturalista de mundo”, abordei minha visão acerca de como podemos falar de Deus mesmo tendo uma visão de mundo estritamente naturalista e científica.
Ali discuti o caráter primordialmente expressivista da linguagem religiosa, o argumento cosmológico da contingência para um Ser Concreto Necessariamente Existente, o argumento do mal (e sua força contra o teísmo clássico), o panenteísmo como uma maneira muito mais satisfatória de compreender o Ser Concreto Necessariamente Existente, e, por fim, a leitura existencialista a respeito do Fundamento do Ser, levando a concluir que perguntar se Deus existe ou não é uma ‘não-questão’, um erro categorial. (É melhor ler esse texto antes de prosseguir, porque o atual será uma sequência àquele)
Esse texto gerou diversas reações bem interessantes. Aqui quero explorar uma dessas reações, a saber, uma objeção. No processo de responder a essa objeção, iremos entrar numa jornada até as fronteiras do intelecto humano!
A objeção começa afirmando que o Ser Concreto Necessariamente Existente postulado pelo argumento cosmológico da contingência não precisa ser entendido como Deus ou como transcendental.
Sim, isso é verdade, e eu nunca disse de outro modo. No post [108] eu apenas comento que nós COSTUMAMOS chamar um Ser cuja existência concreta seja necessária, não contingente, de ‘Deus’. Como meu objetivo ali era como entender Deus de forma naturalista, não tinha nenhuma razão para eu discutir essa questão se o Ser Concreto Necessariamente Existente poderia ser entendido como não sendo Deus.
Mas não acaba por aqui: o leitor que trouxe essa questão suscitou uma hipótese exótica levantada por Graham Oppy (um ateu filosófico), segundo a qual o estado inicial do universo poderia ser compreendido como metafisicamente necessário. Assim, no raciocínio do interlocutor esse estado inicial do universo (em t1) seria um melhor candidato ao ‘Ser Concreto Necessariamente Existente’ (ou estado modal independente) de um ponto de vista naturalista, mesmo se o argumento cosmológico da contingência fosse aceito.
Esse raciocínio tem um defeito muito sério, e isso nada tem a ver com ser teísta, ateu, panenteísta, etc! E isso me deixou com a pulga atrás da orelha: muitos entusiastas da filosofia analítica da religião, no afã louvável de estar acompanhando artigos recentes da disciplina, podem estar deixando de prestar atenção aos fundamentos de metodologia teórica e de contextualização técnica que são um antídoto salutar contra conclusões apressadas.
Antes de prosseguir, um disclaimer a respeito da minha posição em filosofia analítica da religião. No que concerne ao debate predominante, sou ateu filosófico em relação ao teísmo clássico, entendendo que temos razões significativas para pensar que um Ser Onipotente, Onisciente e Totalmente Bom não existe. Contudo, se expandirmos nossa apreciação para além de teísmo clássico versus ateísmo filosófico, favoreço o panenteísmo como forma de entender a Divindade. Só que, por atrelar esse panenteísmo ao existencialismo religioso (e mais especificamente ao existencialismo judaico), também me comprometo a um agnosticismo às avessas: não é apenas que não temos razões suficientes para seja afirmar ou negar a existência de Deus (como o agnóstico filosófico geralmente faz), mas que a própria pergunta ‘existe ou não’ é profundamente mal colocada. Por isso posso afirmar sem grandes problemas coisas como: Deus NÃO existe — mas Ele ocorre no mundo. (Avisei que você deveria ler o post [108] antes!)
Esse é um dos motivos pelos quais, neste blog, eu não trago tantos assuntos de filosofia analítica da religião, apesar dela figurar entre meus interesses de pesquisa acadêmica profissional. (Meu mestrado e doutorado não foram sobre filosofia da religião, mas neles abordei tópicos como o naturalismo em metodologia filosófica e a metafísica analítica da dependência ontológica, que são recorrentes também na filosofia da religião — então naturalismo e metafísica são literalmente minhas especializações stricto sensu)
Para mim o debate mais substantivo a respeito do significado e relevância do fenômeno religioso (e da própria figura de Deus) se dá em domínios mais fenomenológicos, literários e práticos*. Mas infelizmente muitos entusiastas da filosofia analítica da religião acham que realmente a grande questão é saber se algum Ser abstratamente definido existe ou não. Não me entendam mal: o domínio de questões da filosofia analítica da religião tem seu lugar. É uma exploração mental a respeito dos aspectos mais abstratos e formais do fenômeno em questão — e por isso mesmo necessariamente incompleta.
