[184] Eliseu e as Ursas: lendo CORRETAMENTE (análise literária com entrelinhas)

A Estrela da Redenção
30 min readJan 2, 2022

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Existe um hoax virtual muito difundido por aí segundo o qual o “Velho” Testamento (nome pelo qual a Bíblia Hebraica é vulgarmente conhecida) conteria uma história na qual um profeta de Deus mata dezenas de crianças por meio de 2 ursas — e que isso foi justificado por Deus meramente porque as crianças tinham feito uma piada a respeito da calvície do profeta em questão.

A popularidade desse hoax se dá em razão de que uma leitura apressada de traduções do livro de [2]Reis da Bíblia Hebraica dá a falsa impressão de que realmente existe tal história ali:

“Então [Eliseu] subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos [nearim ketanim; נְעָרִ֤ים קְטַנִּים֙] saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo!
E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos [ieladim; יְלָדִֽים].” (2 Reis 2:23,24)

Assim, esse hoax, oriundo da polêmica virtual neo-ateísta, parece estar embasado no texto — mas na verdade NÃO ESTÁ e o objetivo desse texto será explicar a razão disso. Se você já teve contato com esse hoax, peço que leia o presente texto com atenção até o final, pois penso que você irá se surpreender muito!

Perceba que a explicação que darei não tem NADA A VER com você ‘acreditar’ ou não na Bíblia, ou nesse texto em questão. Para o que vou explicar, NÃO IMPORTA se você vai tomar esse livro como seu texto santo ou não, se vai ‘aceitar’ ou ‘rejeitar’ o texto etc. Não importa se você é ateu ou religioso ou seja lá o que for. A imaturidade dessa polêmica virtual reside toda em achar que isso que importa. A questão real aqui envolvida é sobre compreender um texto literário escrito numa linguagem e contexto cultural bem distintos do seu.

A propósito, esse hoax tem uma versão ‘gospel’ também: nesse a ‘moral da história’ vai no sentido de que é preciso seguir fielmente (isto é, cegamente…) aquilo que é dito pelos ‘ungidos do Senhor’, seja pastores ou profetas de plantão, pois Deus pune gravemente quem sequer ousa ‘zombar’ de seus ‘ungidos’. Curiosamente, esse hoax gospel é basicamente a versão invertida do hoax neo-ateu: ambas concordam em essência, mas divergem em dizer se o texto em questão é moralmente correto ou errado. Como já expliquei no post [182], o neo-ateísmo geralmente compra a leitura fundamentalista das Escrituras como se fosse a leitura correta delas, assim andando de mãos dadas com os fundamentalistas religiosos. (O hoax gospel acrescenta essa ideia dos ‘ungidos do Senhor’ fazendo uma confusão com outra narrativa, a de Saul e Davi no âmbito dos reis israelitas, nada a ver com profetas ou pastores, mas outro dia podemos falar disso…)

Esse hoax neo-ateu ilustra muito bem a deficiência EXTREMA desse contato superficial com o texto bíblico que caracteriza muito dessa polêmica. A pessoa pode nem saber quem foi o profeta Eliseu, o que mais a Bíblia Hebraica fala dele, nem sequer sabe o que o Livro dos [1–2]Reis aborda, mas com base em ter lido 2 versículos numa tradução para o português ou inglês (talvez sem nem saber qual o idioma original do texto) se acha capacitada para sair disseminando por aí esse suposto ‘achado’ para denunciar o texto bíblico. Obviamente não é assim que se faz análise séria de absolutamente nenhuma obra literária.

Então, no presente texto, irei fazer uma análise textual aprofundada, incluindo as entrelinhas sutis do texto em questão, recorrendo também à correta compreensão do hebraico (a língua original). Para tanto, recorrerei a 2 formas de analisar o texto: 1) a análise literária moderna-acadêmica, especialmente destacando os paralelismos em que esse texto se insere dentro do livro em que está (e, por vezes, dentro do cânon bíblico em geral); 2) a análise literária feita dentro da tradição milenar contextualmente relevante, isto é, a judaica-rabínica, uma vez que o livro dos Reis é uma obra JUDAICA, escrita e autorada por judeus, que foi lida e discutida no original hebraico ao longo de milênios pelos rabinos judeus, em um desenvolvimento contextual organicamente conectado ao contexto original desses textos (veja posts [107]-[110]-[111]-[138]).

Como veremos, ambas as análises convergem em grande medida, até porque a metodologia judaica de lidar com os textos bíblicos — repito: a TRADICIONAL e MILENAR dentro do povo judeu — já lidava primariamente com os elementos caracteristicamente literários do texto (diferente do contexto cristão mais conhecido, com seu enfoque doutrinal).

Assim, temos de analisar os seguintes pontos:

  1. O texto realmente fala de crianças? Essa tradução está correta?
  2. O texto realmente afirma que Eliseu fez algo em nome de Deus? O que Deus tem a ver com a maldição proferida por Eliseu?
  3. O texto realmente fala de um ato de mera piada com calvície alheia? Eliseu teria se incomodado com uma simples troça ou tinha algo a mais aqui?
  4. O texto realmente afirma que Eliseu fez algo correto? Onde que Deus — ou mesmo o narrador do livro ou qualquer outro personagem — em algum momento justifica a ação de Eliseu?
  5. O desenvolvimento de personagem ao longo de todo o arco narrativo de Eliseu no livro dos [1–2]Reis não teria algo a dizer sobre a interpretação desse trecho?

Então, venha comigo entender melhor essa confusão toda!

1) O texto realmente fala de crianças? Essa tradução está correta?

O primeiro ponto é que o texto não foi escrito em português ou inglês, mas sim em hebraico, uma língua bem distinta das ocidentais. Então, conhecer o texto apenas pela tradução pode levar a mal entendidos, algo que ocorre no caso em questão.

