[185] E se cada época da sua vida fosse uma pessoa diferente e elas se encontrassem?
Vou descrever aqui uma experiência de pensamento que utilizo desde a adolescência (e foi aprimorada e generalizada ao longo do tempo) para monitorar minha evolução pessoal e o quão — drástica ou rápida, contínua ou lenta — eu mudei atitudes ao longo da minha vida.
Penso eu que essa experiência de pensamento ajuda a nos fazer refletir sobre pontos muito importantes acerca de nossa identidade e de como vemos as outras pessoas e a nós mesmos.
Faça o seguinte experimento mental:
Primeiro, especifique uma característica ou critério que você mudou ao longo da sua vida. Muitas coisas são possíveis aqui: convicções religiosas, posições políticas, atitudes em direção ao sexo oposto para fins de relacionamentos afetivo-sexual (ou do mesmo sexo, caso esta seja sua orientação sexual), etc. De início, recomendo especificar apenas uma característica, mas também pode-se analisar mais de uma simultaneamente.
Segundo, recorte as fases de sua vida com base na mudança em relação a essa característica ou critério. Isso pode ser feito de várias formas. O “eu” do ano X, o “eu” do 2º semestre do ano X, o “eu” na série X do colégio ou no ano Y da faculdade, e assim por diante. O ideal é recortar desde o mais cedo que você possa recuperar memória, por exemplo, na infância ou pré-adolescência. (Quanto mais cedo na sua vida você treinar esse experimento e mais constantemente encená-lo mentalmente, melhor sua retenção de memória parece ser em relação às várias épocas diferentes, mas esta minha afirmação está sujeita a testes empíricos, claro)
Terceiro, imagine que todos esses “eus” irão encontrar-se em um mesmo local, por exemplo, uma sala, e terão de interagir. O que aconteceria? Esses “eus” concordariam ou discordariam mais entre si em suas posições? Esses “eus” apresentariam inimizade entre si ou não gostariam uns dos outros? Ou alguns desses “eus” seriam amigos, mesmo não gostando de outros “eus”? Você pode acrescentar outras perguntas para imaginar a dinâmica de sua interação, mas essa penso que sempre deve estar no final: esses “eus” conseguiriam reconhecer que são a mesma pessoa, mas em tempos diferentes de sua própria vida?
As conclusões que tiro desse experimento mental são as seguintes:
a) a tolerância é um valor muito importante, pois nós mesmos não gostaríamos de nós mesmos se algum “eu” de nosso passado nos fosse apresentado como uma pessoa diferente.
b) o monitoramento das nossas mudanças pessoais é uma ferramenta-chave de auto-conhecimento, que permite compreendermos melhor nossas potencialidades e nossa adaptabilidade, às quais ficam mais claras quando nos vemos como um conjunto de pessoas diferentes no tempo.
c) nossos diferentes “eus” ao longo de um período de tempo podem ser tão diferentes quanto diferentes pessoas vivendo ao mesmo tempo, o que nos mostra que (o que chamamos de) nossa identidade pessoal é baseada em uma continuidade que apresenta descontinuidades de magnitudes comparáveis àquelas que nossa própria pessoa em dado tempo apresenta em relação às outras pessoas; e nos suscita a questão ética sobre o quão realmente estamos autorizados a preferirmos a nós mesmos em relação aos outros, dado que nossas diferentes fases da vida são também “outros”.
Texto originalmente publicado em Tabula (não) Rasa em 5/5/2015
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