Feito esses esclarecimentos, vamos discutir a sério filosofia analítica da religião:
Um ponto interessante da minha abordagem é que ela é compatível com diversas hipóteses a respeito da origem do universo, como havia comentado naquele texto: o universo talvez seja eterno, ou tenha surgido espontaneamente sem causa (simplesmente pela probabilidade quântica de sua ocorrência), ou tenha sido criado por alienígenas inteligentes de outro universo, ou criará a sua própria origem no futuro (natural ou artificialmente), ou tenha surgido a partir de outro universo naturalmente (talvez por seleção natural cosmológica para vida inteligente), ou possua alguma causa física natural, ou precise existir (se é para algo existir, tem de ser material; ou há uma necessidade nomológica para sua existência). Você poderia aceitar QUALQUER uma dessas hipóteses e ainda poderia falar a respeito da Divindade com base na minha abordagem.
Mas esse aspecto não é exclusivo do panenteísmo existencialista que defendi ali, muito pelo contrário. Essa compatibilidade da Divindade com diferentes hipóteses e teorias sobre a origem do universo é simplesmente derivada do argumento cosmológico da contingência em suas formas clássicas (tomista e leibniziana), quando levado às últimas consequências. Então mesmo um teísta clássico poderia aceitar essas hipóteses. Só não é comum vermos isso por aí porque geralmente os teístas que predominam na filosofia analítica da religião estão comprometidos com premissas não-naturalistas a respeito da origem e/ou funcionamento do universo.
Então, para deixar mais claro: a Entidade Concreta Necessária, ou o Ser Concreto Necessariamente Existente, postulado pelo argumento cosmológico da contingência, é por si mesmo compatível com quaisquer daquelas hipóteses sobre a origem do universo. Isso vem antes de entrar em questões sobre como entender a Divindade de forma teísta, panteísta, panenteísta, etc. O motivo é que, como irei ainda revisar novamente nesse texto, o argumento cosmológico da contingência é de caráter puramente lógico-modal, já na sua forma clássica sendo compatível seja com a eternidade do universo seja com sua origem temporal, e, especialmente numa leitura não-causal, é compatível com a falta de causa para a origem do universo (se este teve uma origem).
Ou seja: o argumento cosmológico da contingência NÃO depende da origem do universo ser causada por Deus. Não se deve confundir o argumento cosmológico da contingência com o argumento cosmológico kalam.
O argumento cosmológico da contingência prova que Deus existe? Não. E nem prova que um Ser Concreto Necessariamente Existente (seja ou não entendido como divino) exista.
O que o argumento cosmológico da contingência faz é mostrar o que está em jogo ao afirmar ou negar a existência de um Ser Concreto Necessariamente Existente (que nós geralmente chamaríamos de Deus, mas daqui a pouco entraremos melhor nisso).
Então, negar a existência de um Ser Concreto Necessariamente Existente significa negar que haja uma explicação ou razão suficiente para a totalidade dos fatos/entidades contingentemente existentes, enquanto afirmar a existência de um Ser Concreto Necessariamente Existente significa aceitar que haja uma explicação ou razão suficiente para a totalidade dos fatos/entidades contingentemente existentes.
Ou seja, o interessante é que a questão sobre Deus se torna uma questão puramente lógica. A totalidade dos seres contingentemente existentes não pode ser explicada suficientemente pelos próprios seres contingentemente existentes, uma vez que, por definição, eles são o objeto da explicação em questão. Portanto, a explicação dessa totalidade precisa se dar por um ser concreto necessariamente existente, ou simplesmente não haverá explicação para ela.
Note que os seres existentes em questão, seja contingentes ou necessários, são seres CONCRETOS. Caso você aceite alguma forma de platonismo pelo qual os objetos abstratos existem, é padrão entender que eles (ou seus exemplos mais clássicos, como as entidades matemáticas) existem necessariamente. Mas entidades abstratas não podem causar entidades concretas, nem constituir metafisicamente entidades concretas. Por isso entidades abstratas não podem ocupar o posto de explicação suficiente para a totalidade dos seres concretos contingentemente existentes. Nem mesmo leis da natureza podem ocupar tal posto.
Portanto, o argumento cosmológico da contingência mostra que afirmar Deus (ou o Ser Concreto Necessariamente Existente) não é algo inefável ou inacessível, mas algo muito mais prosaico: afirmar que há uma razão suficiente para a totalidade dos seres concretos contingentemente existentes. Essa crença é racional e razoável, bem como a negação dessa crença também é.
A partir disso o debate se desenrola com tentativas de estabelecer que argumentos haveria para pensar que há ou não essa explicação suficiente para a totalidade dos seres concretos contingentemente existentes. O caminho mais usado é debater o Princípio da Razão Suficiente, segundo o qual todos os fatos contingentes (inclusive a totalidade dos fatos contingentes) tem uma explicação.