Os termos traduzidos ali como “meninos” são os seguintes: primeiro, se usa nearim ketanim (נְעָרִ֤ים קְטַנִּים֙) e depois se usa ieladim (יְלָדִֽים), os dois termos sendo o plural masculino de naar katon (נַ֣עַר קָטֹ֔ן) e de ialed (יָ֑לֶד). Adicionalmente, note que naar katon é um conjugado de naar e katan, que mais comumente são usados separadamente no texto bíblico.

Sem entrar muito em pormenores, esses termos podem ser usados para falar de crianças, mas em muitas instâncias não se referem a crianças, seja se referindo a adolescentes e jovens adultos (transpondo para a nossa divisão moderna, uma vez que o mais comum em termos culturais é não separar adolescência da juventude). Não é difícil você descobrir isso, bastando acessar qualquer concordância bíblica e materiais similares. Eu vou dar apenas alguns exemplos abaixo que já são mais do que suficiente para desfazer a confusão.

Rambam/Maimônides no seu livro Guia dos Perplexos (capítulo 32 — Três Opiniões sobre a Profecia: a primeira do povo simples, a segunda dos filósofos e a terceira da Torá), ao discutir a palavra naar no contexto da vocação profética, dá 2 exemplos bem ilustrativos, o de José e o de Josué.

José no livro de Gênesis é chamado de naar quando tinha 30 anos de idade, como apresentado pela conjunção desses 2 versículos na mesma sequência narrativa:

“E estava ali conosco um jovem [naar; נַ֣עַר] hebreu [José], servo do capitão da guarda, e contamos-lhe os nossos sonhos e ele no-los interpretou, a cada um conforme o seu sonho.” (Gênesis 41:12)

“E José era da idade de trinta anos quando se apresentou a Faraó, rei do Egito.” (Gênesis 41:46)

Josué no livro de Êxodo é chamado de naar quando tinha mais de 55 anos de idade:

“E falava o Senhor a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu amigo; depois tornava-se ao arraial; mas o seu servidor, o jovem [naar; נַ֔עַר] Josué, filho de Num, nunca se apartava do meio da tenda.” (Êxodo 33:11)

Note que aqui Moisés tinha 80–81 anos de idade (pois morreu com 120 anos após a jornada de 40 anos no deserto, e o verso em questão ocorre no primeiro ano do deserto). Josué morreu 14 anos após Moisés ter morrido e Josué viveu no total 110 anos. Então fazendo a subtração, chegamos na conclusão que o naar Josué tinha 56 ou 57 anos.

Abaixo vemos como ieladim nessa mesma tradução bíblica usada é vertido como “jovens”:

“Jovens [ieladim; יְלָדִ֣ים] em quem não houvesse defeito algum, de boa aparência, e instruídos em toda a sabedoria, e doutos em ciência, e entendidos no conhecimento, e que tivessem habilidade para assistirem no palácio do rei, e que lhes ensinassem as letras e a língua dos caldeus.” (Daniel 1:4)

Um ponto curioso da palavra naar é que, a depender do contexto, ela pode designar que alguém é o servente de outra pessoa, um assistente pessoal. Exemplo:

“E com ele mil homens de Benjamim, como também Ziba, servo [נַ֚עַר] da casa de Saul, e seus quinze filhos, e seus vinte servos com ele; e prontamente passaram o Jordão adiante do rei.” (2 Samuel 19:17)

Aqui seria possível traduzir como “o moço da casa de Saul”, sendo esse “moço” usado para designar também esse atributo de assistir pessoalmente a outrem.

Agora, nesse pequeníssimo apanhado que fiz, já é de se notar que essas palavras têm uma latitude de significado bem mais aberta do que a pessoa foi levada a crer pela escolha da tradução para o português. Um mesmo termo em hebraico pode ser traduzido para o português (ou qualquer outra língua ocidental) usando 5 palavras diferentes, por exemplo.

Note, entretanto, que mesmo se você só conhece a tradução, se formos rigorosos ainda assim você não seria totalmente desculpável. Porque mesmo quando usamos a própria língua portuguesa, sem estar traduzindo nada, nós também usamos termos como “meninos” e “garotos” ou similares de maneiras que nem sempre designam “crianças” em sentido estrito.

Por exemplo, se alguém diz para outrem “você é muito garoto ainda, está longe de ser um homem!”, isso não significa necessariamente que a pessoa em questão tivesse menos de 12 ou mesmo menos de 18 anos. Você facilmente imagina contextos onde isso é dito para alguém com 20, 25, até mesmo 30 anos ou mais!

Outro exemplo: em contextos amorosos, é comum que uma das pessoas chame a outra de “meu bebê”. Também algumas mães têm por hábito chamar seus filhos de “meu bebê”, mesmo que esse filho já tenha décadas de vida.

No caso em questão, me parece que o hoax sobre esse trecho falar de crianças se popularizou por 2 motivos: 1) o fato de que alguém já traz esse trecho te “informando” que crianças foram mortas (e muitas vezes já desenhando uma imagem com crianças sendo comidas por ursas) “rouba” de você a leitura mais nuançada que você teria caso lesse isso num contexto mais normal, onde realmente tivesse um motivo intrínseco para ler o texto em questão; 2) o fato de que, aparentemente, as pessoas perderam de vista as nuances linguísticas de textos literários (seja conto, crônica, romance, etc.), seja por uma exposição menor a esses textos, seja porque o estilo da comunicação da internet é muito diferente (e agora a maior parte do ato de ‘ler’ deriva de ‘ler’ mensagens em redes sociais).

Note que no caso da exposição menor a textos literários e o tipo de linguagem (em português!) usada neles, nada muda se você disser que muitas pessoas no passado nem sequer sabiam ler. Aqui de novo provavelmente o equívoco é você estar lendo as coisas sem nuances: antes quem realmente ia ler o texto bíblico mais provavelmente tinha exposição maior a outros textos literários conjuntamente, hoje, o texto bíblico por vezes é mesmo jogado em memes de internet dentro dessas polêmicas. Então, é muito mais provável hoje que alguém que nunca se interessou por obras literárias e não está familiarizado com uma linguagem de maior sutileza acabe se deparando com trechos bíblicos polêmicos.

E, bem, os exemplos que falei (de como “garoto”, “menino”, mesmo “bebê” não designam apenas crianças estritamente falando) nem sequer são exemplos de obras literárias, mas do nosso cotidiano. Então, na verdade as pessoas enganadas ou confundidas pelo hoax têm, rigorosamente falando, plena capacidade para entender isso mesmo sem conhecimento de nenhuma obra literária….

Voltando novamente ao trecho em hebraico, essa questão do significado do nearim ketanim já foi discutida há milênios dentro do povo judeu. A Guemará do Talmude (Babilônico) foi escrita por volta do ano 500, comentando a Mishná (escrita por volta do ano 200), a qual por sua vez tinha por objetivo compilar a tradição oral dos 4 séculos anteriores. Então, a Guemará do Talmude coleciona discussões dos sábios rabínicos que viveram pelo menos entre 200 e 500, e também discute entendimentos que vieram séculos antes disso.

A Guemará do tratado Sotah do Talmude discute o significado do termo usado aqui (Talmude, Sotah 46b) e nos informa claramente que, para os Sábios, aqui não se tratava de crianças, e sim de homens jovens que se portaram de maneira a trazer vergonha/desgraça para si mesmos “como crianças”.

Aqui reside um ponto importante: o que pode parecer bizarro para você que lê hoje o texto bíblico com sua lente moderna também muitas vezes já causava essa impressão de estranheza aos rabinos da tradição milenar judaica. Muita gente se acha muito sabidona por encontrar trechos um tanto quanto complicados nas Escrituras. Bem, vocês chegaram atrasados 2.000 anos.

Mas, diferente de você, os rabinos talmúdicos estavam em posição muito melhor para entender esse tipo de trecho, uma vez que estavam muito mais próximos culturalmente e linguisticamente dos autores bíblicos originais.

2) O texto realmente afirma que Eliseu fez algo em nome de Deus? O que Deus tem a ver com a maldição proferida por Eliseu?

O segundo ponto é que Deus não tem nada a ver diretamente com a maldição. O texto em nenhum momento fala de uma intencionalidade divina aqui.

Aí talvez você esteja intrigado: “mas o texto não diz que Eliseu amaldiçoou em nome de Deus?” Bem, você certamente não estaria fazendo essa pergunta se conhecesse a fundo o texto bíblico.

O arco do profeta Eliseu dentro do livro dos [1–2]Reis faz parte de um arco maior ligado ao profeta Elias e ao reinado de Acabe e de Jezabel no Reino Israelita do Norte.

Não vou entrar aqui em todos os detalhes porque esse texto já está ficando bem longo, mas vou explicar sucintamente: o livro dos Reis narra primordialmente as vicissitudes enfrentadas pelo povo judeu na terra de Israel quando este se separou em 2 reinos distintos, um desses reinos era o do Norte, chamado de “Israel”, cuja tribo predominante era a de Efraim (por isso esse Reino também é às vezes chamado de Reino de Efraim), e o outro reino era o do Sul, chamado de “Judá”, cuja tribo predominante era a de Judá.

No Reino de Judá, uma única dinastia ficou do início ao fim: a de Davi, tendo como capital a cidade de Jerusalém (onde estava o Templo). Já no Reino de Israel, houve várias dinastias, e logo de início foram instalados santuários alternativos ao de Jerusalém em 2 cidades: Betel e Dã.

Para o escritor do livro dos Reis, apesar do Reino de Israel ao Norte ser legítimo, esses santuários rivais em Betel e Dã foram um enorme erro, isolando os israelitas do Norte em relação à Presença Divina encontrada no Templo em Jerusalém sob o sacerdócio aarônico-levítico.

Além disso, a época de Acabe (um rei judeu) e Jezabel (a rainha de origem fenícia) é vista como um ponto extremamente baixo da trajetória: o culto a YHWH/El/Elohim (o Deus de Israel) havia sido substituído em larga escala pelo culto a Baal, tendo havido emprego de violência letal contra os profetas de YHWH durante certo período.

É nesse contexto que vamos nos deparar com um dos arcos MAIS INCOMUNS do texto bíblico: o de Elias e Eliseu. Esse arco estendido é muito diferente do usual da Bíblia Hebraica, porque nele vemos uma quantidade de milagres muito maior que a média e o modus operandi de parte desses milagres envolve benefício para pessoas específicas (ao invés do foco mais comum em comunidades inteiras, enquanto esse ponto também se faça presente nesse arco). Na verdade ao contrário do que muita gente acha, a Bíblia Hebraica num geral é bem ‘magra’ em termos de milagres (as pessoas só têm uma impressão diferente porque a maioria tende a projetar o fato de que o Novo Testamento cristão tem uma quantidade gigante de milagres acontecidos em pouquíssimo tempo para dentro do “Velho” Testamento).

Então, Elias e Eliseu, além de profetas, também atuavam como ‘milagreiros’ aqui e acolá. O ‘milagreiro’ dentro do contexto judaico atua de uma maneira que não necessariamente está limitada pelo que Deus pretende fazer ou deixar de fazer. É como se esse ‘milagreiro’ conseguisse canalizar o poder divino/angelical conforme sua própria vontade (obviamente dentro de certos limites). Por isso esse tipo de figura humana às vezes limita ou constrange a própria atuação divina! (Isso só parece estranho porque venderam por aí a ideia de que Deus age de forma ilimitada na Bíblia Hebraica, mas uma leitura natural dela mostra que Deus constantemente depende dos seres humanos para poder atuar no mundo)

Pode-se dizer que, para o escritor do Livro dos Reis, enquanto o Reino do Sul pode aproveitar a Presença Divina dentro do Templo de Jerusalém, o Reino do Norte em seu pior momento (com a supremacia de Baal) recebeu como compensação a atuação nunca antes vista de profetas ao estilo de Elias e Eliseu, que usavam “poderes místicos” extraordinários para ajudar o povo comum.