O Princípio da Razão Suficiente, se aceito, leva ao Ser Concreto Necessariamente Existente. Vou repetir aqui o que falei no post [108]: Suponha que o universo seja eterno. Isso significa que, dado um X, podemos dizer que X foi causado por Y que foi causado por Z, e assim infinitamente…. da mesma forma, esse X causará A que causará B que causará C e assim infinitamente. Cada elemento desse conjunto, todo ele composto por entidades concretas cuja existência é contingente (poderiam ou não ter existido) tem uma explicação dentro desse conjunto. Por exemplo, X é explicado por Y (que o causa) e explica A (por causá-lo).
Contudo, se nos perguntarmos qual a explicação para haver TODAS as coisas contingentes, representada pelo conjunto “ ]… Z, Y, X, A, B, C …[ ” , e não alguma outra totalidade ou mesmo nada, não a podemos encontrar em alguma outra coisa contingente, uma vez que todas elas estão DENTRO do conjunto. Por conta disso, ou essa totalidade (representada no conjunto) não tem uma explicação, ou sua explicação é dada por um Ser cuja existência concreta seja necessária, não contingente.
Muitas objeções já foram levantadas ao Princípio da Razão Suficiente, algumas muito convincentes. Mas já foi mostrado que mesmo um princípio mais relaxado e mais fraco de razão suficiente, por exemplo, um pelo qual ‘todo fato inteiramente contingente normalmente têm uma razão para sua existência’ (que não exige que todos os fatos contingentes tenham uma explicação, mas apenas que geralmente o tenham), já é suficiente para tornar persuasivo esse argumento cosmológico. Veja Koons (1997), Pruss (2003), Alexander (2008), Rasmussen (2010), Pruss (2010) e Pruss & Rasmussen (2018).
Então, segundo o argumento cosmológico da contingência, a rixa entre a tese ateia “Deus não existe” e a tese teísta “Deus existe” seria uma rixa sobre “não há uma explicação para tudo no mundo, certos fatos são brutos e sem explicação” (ateísmo, ou negação do Princípio da Razão Suficiente) versus “há uma explicação para tudo no mundo, então no final das contas há um Ser necessário que explica a totalidade da realidade contingente” (teísmos, ou aceitação do Princípio da Razão Suficiente).
Agora dito isso, o leitor trouxe uma objeção dizendo respeito à identidade do Ser Concreto Necessariamente Existente. Nesse caso o ateu filósofico poderia argumentar que, mesmo supondo que há um Ser Concreto Necessariamente Existente, esse Ser não seria Deus, mas alguma entidade puramente naturalística/física.
Enquanto seja uma possibilidade teórica fazer isso, na verdade isso praticamente nunca é feito em um sentido forte, mesmo pelos teóricos ateus/agnósticos que realmente entram num caminho bem similar a essa via argumentativa. O que se tenta é afirmar algo mais fraco: haveria alguma necessidade envolvida no vir a ser da totalidade dos seres contingentes.
Note que eu já havia feito remissão a isso no texto [108] e anteriormente no texto atual ao falar de que talvez o universo precise existir. Incorporados ao texto, estão o livro de Bene Rundle, “Why There Is Something Rather than Nothing” (2006) e um artigo do saudoso Quentin Smith “Internal and External Causal Explanations of the Universe” (1995), valendo também conferir dele nesse sentido o brilhante “The Metaphilosophy of Naturalism” (2001).
Resumindo bastante, Rundle argumenta que, se é para algo existir, esse algo tem de ser material, porque a matéria tem existência independente (no sentido ontológico, ou seja, os elementos fundamentais constituintes da matéria não dependem ontologicamente de alguma outra coisa, pois seriam o nível fundamental da realidade). Mas isso não é o mesmo que dizer que há um Ser Concreto Necessariamente Existente e que tal seria a matéria, não Deus. O ponto é mais fraco: se algo existe, será material, então como de fato existe algo, já seria de esperar que esse algo fosse material. Esse ponto é compatível com meu panenteísmo! (E com outras visões sobre o divino onde este seja, em algum sentido, material ou materialmente realizado etc.)