Então, Deus delegou uma porção maior de “poder” para esses profetas dadas as circunstâncias apresentadas, mas essa delegação envolve um risco, de que esse “poder” não necessariamente seja usado da melhor forma possível (algo que parece ser o caso de quando Elias reteve a chuva no norte de Israel por 3 anos e desse caso de Eliseu ao amaldiçoar aqueles jovens de Betel). Ainda assim, uma vez tendo delegado esse ‘poder’, Deus tem de aceitar as consequência disso para o bem e para o mal.

Portanto, para alguém nos dias de hoje, a figura de Eliseu pode ser melhor comparável a de um “mago” ou “mágico”. Se você ler de uma tacada tudo que Eliseu fez após receber o “poder” (o que aconteceu apenas após Elias ter “desaparecido” numa carruagem de fogo), é bem claro que ele atua em muitos momentos como um ‘mago’. A questão de usar o nome divino no meio disso tudo não é estranha: a magia judaica tradicional, por exemplo, na Kaballah, utiliza o Nome Divino. No contexto judaico, a magia tem uma ligação muito forte com a manipulação das letras hebraicas a fim de surtir certos efeitos no mundo, justamente porque o hebraico seria a linguagem com que Deus criou o mundo. Agora, uma vez tendo esse conhecimento, não é preciso que haja uma intervenção divina na questão, é como se você já tivesse as ferramentas à disposição.

Além disso, no tratado Sotah do Talmude, discutindo o que significa o trecho “[Eliseu] os viu”, afirma-se que Rav entendia que os jovens em questão foram vítimas do ‘mau olhado’ de Eliseu, citando Rabban Shimon ben Gamliel segundo o qual o ‘mau olhado’ oriundo de um sábio contra alguém redunda invariavelmente em morte ou pobreza para essa pessoa (Sotah 46b).

Portanto, quando se fala em ‘amaldiçoar alguém em nome de YHWH [o Nome Divino]’, isso nada tem a ver diretamente com Deus aprovar ou desaprovar isso. A questão toda é o poder das palavras hebraicas sobre o mundo, se usadas de certas maneiras por certas pessoas habilitadas para tanto (‘sábios’).

Para finalizar essa parte, outro detalhe importante é que esse tipo de expressão onde se atrela um nome divino a alguma coisa também pode designar simplesmente um superlativo. Por exemplo, em Gênesis se fala de Nimrod como um grande caçador perante YHWH, não para designar aprovação de Nimrod, mas, ao contrário, para afirmar que ele foi o caçador mais grandioso (mesmo que isso significasse que ele se rebelasse contra Deus também!). Outro exemplo é que às vezes o que numa tradução para o português aparece sem nenhum vestígio de um nome divino na verdade o contém, mas usado nessa fórmula superlativa onde ‘uma montanha perante YHWH’ significa ‘uma montanhona’ ou ‘uma super-montanha’. Veja aqui os comentários de Kimhi/Radak e de Rashbam a Gênesis 10:9, onde mencionam os seguintes exemplos:

“Ora, Nínive era uma cidade muito grande, de três dias de caminho.” (Jonas 3:3)

“A tua justiça é como as grandes montanhas” (Salmos 36:6)

No caso do trecho de Jonas, para designar essa grandeza, usa-se “gadolá lelohim [גְּדוֹלָה֙ לֵֽאלֹהִ֔ים] ”, sendo que Elohim é um nome comum usado para ‘Deus’ na Bíblia Hebraica. A ideia seria algo como “grande perante Elohim”. Já no trecho dos Salmos, o termo traduzido como ‘grandes’ é ‘El’, que também é usado para designar Deus. Então, para Radak e Rashbam associar um nome divino a algo pode simplesmente indicar o superlativo. No caso do trecho sobre Eliseu, o uso do nome divino pode indicar a severidade da maldição em si, não uma participação divina nisso.

3) O texto realmente fala de um ato de mera piada com calvície alheia? Eliseu teria se incomodado com uma simples troça ou tinha algo a mais aqui?

O terceiro ponto é que a questão do ‘calvo’ não era uma troça inocente do jeito que estaríamos pensando olhando pelo nosso contexto, como se fosse uma simples piadinha ou algo assim. (Apesar de que mesmo no nosso contexto não é difícil imaginar como isso poderia descambar em bullying)

Dentro do contexto literário aí a ideia é de hostilidade, o ‘sobe, calvo’ pode ser entendido como ‘sai daqui, seu *@%#$, se você não sair vamos fazer algo muito ruim com você’.

O fato do texto falar que 42 daqueles jovens foram mortos pelas ursas já indica que se tratava de uma turba com dezenas de homens jovens (mais de 42), com plena capacidade potencial de ferir o profeta Eliseu andando por ali sozinho, transparecendo um intuito de expulsar Eliseu de Betel, “por bem ou por mal”.

Portanto, o contexto aí envolve hostilidade e uma postura ameaçadora e intimidadora por parte de uma turba de dezenas de homens jovens contra o profeta Eliseu.

Agora, por que esses homens jovens exibiam hostilidade contra Eliseu? Bem, aqui podemos dar uma resposta mais específica encontrada dentro da tradição judaica oral milenar baseando-se na proximidade textual imediata do texto em questão, ou pelo menos duas respostas mais gerais a partir de uma análise seja de como os termos naar katon e ieladim são usados em outros momentos do livro dos Reis seja da cidade onde isso ocorre.

Em relação à resposta mais específica encontrada no Talmude, ela parte de uma reflexão sobre o contexto literário imediato daquele trecho. O episódio em questão ocorre logo após Eliseu ter recuperado as águas de Jericó de sua contaminação, de estar ‘imprestável para uso humano’.

“E os homens da cidade [de Jericó] disseram a Eliseu: Eis que é boa a situação desta cidade, como o meu senhor vê; porém as águas são más, e a terra é estéril.
E ele disse: Trazei-me um prato novo, e ponde nele sal. E lho trouxeram.
Então saiu ele ao manancial das águas, e deitou sal nele; e disse: Assim diz o Senhor: Sararei a estas águas; e não haverá mais nelas morte nem esterilidade.
Ficaram, pois, sãs aquelas águas, até ao dia de hoje, conforme a palavra que Eliseu tinha falado.
Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo!
E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.
E dali foi para o monte Carmelo de onde voltou para Samaria.” (2 Reis 2:19–25)

Existe algum motivo para logo após Eliseu ter recuperado as águas de Jericó, pessoas terem vindo hostiliza-lo em Betel? Os rabinos há milênios acreditavam que havia uma conexão entre esses 2 eventos.

Segundo o Talmude, aqueles jovens de Betel vendiam água para a cidade de Jericó, assim lucravam com a falta de água adequada ali. Note que dentro dessa região geográfica semi-árica, a segurança hídrica é uma questão extremamente relevante e delicada. Como Eliseu restituiu a água em condições saudáveis e adequadas para consumo humano, não mais seria possível lucrar em cima disso. Por isso a hostilidade dos jovens diante de Eliseu, querendo expulsá-lo dali, vendo-o como alguém que prejudicou seus negócios. O Talmude ainda complementa que o ‘calvo’ a que se referiam não seria a calvície de Eliseu, mas que a localidade ficara ‘careca’, ‘lisa’, para aqueles jovens, por não mais poderem vender a água para os habitantes de Jericó (Talmude, Sotah 46b). Então, nessa interpretação talmúdica, o termo ‘calvo’ fora usado por aqueles jovens como uma “gíria” ou “expressão” para a perda do lucro daqueles jovens, que não mais poderiam cobrar por fornecerem água para a outra cidade.

Essa possibilidade literária envolvendo uma possível especulação financeira com base na escassez de água em boas condições para uso humano significa que a ilustração abaixo é um uso muito mais acurado do episódio de Eliseu e as Ursas do que os memes virtuais.

“Elisha Roosevelt sicketh the bears upon the bad boys of Wall Street” [Eliseu Roosevelt lança as ursas sobre os bad boys de Wall Street], Udo J. Keppler, 1907.

Nessa ilustração satírica, o episódio de Eliseu e as Ursas é usado para representar o Presidente Theodore Roosevelt, que governou os Estados Unidos de 1901 a 1909, como sendo o “Profeta Eliseu”, trazendo duas grandes ursas nomeadas como “Comissão de Comércio Interestadual” e “Tribunais Federais” (aproxime a imagem que você perceberá que isso está escrito em inglês no dorso das Ursas respectivas) contra uma turba de especuladores e financistas que manipulavam o mercado de ações em Wall Street, que com isso fogem assustados. A referência diz respeito às posições firmes de Roosevelt contra táticas de concorrência desleal. Aparentemente, essa sátira capturou bem a maneira como esse texto foi entendido ao longo de milênios no povo de origem desse texto.

Agora, mesmo que não se queira endossar uma explicação tão específica assim para a hostilidade daqueles jovens ainda temos mais duas à disposição.

A primeira explicação mais geral reflete a maneira como o termo ‘naar katon’ e ‘ieladim’ são usados em outros casos do próprio livro dos Reis. Quando esses termos aparecem, é costume que a alusão remeta à possível falta de experiência dos mais jovens, que os levam a decisões impulsivas e precipitadas, insensatas, mas que alguns jovens apresentam uma maturidade especial diante de sua menor experiência de vida.

Então, por exemplo, antes do episódio de Eliseu, o termo ‘naar katon’ aparece na boca do Rei Salomão, no qual este reconhece sua inexperiência para governar, e, em razão disso, pede a Deus sabedoria (justamente o que lhe faltaria sendo um naar katon).

“Agora, pois, ó Senhor meu Deus, tu fizeste reinar a teu servo em lugar de Davi meu pai; e sou apenas um menino pequeno [naar katon; נַ֣עַר קָטֹ֔ן]; não sei como sair, nem como entrar.
E teu servo está no meio do teu povo que elegeste; povo grande, que nem se pode contar, nem numerar, pela sua multidão.
A teu servo, pois, dá um coração entendido para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; porque quem poderia julgar a este teu tão grande povo?” (1 Reis 3:7–9)

Também antes do episódio de Eliseu, vemos como jovens que não reconhecem sua inexperiência podem causar um estrago imenso.

“veio, pois, Jeroboão e toda a congregação de Israel, e falaram a Roboão [o rei sucessor de Salomão], dizendo:
Teu pai agravou o nosso jugo; agora, pois, alivia tu a dura servidão de teu pai, e o pesado jugo que nos impôs, e nós te serviremos.
E ele lhes disse: Ide-vos até ao terceiro dia, e então voltai a mim. E o povo se foi.
E teve o rei Roboão conselho com os anciãos que estiveram na presença de Salomão, seu pai, quando este ainda vivia, dizendo: Como aconselhais vós que se responda a este povo?
E eles lhe falaram, dizendo: Se hoje fores servo deste povo, e o servires, e respondendo-lhe, lhe falares boas palavras, todos os dias serão teus servos.
Porém ele deixou o conselho que os anciãos lhe tinham dado, e teve conselho com os jovens [iladim; יְלָדִים֙] que haviam crescido com ele, que estavam diante dele.
E disse-lhes: Que aconselhais vós que respondamos a este povo, que me falou, dizendo: Alivia o jugo que teu pai nos impôs?
E os jovens [iladim; יְלָדִים֙] que haviam crescido com ele lhe falaram: Assim dirás a este povo que te falou: Teu pai fez pesadíssimo o nosso jugo, mas tu o alivia de sobre nós; assim lhe falarás: Meu dedo mínimo é mais grosso do que os lombos de meu pai.
Assim que, se meu pai vos carregou de um jugo pesado, ainda eu aumentarei o vosso jugo; meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões.” (1 Reis 12:3–11)

Esses iladim simplesmente ocasionaram a ruptura do povo judeu em 2 reinos, com base num conselho bem absurdo!