Já Quentin Smith argumenta a favor de uma necessidade nomológica envolvida na origem do universo e entra numa discussão sobre explicações causais internas versus externas do universo. Ele não aceita que haja um Ser Concreto Necessariamente Existente, apesar de discutir uma forma de necessidade envolvida na origem do universo. E rigorosamente falando, uma necessidade nomológica (que decorre das leis da natureza) para a origem do universo é compatível com aceitar o argumento cosmológico da contingência, pois essa necessidade nomológica não é uma razão suficiente para a totalidade dos seres contingentes no sentido forte da coisa (uma vez que uma necessidade nomológica ainda seria uma forma de contingência metafísica considerado o espaço modal total), então ainda haveria lugar para o Ser Concreto Necessariamente Existente ser essa razão suficiente. Além disso, a ausência de causa externa para o universo também é compatível com o argumento cosmológico da contingência, especialmente quando esse é lido de forma não-causal.
Ou seja, em geral, vemos que as propostas de necessidade natural envolvendo algo que não seja transcendental/divino na verdade não satisfazem o rígido requerimento de falarem de um Ser Concreto Necessariamente Existente. (A de Oppy que meu interlocutor trouxe chega próximo, mas já veremos que mesmo ela não chega nisso)
O motivo é simples: perdoem o trocadilho, mas não é muito natural pensar em algo natural (entendido sem nenhuma conotação mística/transcendental) como sendo necessariamente existente. Por outro lado, é MUITO natural pensar em Deus como necessariamente existente (mesmo se Ele for, em certo sentido, natural, como eu mesmo penso).
É verdade que muitas formulações do argumento cosmológico da contingência se preocupam mais em estabelecer que haveria razões para aceitar que tal Ser Concreto Necessariamente Existente de fato existisse do que em demonstrar que esse Ser é Deus (enquanto haja sim elaborações desse segundo passo na literatura). Mas é um fato que, na fenomenologia religiosa, já falamos de Deus em termos de algo como ‘existência concreta necessária’ (mesmo que não de forma tão logicamente sofisticada).
Ou seja, mesmo que o Ser Concreto Necessariamente Existente não precise ser Deus, Deus é basicamente sem rivais em termos de candidatos à existência concreta necessária como formulada no argumento cosmológico da contingência. Nós não provamos que o Ser Concreto Necessariamente Existente seja Deus, mas é bem natural discutir Deus em termos desse Ser Concreto Necessariamente Existente.
Já as entidades físicas entendidas sem conotação transcendental são o paradigma de coisas concretas contingentes. Ninguém sabe como seria algo físico necessariamente existente, e nem mesmo como começar a investigar algo assim. E isso não é meramente uma lacuna do nosso conhecimento porque a questão aqui não é empírica, mas lógica. Ou seja, o fato de que nunca observamos algo físico necessariamente existente é o que esperamos da própria natureza das entidades físicas, que por si mesmas é bem natural que as pensemos como necessariamente tendo existência contingente.
Curiosamente o panenteísmo naturalista faz uma ponte entre o físico e a existência necessária, pois as entidades físicas, mesmo sendo tudo o que existe em termos concretos (nada não-físico existe concretamente), são partes de Deus. Só que nesse caso damos uma conotação transcendental/divina à totalidade das entidades físicas. Por isso torna-se possível ver essa totalidade como necessária na medida em que seja divina, mas como contingente na medida em que seja física. Isso pode ser entendido de forma similar à diferença entre “natura naturans” e “natura naturata” feita por Spinoza (mas não me comprometendo com a metafísica modal spinoziana, para deixar claro, mencionando isso para fins de analogia).
Tudo isso então nos leva à proposta de Graham Oppy a respeito de que o universo tenha uma origem não-causal (e não-agencial) necessária, que aparece na resenha feita por Oppy a um livro de Timothy O’Connor e em um capítulo de livro onde Oppy também estava discutindo a versão do argumento cosmológico proposta por Connor (veja uma tradução deste último em português aqui). Uma elaboração mais extensa é feita em “Ultimate Naturalistic Causal Explanations” de 2013.
A ideia é que o estado inicial do universo fosse metafisicamente necessário, servindo de explicação para o porquê dos estados sucessivos do universo, todos metafisicamente contingentes, virem a existir. Sob essa proposta, o estado do universo em t1, que causa o estado do universo em t2, seria metafisicamente necessário, mesmo que os próximos estados do universo (em t2, t3, t4, etc.) sejam contingentes.
Para entender isso melhor, temos de revisar o que significa algo ser metafisicamente necessário. Em termos de lógica modal contemporânea, geralmente a ideia de ‘mundos possíveis’ é usada para explicar o que significa falar que algo é possível versus necessário. Então, nós afirmamos coisas como “é possível que o Brasil fosse uma monarquia em 2021”, mesmo que o Brasil seja uma república em 2021. Dentro do tratamento lógico-semântico em questão, isso equivaleria a dizer que “há um mundo possível no qual o Brasil é uma monarquia em 2021”.