Por outro lado, depois do episódio de Eliseu e as Ursas, mas ainda no arco de Eliseu, temos o caso de uma jovem moça, uma naara ketanah, que exibe um comportamento totalmente contrastante aos nearim ketanim que hostilizaram Eliseu.

“E Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu senhor, e de muito respeito; porque por ele o SENHOR [YHWH] dera livramento aos sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso.
E saíram tropas da Síria atacando a terra de Israel e levaram presa uma menina [naara ketanah; נַעֲרָ֣ה קְטַנָּ֑ה] que ficou ao serviço da mulher de Naamã.
E disse esta à sua senhora: Antes o meu senhor estivesse diante do profeta que está em Samaria; ele o restauraria da sua lepra.” (2 Reis 5:1–3)

Note: essa moça havia sido levada prisioneira para terras sírias, virou ali escrava na casa de um capitão do exército sírio, Naamã. Apesar disso, ainda encontrou em seu coração uma atitude de compaixão para com o oficial do exército responsável pela sua escravização, em vista do fato de que Naamã sofria de lepra. Por isso, essa jovem judia informa à esposa de Naamã sobre o profeta Eliseu, como o profeta poderia curá-lo (e note, assim ajudando um oficial do exército inimigo!).

Então, pode-se dizer que essas referências ao caráter juvenil/jovem de certos personagens remete a essa questão da insensatez e da sabedoria, da impulsividade agressividade versus a disposição serena, ilustrando como diferentes personagens numa faixa etária similar, com pouca experiência na vida, tomaram atitudes bem diferentes.

Isso não passou desapercebido na tradição judaica, onde no mesmo tratado do Talmude que já referimos, diz-se que o Rabbi Elazar entendeu o termo ‘nearim ketanim’ para aqueles jovens do caso das ursas como um trocadilho: nearim, porque foram sacudidos [menoarim] e encontrados vazios de mitzvot [preceitos], e ketanim, porque eram pequenos em fé [ketannei emana] (Talmude, Sotah 46b). Rashi em seu comentário ao verso segue o mesmo caminho: sua ‘juvenilidade’ era o fato de serem ‘meninos pequenos’ em termos de cumprimento dos preceitos da Torá, isto é, não cumpriam os ditames da Torá. Por isso vemos ele agindo como escarnecedores hostis contra alguém que representasse a Torá e a busca desta pela justiça.

Agora, também podemos olhar de maneira geral por outro ângulo: por que esse incidente ocorre em Betel, logo após de algo ter ocorrido em Jericó? Sim, mesmo um detalhe desse pode ser relevantíssimo para entender melhor o que está em jogo nesse episódio!

Sobre a cidade de Jericó, havia uma maldição proferida há muito tempo por Josué, após a destruição dessa cidade vários séculos antes:

“E naquele tempo Josué os esconjurou, dizendo: Maldito diante do Senhor seja o homem que se levantar e reedificar esta cidade de Jericó; sobre seu primogênito a fundará, e sobre o seu filho mais novo lhe porá as portas.” (Josué 6:26)

Note que essa narrativa faz parte do livro de Josué, que se liga num elo contínuo com Juízes e [1–2]Samuel para chegar ao livro dos [1–2]Reis, no que os estudiosos chamam de História Deuteronomista. Então o livro dos Reis aborda como Jericó foi reconstruída sob o comando de um rei do Reino de Israel ao Norte, justamente o Rei Acabe, contemporâneo de Eliseu! Em 1Reis 16:34 se fala como a maldição de Josué realmente afligiu o responsável (Hiel o betelita) pela reconstrução da cidade, com a morte de seus filhos (Abirão seu primogênito e Segube seu caçula).

Agora, indo mais adiante no tempo, Eliseu encontra Jericó reconstruída, mas tendo esse sério problema com a água, o que mostra o quanto aquele lugar era ‘amaldiçoado’ ainda. Então, Eliseu vem e resolve isso, ‘abençoando’ a água do local e assim por extensão abençoando a própria cidade novamente, revertendo aquilo que Josué fizera (pois, resolvido o problema da água, a cidade de Jericó tornava-se novamente habitável de forma plena).

O caso de Betel é o contrário disso. Dela se dizia que o próprio ancestral direto de todo o povo israelita do norte ao sul, o patriarca Jacó (também chamado de Israel), havia abençoado aquele local, após ter tido uma visão mística ali. Por isso aquele lugar seria conhecido como ‘Beit El’, a ‘casa de Deus’:

“Partiu, pois, Jacó de Berseba, e foi a Harã;
E chegou a um lugar onde passou a noite, porque já o sol era posto; e tomou uma das pedras daquele lugar, e a pôs por seu travesseiro, e deitou-se naquele lugar.
E sonhou: e eis uma escada posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela;
E eis que o Senhor estava em cima dela, e disse: Eu sou o Senhor Deus de Abraão teu pai, e o Deus de Isaque; esta terra, em que estás deitado, darei a ti e à tua descendência;
E a tua descendência será como o pó da terra, e estender-se-á ao ocidente, e ao oriente, e ao norte, e ao sul, e em ti e na tua descendência serão benditas todas as famílias da terra;
E eis que estou contigo, e te guardarei por onde quer que fores, e te farei tornar a esta terra; porque não te deixarei, até que haja cumprido o que te tenho falado.
Acordando, pois, Jacó do seu sono, disse: Na verdade o Senhor está neste lugar; e eu não o sabia.
E temeu, e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus.
Então levantou-se Jacó pela manhã de madrugada, e tomou a pedra que tinha posto por seu travesseiro, e a pôs por coluna, e derramou azeite em cima dela.
E chamou o nome daquele lugar Betel; o nome porém daquela cidade antes era Luz.
E Jacó fez um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta viagem que faço, e me der pão para comer, e vestes para vestir;
E eu em paz tornar à casa de meu pai, o Senhor me será por Deus;
E esta pedra que tenho posto por coluna será casa de Deus; e de tudo quanto me deres, certamente te darei o dízimo.” (Gênesis 28:10–22)

Contudo, o autor do livro dos Reis encontra Betel numa situação lamentável: ainda é a ‘casa de El’, mas Deus está sendo adorado ali de forma equivocada, por conta da questão dos bezerros de ouro no santuário patrocinado pelo Reino do Norte (veja os posts [180]-[181]). E no contexto do reinado de Acabe, a própria ‘casa de El’ estava cheia daqueles que cultuavam Baal.

Então aqui, Eliseu reverte a bênção em maldição, contra os jovens escarnecedores na Betel de seu tempo, que quebraram os caminhos de justiça da Torá e se apresentavam como partidários de Baal, por isso insultando e hostilizando o profeta Eliseu, partidário de El/YHWH o Deus de Israel.

É por esse contexto mais geral que a discussão rabínica mais específica sobre a conexão entre o que ocorre em Jericó e o que ocorre em Betel de fato ressoa muito com o que o próprio texto indica com esses paralelismos do ‘lugar amaldiçoado que é abençoado’ e ‘lugar abençoado que é amaldiçoado’. E também nesse mesmo contexto, uma das opiniões dos Rabinos — a do Rabi Yitzhak Nappaha — sobre o trecho ‘[Eliseu] os viu’ é que ele teria visto o corte de cabelo daqueles jovens (Sotah 46b): estariam ostentando um corte indicativo (naquele contexto) de sua afiliação a Baal e rejeição da identidade judaica, assim, não restando dúvida sobre a intenção belicosa daqueles jovens contra os seguidores da aliança de YHWH. Mais uma vez vemos como a discussão rabínica emprega elementos sutis remetidos pelo texto em questão.

4) O texto realmente afirma que Eliseu fez algo correto? Onde que Deus — ou mesmo o narrador do livro ou qualquer outro personagem — em algum momento justifica a ação de Eliseu?

O quarto ponto é que o texto deixa margem a discutir se Eliseu estava certo ou não em usar seu ‘poder’ dessa maneira. Nada há no texto que afirme que a reação de Eliseu tenha sido a mais correta, ou que não tenha sido exagerada.

Nesse ponto, há milênios os Sábios do Talmude entendiam que Eliseu foi punido com uma doença por conta de ter incitado as ursas contra os jovens (Sotah 47a), no contexto de uma lista das 3 vezes que Eliseu teria ficado doente.

De fato, o início da discussão desse episódio de Eliseu em Sotah 46b começa a partir de uma discussão sobre a importância de acompanhar outra pessoa quando ela for andar por algum lugar, especialmente indo de uma cidade para outra. A razão primordial é a questão da segurança envolvida em estar acompanhado. E aí é feita uma digressão a respeito de Eliseu e as ursas, porque os rabinos entendiam que, se Eliseu tivesse sido acompanhado pelos profetas que estavam em Jericó, nada dessa confusão toda teria acontecido e teria sido possível evitar aquelas mortes de acontecerem. Então, vemos que, para os Rabinos, esse ataque das ursas ocasionando a morte de 42 jovens, mesmo que fossem jovens abertamente hostis ao pacto da Torá, era visto como um acontecimento trágico que poderia ter sido evitado — e repito: eles pensavam assim HÁ MILÊNIOS ATRÁS.

Aqui noto também que a inexperiência daqueles jovens de certa forma também remete à inexperiência do próprio Eliseu no tocante ao uso de seu ‘poder místico’ recém-adquirido nessa narrativa (a purificação da água de Jericó foi seu 1º uso do poder, e a maldição contra os jovens foi apenas seu 2º uso). Me parece plausível dizer que talvez nem o próprio Eliseu soubesse a extensão do poder que tinha, e assim àquela altura não entendia que se proferisse uma maldição, isso poderia ocasionar consequências muito severas, mesmo que sua intenção não fosse exatamente essa.

Ainda assim, dentro da visão rabínica, sendo um profeta, ele deveria saber melhor e é responsabilizado por Deus, sendo punido com uma doença (algo que, segundo os rabinos, se repetirá após ele ter sido excessivamente rigoroso contra seu ‘servente’, seu ‘moço’, seu naar, no desfecho do episódio envolvendo Naamã, quando esse jovem servente irá ter uma atitude errada).

E a punição funciona, pois Eliseu abstém-se de amaldiçoar possíveis jovens similares daí em diante. Pense comigo: se levarmos muito a sério o ocorrido em termos de nexo causal, então o que impediria Eliseu de sair amaldiçoando todos os maus elementos de Israel, agindo assim como uma espécie de vigilante ou justiceiro? Não seria uma solução bem mais simples para todo o problema daquela época que Eliseu mandasse ursas atacarem todos os delinquentes do país inteiro? O fato desse episódio acontecer isoladamente dentro do arco narrativo mostra que, se Eliseu realmente fosse capaz de produzir ataques de animais selvagens a pessoas de mau caráter, ele se absteve de fazê-lo na esmagadora maioria do tempo — justamente porque esse não era o caminho (e é o próprio texto bíblico que nos remete sutilmente a isso por ter colocado esse episódio como um caso isolado dentro do arco narrativo maior no qual se insere).

5) O desenvolvimento de personagem ao longo de todo o arco narrativo de Eliseu no livro dos [1–2]Reis não teria algo a dizer sobre a interpretação desse trecho?