Existem muitas diferentes maneiras de entender a modalidade, bem como a relação entre modalidade e causalidade. Oppy tem a sua, que é bem controversa, mas que é fundamental para essa proposta dele a respeito do estado inicial do universo.
Vou explicar simplificadamente: A ideia é que só faria sentido em falar de possibilidade metafísica em termos da causação de um estado A por um estado B. Só que, se pensarmos retrospectivamente numa sequência de causas-e-efeitos, seria razoável inferir que o próprio estado inicial dessa sequência total seria metafisicamente necessário, pois esse estado inicial não foi causado. Ou seja, não havia possibilidades metafísicas a respeito do estado inicial diferentes daquela que de fato foi, pois as possibilidades metafísicas não realizadas dependeriam da causalidade anterior, que nesse caso não houve. Logo, o caso do estado inicial seria o de uma única possibilidade metafísica, o que equivale à necessidade metafísica.
Agora, o problema da objeção apresentada por aquele leitor do blog é que, novamente, tal como já vimos para as propostas de Rundle e Quentin Smith, essa aqui também não estabelece um Ser Concreto Necessariamente Existente no sentido forte preconizado pelo argumento cosmológico da contingência.
Oppy (e, aparentemente, O’Connor) entende que a versão de O’Connor do argumento cosmológico da contingência está comprometida com uma origem causal do Universo por meio da agência divina. É nesse contexto que Oppy propõe como alternativa uma origem necessariamente não-agencial do universo, onde o estado inicial do universo seria metafisicamente necessário. Contudo, também vemos ali que Oppy propõe um regresso eterno de causas contingentes como outra alternativa ao Ser Concreto Necessariamente Existente do argumento cosmológico da contingência — o problema é que, como o leitor já sabe, o argumento cosmológico da contingência desde a Idade Média é compatível com a eternidade do universo!
É bem possível que a variante do argumento cosmológico da contingência proposta por O’Connor esteja aberta a esse problema, mas outras variantes, inclusive as mais clássicas, NÃO SÃO. Além disso, parece-me que não podemos colocar todo o problema apenas nas costas de O’Connor. Existem críticas feitas a Oppy na literatura no sentido de que ele subestima ou parece não entender adequadamente qual o tipo de fundação/explicação/razão pressuposta pelo argumento cosmológico da contingência e sua postulação de um Ser Concreto Necessariamente Existente (veja “Oppy on Thomistic Cosmological Arguments”, 2021, Edward Feser).
Então agora, vamos por partes, para que vocês entendam onde está o equívoco da leitura feita pelo meu interlocutor e por outros entusiastas online de filosofia analítica da religião. Vamos analisar por que a proposta de Oppy não é um substituto direto para o Ser Concreto Necessariamente Existente; e qual o contexto técnico da proposta de Oppy, que não pode ser usada dessa forma solta, desvinculada desse contexto.
Por que a proposta de Oppy não é exatamente um substituto para o Ser Concreto Necessariamente Existente das versões principais do argumento cosmológico da contingência?
Quem for familiarizado com metafísica analítica (aprendida independentemente desses debates de filosofia da religião) vai perceber de cara: a dependência ontológica dos fatos contingentes em relação ao estado inicial do universo metafisicamente necessário é uma dependência ontológica histórica ou passada, enquanto a dependência ontológica dos fatos contingentes em relação ao Ser Concreto Necessariamente Existente do argumento cosmológico da contingência é uma dependência ontológica constante ou constitutiva.
Sobre a diferença em variantes de dependência ontológica, você pode ler meu capítulo de livro, “Dependência Ontológica” (2020), ou na minha tese de Doutorado, “Ontologia Social Não-Mentalista: uma abordagem comportamental biocentrada” (2021), mais especificamente no segundo capítulo onde faço uma revisão a respeito disso. Aqui vou apenas colocar de forma bem resumida essa distinção.
Dependência ontológica histórica é aquela na qual uma entidade depende (para sua existência) de outra ter existido no passado, mas, depois que a entidade dependente veio a existir, a outra pode deixar de existir e isso em nada afetará a entidade dependente. Então, dentro da literatura, muita gente aceita que a sua relação para com seus pais biológicos seria essa: caso seus pais biológicos não tivessem existido no passado, você não existiria hoje. Mas dado que você já tenha começado a existir, seus pais biológicos podem deixar de existir, e isso em nada afetará a sua existência.
Já dependência ontológica constante é aquela na qual uma entidade depende (para sua existência) de outra estar existindo em todo o tempo no qual a entidade dependente exista. Então, se X depende de Y nesse sentido, X apenas existe nos instantes temporais nos quais Y também exista. Caso Y deixe de existir, X deixará de existir também. Um exemplo seria a relação entre a mesa e a madeira de que a mesa é composta: caso a madeira deixasse de existir, a mesa deixaria de existir também.
Então, os papéis explanatórios do estado inicial metafisicamente necessário do universo e do Ser Concreto Necessariamente Existente não são os mesmos: o estado inicial metafisicamente necessário do universo explica a origem do universo com base na necessidade desse estado inicial ocorrer, mas, após o estado inicial ocorrer, ele deixa de existir enquanto o universo continua existindo. Já o Ser Concreto Necessariamente Existente existe em todo o tempo no qual o universo existe, porque a explanação por este fornecida era da própria totalidade dos seres contingentes, e não apenas a do início da totalidade dos seres contingentes.
Então, Oppy tem razão se o Ser Concreto Necessariamente Existente for entendido como uma explicação para a totalidade dos seres contingentes na medida em que explicasse a origem causal dessa totalidade (o que pode talvez ser o caso da versão do argumento cosmológico proposta por O’Connor). Mas, como já afirmei várias vezes, o argumento cosmológico da contingência (nas suas versões principais) sequer precisa assumir que o universo tenha uma origem, sendo compatível com a totalidade dos seres contingentes não ter nenhuma origem, mas sim sempre ter existido.
Aqui também devo alertar que a dificuldade em fazer essa distinção sobre os tipos de dependência e em entender a natureza da explicação fornecida pelo Ser Concreto Necessariamente Existente não é um problema isolado de Oppy, mas sim da maneira padrão em que esse assunto é debatido na filosofia analítica da religião atual. É comum falar da relação do Ser Concreto Necessariamente Existente e da totalidade dos seres contingentes como sendo causal, mas isso não é necessário e, ao contrário, essa relação subjacente é melhor compreendida de forma não-causal, como mostrado por Pearce (2017), Bohn (2018), Hamri (2017), Deng (2019) e eu mesmo, Brito Jr. (no prelo), entendendo a relação entre Deus e o universo como uma relação metafísica não causal, provavelmente de constituição ou de grounding, que gera uma dependência ontológica constitutiva do universo em relação a Deus.
Essas relações metafísicas não-causais não são misteriosas, mas ubíquas em nosso cotidiano e em todas as ciências. Um exemplo é o da mesa em relação à madeira da qual é feita. A mesa é composta de madeira, é constituída por um arranjo de madeira, o fato de sua existência é fundado no fato da existência da madeira etc. Mas seria errôneo dizer que a madeira causa a mesa. A mesa é feita de, não causada pela, madeira.
Então, o fato da literatura ainda falar muito em causação nesse cenário acaba realmente confundindo o meio de campo, inclusive dificultando o entendimento entre ateus e teístas a respeito do que está em jogo aqui. Isso tem relação com o fato de que muitos teístas têm um comprometimento extra muito forte com a ideia de que Deus seja a causa da origem e conservação do universo, mesmo que o argumento cosmológico da contingência tecnicamente não seja comprometido com isso. (Por isso não entro aqui em questões tomistas ligadas à conservação causal contínua versus inércia existencial, mais afeitas a uma cultura filosófica onde não se distinguia precisamente entre a dependência causal e a não-causal)
Agora, se pegarmos NO CONTEXTO CORRETO, o argumento de Oppy a respeito disso é basicamente uma variação de seu argumento a respeito do ateísmo ser mais simples ontologicamente que o teísmo, como encontrada no seu livro “The Best Argument Against God”. Então, ele diz que um ateu filosófico entenderia como mais plausível que o universo tivesse um estado inicial metafisicamente necessário, do que houvesse um Criador metafisicamente necessário que fosse a causa do estado inicial do universo. Como a alternativa ateísta seria mais simples, por ter o mesmo estado inicial do universo que a alternativa teísta mas sem postular Deus também, então a alternativa ateísta seria favorecida.
Como é possível observar, esse argumento dele não afeta aquilo que escrevi no meu texto [108], pois eu: 1) não pressuponho Deus num sentido teísta, então entendendo Deus de forma panenteísta essa questão de separar o Criador da criatura sequer seria posta dessa forma; 2) não pressuponho que a relação entre Deus e o universo seja causal ou de originação causal.
Agora, francamente, eu não acho que esse argumento de simplicidade do Oppy funcione contra o teísta nesse caso (apesar de eu mesmo ser ateu filosófico em relação ao teísmo clássico). Oppy assume que as 2 alternativas (a ateísta e a teísta) comprariam as mesmas entidades exceto pelo Deus Criador (sob o teísmo clássico), uma vez que o estado inicial do universo seria compartilhada por ambos.