O quinto ponto é que o arco inteiro do profeta Eliseu coloca em outra perspectiva esse trecho porque no geral ele vai usar tais ‘poderes’ para ajudar israelitas comuns que necessitavam de ajuda em situações cotidianas. Exemplo:

“E foi com eles; e, chegando eles ao Jordão, cortaram madeira.
E sucedeu que, derrubando um deles uma viga, o ferro caiu na água; e clamou, e disse: Ai, meu senhor! ele era emprestado.
E disse o homem de Deus: Onde caiu? E mostrando-lhe ele o lugar, cortou um pau, e o lançou ali, e fez flutuar o ferro.
E disse: Levanta-o. Então ele estendeu a sua mão e o tomou.” (2 Reis 6:4–7)

Outro exemplo:

“E uma mulher, das mulheres dos filhos dos profetas, clamou a Eliseu, dizendo: Meu marido, teu servo, morreu; e tu sabes que o teu servo temia ao SENHOR; e veio o credor, para levar os meus dois filhos para serem servos.
E Eliseu lhe disse: Que te hei de fazer? Dize-me que é o que tens em casa. E ela disse: Tua serva não tem nada em casa, senão uma botija de azeite.
Então disse ele: Vai, pede emprestadas, de todos os teus vizinhos, vasilhas vazias, não poucas.
Então entra, e fecha a porta sobre ti, e sobre teus filhos, e deita o azeite em todas aquelas vasilhas, e põe à parte a que estiver cheia.
Partiu, pois, dele, e fechou a porta sobre si e sobre seus filhos; e eles lhe traziam as vasilhas, e ela as enchia.
E sucedeu que, cheias que foram as vasilhas, disse a seu filho: Traze-me ainda uma vasilha. Porém ele lhe disse: Não há mais vasilha alguma. Então o azeite parou.
Então veio ela, e o fez saber ao homem de Deus; e disse ele: Vai, vende o azeite, e paga a tua dívida; e tu e teus filhos vivei do resto.” (2 Reis 4:1–7)

Então, o profeta Eliseu vai contribuir em várias problemáticas sociais envolvendo diferentes pessoas ou grupos, como a escassez de água potável adequada (2Reis 2:19–22), a servidão por dívidas (2Reis 4:1–7), o cerco de uma cidade por um exército inimigo com suas consequências de fome disseminada (chegando aos extremos do canibalismo) e inflação generalizada (2Reis 6–7), a insegurança alimentar em períodos de fome (2Reis 4:38–44; 2Reis 8:1), e a restituição de terras de pessoas que tiveram de migrar em decorrência da escassez alimentar transitória (2Reis 8:1–6). Em todos esses casos Eliseu usa seus ‘poderes’ para trazer o bem a várias pessoas (e grupos de pessoas) em contextos sociopolíticos complicados.

E no extremo Eliseu opera a ressurreição de um menino em favor de uma mulher que o acolhera com grande hospitalidade (2Reis 4:8–37). As 3 narrativas de ressurreição/reanimação de um morto na Bíblia Hebraica envolvem Elias e Eliseu. Como eu disse antes, trata-se de um arco realmente muito diferente!

Em dado momento Eliseu chega a pedir para o exército israelita que poupe um exército inimigo inteiro que atacava Israel naquela época (ou seja, mesmo havendo justa causa para revidar e mesmo se tratando de idólatras):

“E, quando o rei de Israel os viu, disse a Eliseu: Feri-los-ei, feri-los-ei, meu pai?
Mas ele disse: Não os ferirás; feririas tu os que tomasses prisioneiros com a tua espada e com o teu arco? Põe-lhes diante pão e água, para que comam e bebam, e se vão para seu senhor.
E apresentou-lhes um grande banquete, e comeram e beberam; e os despediu e foram para seu senhor; e não entraram mais tropas de sírios na terra de Israel.” (2 Reis 6:21–23)

Isso sem contar o próprio caso da cura de um oficial do exército inimigo anteriormente (Naamã, já citado).

Ou seja, depois de Betel, Eliseu fez muito mais coisas, e fica claro que Eliseu não era nem de longe a caricatura que pintaram dele como um ‘assassino de crianças’ nesse hoax virtual.

O desenvolvimento do personagem (sob uma perspectiva literária) mostra que Eliseu atuará em diversas ocasiões com uma atitude bem compassiva para com os sofrimentos não só da população judia, mas até de estrangeiros sírios, mesmo quando estes fossem soldados inimigos que afligiam Israel naquele momento.

Tendo explicado tudo isso, espero que você não caia mais nesse hoax tão infundado, e talvez mesmo consiga agora apreciar as sutilezas envolvidas nessa narrativa literária.

Epílogo: Um ponto que encontro peculiar também na crítica neo-atéia ao episódio é que dão quase a entender que Eliseu cometeu assassinato a sangue frio. Se alguém amaldiçoa outra pessoa, e essa outra pessoa depois de algum tempo acaba morrendo num ataque por um animal selvagem, eu duvido muito que a maioria de nós entenderia que quem a amaldiçoou seja um ‘assassino’. Além disso, ataques de animais selvagens não eram exatamente raros no contexto histórico em questão, e, se formos rigorosos, o fato de uma maldição ter sido proferida anteriormente ao ataque não significa necessariamente um nexo causal entre a maldição e o ataque. Mas justamente porque pode ser que aconteça algo que se evita amaldiçoar os outros, independente de se acreditar que a maldição tenha poder causal em si mesma ou não (raciocínio similar vale para abençoar os outros, só que invertido, pois abençoar os outros é algo bom justamente porque pode ser que algo bom aconteça). As palavras de desgraça costumam ser impensadas, porque é provável que você não deseje a sério aquilo que falou no calor do momento, mas, caso aconteça, você se sentiria mal por ter desejado (de certa forma) algo que acabou acontecendo. Então, dentro de uma perspectiva mais naturalista sobre o tipo de situação aqui retratada, ainda há todo um campo de reflexão interessante que esse hoax infelizmente obscurece.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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