Contudo, se a alternativa ateísta postula um estado inicial do universo metafisicamente necessário e a alternativa teísta postula um estado inicial do universo metafisicamente contingente, realmente elas ainda estão postulando o mesmo ‘estado inicial do universo’? Parece que aqui Oppy se deixa enganar pelas aparências linguísticas, uma vez que um estado inicial do universo metafisicamente necessário seria extremamente diferente de um estado inicial do universo metafisicamente contingente.
Mas mesmo se concedêssemos isso para Oppy, e quiséssemos junto dele entender que seria a mesma entidade “estado inicial do universo” entre as alternativas ateísta e teísta, apenas diferindo no modo de entender essa entidade (se metafisicamente necessária ou contingente), Oppy ainda não pode afirmar que a alternativa ateísta seja mais simples em absoluto que a alternativa teísta. O motivo é que, sim, a alternativa ateísta é mais simples ontologicamente, contudo, a alternativa teísta seria mais simples teoricamente. Adicionar um estado inicial do universo que seja metafisicamente necessário complica a teoria, pois teríamos de entender que o ‘estado do universo’ já foi metafisicamente necessário, mas agora só é contingentemente necessário. Em algum sentido, isso leva à ideia ainda mais complicada que o próprio universo era necessário antes, mas deixou de sê-lo, uma noção que pouco faz sentido em termos de metafísica analítica.
Não ajuda aqui negar a existência de ‘objective chances’ e afirmar que o mundo real seria o único mundo possível, tornando todos os estados do universo em estados metafisicamente necessários, em seu passado, presente e futuro. Isso abre as mesmas objeções de: 1) estar no final das contas falando de entidades diferentes daquelas aceitas pelo teísta; 2) estar acrescentando um custo teórico bem elevado, no sentido de que, simplesmente para negar a existência de um Ser Concreto Necessariamente Existente que fundasse a totalidade dos seres contingentemente existentes, todos os estados do universo teriam de ser metafisicamente necessários e, assim, é necessário que todos os seres contingentes (que existiram, existem ou existirão) venham a existir.
Agora, esse meu segundo ponto do parágrafo anterior chama a atenção novamente a essa questão da dependência ser histórica ou constante. Os estados necessários do universo, seja apenas o inicial (caso existam ‘objective chances’) sejam todos os estados do universo (caso não existam ‘objective chances’), não são substitutos diretos do Ser Concreto Necessariamente Existente do argumento cosmológico da contingência clássico porque esses estados NÃO NECESSARIAMENTE EXISTEM. Note: os estados são metafisicamente necessários no sentido de que eles tem de ocorrer em algum momento, mas, uma vez ocorrido o estado em questão, ele deixa de existir. Então, o estado inicial do universo, mesmo se fosse metafisicamente necessário que ele ocorresse, não existe necessariamente, pois há MUITOS (talvez INFINITOS) instantes temporais no qual o estado inicial do universo NÃO existe. E isso vale para todo e qualquer estado do universo, independente se ele tem de ocorrer necessariamente ou contingentemente apenas.
Assim, minha conclusão é que não se deve confundir a existência concreta necessária (onde algo TEM QUE EXISTIR simpliciter) com a necessidade metafísica de que algo ocorra em algum momento específico. Como falei a respeito da relação entre você e seus pais biológicos, o fato de você existir implica que é necessário que seus pais tenham existido antes, mas não significa que seus pais tenham uma existência concreta necessária.
Então, na verdade a proposta de Oppy funciona apenas se aceita uma teoria da modalidade muito específica e dentro de um escopo mais limitado, onde inferimos que foi necessário que o estado inicial do universo tivesse existido para que nós existíssemos hoje e assim o entenderíamos como metafisicamente necessário. Contudo, isso não fornece o tipo de razão suficiente que o Ser Concreto Necessariamente Existente postulado pelas formulações clássicas do argumento cosmológico da contingência forneceria para a totalidade dos seres contingentes.
E aqui entra também o artigo que mencionei de Freser, “Oppy on Thomistic Cosmological Arguments”. Ali Freser alega que Oppy não entende corretamente a questão da fundação da totalidade dos seres contingentes como discutida em Tomás de Aquino, pois essa fundação não é a linear com que Oppy está preocupada (ou seja, aquela de dependência histórica, a respeito do que causou a inteira série de causas-e-efeitos observados no universo), mas sim com a hierárquica, dentro da terminologia aquiniana (ou seja, dentro de uma formulação contemporânea, aquela de dependência constante, a respeito do que tem de existir em todo o tempo no qual a totalidade dos contingentes existe).
Então, definitivamente, o Ser Concreto Necessariamente Existente NÃO PODE SER o estado inicial do universo, pois o Ser Concreto Necessariamente Existente existe em todo o tempo que o universo existe, enquanto o estado inicial do universo, mesmo se metafisicamente necessário que ele ocorra, só existe no início do universo e depois não existe mais! E o mesmo vale para qualquer estado do universo que fosse entendido como metafisicamente necessário, pois todos eles são indexados a um tempo específico.
Agora, se realmente a teoria da modalidade de Oppy estiver correta, e realmente pelo menos o estado inicial do universo for metafisicamente necessário, isso significa então que o Ser Concreto Necessariamente Existente não existe?
Minha resposta pode surpreender vocês: mesmo se Oppy tiver razão, é sim plausível dizer que o Ser Concreto Necessariamente Existente exista, desde que seja aceito algum princípio de razão suficiente, seja o clássico seja um mais enfraquecido. Nesse caso, o Ser Concreto Necessariamente Existente não traria o universo à existência, que passaria a existir por simples necessidade metafísica, mas Ele ainda poderia ser a fundação para a totalidade dos seres contingentes entendida num sentido não-causal. Ou seja, o papel explanatório do Ser Concreto Necessariamente Existente não concorreria com o do estado inicial metafisicamente necessário do universo, um resultado que eu já favorecia como se vê pelo fato do texto [108] já prever essa possibilidade de que o universo precisasse vir a existir.
O fato de que isso não fica claro na literatura atual é simplesmente porque a maioria dos teístas realmente está fortemente comprometida com essa relação causal entre Deus e a origem do universo. Mas para o tipo de panenteísmo que eu defendo, é simplesmente muito tranquilo admitir que, mesmo se o universo tiver surgido de forma metafisicamente necessária, sem intervenção divina, ainda assim Deus (ou seja, o Ser Concreto Necessariamente Existente) teria uma relação não-causal com o Universo (ou seja, a totalidade dos seres concretos contingentemente existentes). E nem precisaria ser panenteísta para isso, mas de fato o panenteísmo já sugere essa formulação não-causal por definição.
Entrando mais um pouco no panenteísmo, se realmente o estado inicial do universo foi metafisicamente necessário, esse estado inicial é igualmente parte de Deus como o seriam todos os demais estados do universo (sejam metafisicamente necessários ou contingentes). Então, novamente, não haveria nenhuma concorrência possível entre Deus e o estado inicial do universo.
Agora, ainda é possível que Oppy argumente que, sob sua visão de modalidade e no caso de negação de ‘objective chances’, não seria preciso uma razão suficiente para ancorar a totalidade dos seres contingentes porque simplesmente não haveria possibilidade metafísica de outra totalidade ser o caso, então ela não precisaria de explicação. O problema é que, para isso ser seriamente argumentado, teria de implicar que todos os seres que pensamos serem contingentes são necessários (não só os estados do universo), o que parece confuso, considerando que esses seres deixam de existir ao longo do tempo, e, portanto, não existem necessariamente. Note: se todos os fatos concretos forem necessários, não existiria nenhum fato contingente, logo, não haveria necessidade de explicar nenhum fato contingente! Então esse contra-argumento depende de negar toda contingência, não de haver ou não haver uma explicação para ela. Diante dessa implausibilidade, aqui penso que o mais lógico seria entender que o fato de que esses seres contingentes sejam os únicos que poderiam vir a existir é um fato bruto, portanto, entraríamos na rejeição padrão do argumento cosmológico da contingência, ao admitir tais fatos brutos.
Para finalizar, preciso destacar que eu falei aqui em termos de Deus como existindo simpliciter principalmente porque é essa a maneira analítica de abordar o assunto. Mas entrando no campo existencialista, eu penso que podemos afirmar que o Fundamento do Ser não existe em si, pois, caso existisse, ele seria mais um ente entre entre outros, e não o fundamento da existência deles. Contudo, o Fundamento do Ser existe (ou melhor dito, ocorre) na medida em que os seres específicos existem, então nesse sentido relativo podemos falar de sua existência (e, nesse sentido, uma existência concreta necessária). Assim, na verdade eu entenderia a ‘existência concreta necessária’ mais como uma forma velada de falar da Transcendência Última, mesmo que entendida de forma consistente ao naturalismo, o que reforçaria nossa conclusão de que o Ser Concreto Necessariamente Existente do argumento cosmológico da contingência é Deus. Contudo, isso aqui é mais controverso, e por isso nada do que falei antes depende desse ponto mais específico.
*E nesses domínios o panenteísmo tem um solo fértil, por exemplo no post [128] usei o panenteísmo para explorar uma consequência ética dentro de um tópico bíblico.
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