[182] O que é o neo-ateísmo que critico no blog?
Um dos objetivos do presente blog, como explicado no post [0], era questionar uma visão caricatural sobre o Deus do “Velho” Testamento (como é vulgarmente conhecida a Bíblia Hebraica/Tanak), que é compartilhada tanto por pessoas religiosas como por pessoas não religiosas, sendo que essas últimas geralmente são ‘neo-atéias’.
No contexto online, o neo-ateísmo foi o principal responsável pela propagação dessa visão deturpada e difamatória a respeito da Bíblia Hebraica (e, por extensão, do judaísmo). Por isso tenho uma crítica incisiva ao neo-ateísmo, entendendo-o como um obstáculo a uma discussão sadia sobre essas questões.
Esclareço logo de partida que considero o ateísmo em si uma posição perfeitamente legítima e razoável a respeito da questão religiosa. Eu mesmo compartilho muitos pressupostos teóricos com muitos ateus incluso aqui os neo-ateus (por exemplo, o apreço pela evidência científica e pela racionalidade analítica, uma visão de mundo naturalista e científica, ser contra o preconceito contra ateus etc.), inclusive concordo com uma das teses ateístas centrais: a de que não existe um Ser ao mesmo tempo Onipotente, Onisciente e Onibenevolente (e muito menos um que seja assim e ainda tenha imutabilidade, simplicidade, perfeição etc.). Só que sou rápido em destacar que muitas concepções clássicas e tradicionais sobre Deus não o entendem como detentor de todos esses atributos (incluindo-se aqui a própria Bíblia Hebraica!). Veja posts [108]-[177]-[178]-[179]. Por fim, também já escrevi a respeito de que um ateu pode ser um existencialista religioso ([2]) e muitos leitores aqui do blog são ateus e/ou agnósticos.
Agora voltando ao tópico desse texto, algumas pessoas me questionaram sobre o que exatamente seria o ‘neo-ateísmo’. Achei estranho, mas aparentemente em alguns meios o termo ‘neo-ateu’ soaria pejorativo. A questão é que ‘neo-ateísmo’ designa algo muito coeso cujo termo padrão no cenário internacional é esse mesmo, mapeando uma nova onda de livros em defesa do ateísmo, que alcançaram os hits culturais de best-seller, bem como o conjunto de ideias e atitudes articuladas naqueles livros e em um grande número de textos, entrevistas, etc. que se seguiram a eles.
Aparentemente, alguns religiosos cristãos conservadores usam o termo ‘neo-ateu’ de forma pejorativa em vídeos do youtube ou algo assim, esvaziando o significado do termo (eu não posso dar certeza disso, porque tudo o que sei sobre neo-ateísmo sei por meio de fontes sérias, não de debates onlines de quinta categoria). Mas o ponto é que OBVIAMENTE não uso aqui dessa forma e é mesmo ofensivo comparar meu trabalho no blog com esse tipo de conteúdo.
De qualquer forma, já que essa dúvida surgiu, vou explicar o que é o “neo-ateísmo”. Trata-se de um tipo de ateísmo representado principalmente pelos livros best-sellers dos Quatro Cavaleiros do Ateísmo (Sam Harris, Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens), todos publicados no início do século XXI, na sequência dos eventos do “11 de setembro”: “O Fim da Fé: religião, terrorismo e o futuro da razão” (2004; Sam Harris); “Deus um Delírio” (2006; Richard Dawkins); “Quebrando o Encanto: a religião como fenômeno natural” (2006; Daniel Dennett); “Deus Não É Grande: como a religião envenena tudo” (2007; Christopher Hitchens).
Após a publicação desses livros, muitos mais textos, entrevistas, etc. se seguiram, onde esses autores tiveram oportunidade de explicar à exaustão quais eram suas posições, pensamentos, etc. nesse tópico. (Cabe destacar que isso vale especialmente para Sam Harris, Richard Dawkins e Christopher Hitchens, uma vez que, até onde eu sei, a contribuição maior de Dennett a esse movimento foi o livro de 2006, mas depois disso ele aparentemente partiu para outros assuntos de seu interesse como acadêmico)
O que caracteriza o ‘neo-ateísmo’? Trata-se de um ateísmo (negação da existência de Deus) que se coloca em hostilidade frontal às religiões (no máximo dando espaço para uma espiritualidade sem religião), entendendo que as religiões em geral são nocivas para a humanidade e, ainda mais especificamente, que a figura de Deus e tudo o mais a Ele associado seria prejudicial ao progresso humano. A principal motivação encontrada para negar a existência de Deus estaria nos avanços da ciência moderna, entendida como a única ou principal forma de alcançar conhecimento sobre o mundo, de tal maneira que, racionalmente, quando se vai até as últimas consequências, optar pela ciência implicaria em rejeitar a religião. Portanto, para melhorar o mundo e fazer avançar a humanidade para uma nova era da razão, seria importante fazer proselitismo ativo do ateísmo e anti-religião.
Então, para além da descrença em Deus, o neo-ateísmo tem como características: 1) a tese de que as religiões em geral são nocivas; 2) a fundamentação para o ateísmo reside na ciência moderna, cujas teorias empíricas sobre o universo substituem e contradizem as ‘teorias’ religiosas sobre o mundo, tornando irracional ter crenças religiosas; 3) a consequência prática de que vale a pena trazer mais pessoas para o lado do ateísmo e da não-religião, como corolário de as trazer para perto da ciência e da racionalidade.
Note que o neo-ateísmo tem como pressuposto a rejeição da noção de “Magistérios Não-Sobrepostos” (Non-Overlapping Magisteries) proposta pelo biólogo Stephen Jay Gould em um ensaio de 1997. Segundo essa visão, a ciência e a religião não precisariam estar em conflito, pois a ciência lidaria com questões de fato, enquanto a religião lidaria com questões de valor. Já para o neo-ateísmo, não somente os domínios se sobrepõem como se sobrepõem de forma absoluta e contraditória, de modo que apenas um único ‘magistério’ seria válido: ou o magistério da ciência ou o magistério da religião, e a evidência racional estaria toda em favor do Magistério Único da Ciência.
Existem outras maneiras de descrever esse básico sobre o neo-ateísmo (veja PIGGLIUCI, 2013; KETTEL, 2016; TAYLOR, 2017), com apenas ligeiras diferenças, mas essa é a minha maneira de defini-lo (e defino assim há mais de 1 década).
No contexto específico do meu blog, uma característica acessória do neo-ateísmo é de especial relevância: a maneira como os neo-ateus, em especial Richard Dawkins e Christopher Hitchens, abordam a Bíblia Hebraica (“Velho” Testamento) e o judaísmo, de maneira que, inclusive, chega a beirar o antissemitismo (ou se torna francamente antissemita mesmo).
Nessa questão de antissemitismo entram p. ex. a caracterização dada por Dawkins ao “Deus do Velho Testamento” e a maneira como Hitchens lamentou a vitória da revolta macabéia contra o rei sírio Antíoco Epifânio (rei este que literalmente tentou abolir o judaísmo à força!).
Muitos neo-ateus se portam como se fossem muito entendidos de Bíblia e do que seria o “Deus do Velho Testamento”, propagando reais mentiras e deturpações por aí.
O mais curioso é que, nesse trabalho de tentar demolir o Deus bíblico-judaico, o neo-ateismo anda de mãos dadas com o fundamentalismo cristão no seguinte sentido: os neo-ateus leem a Bíblia (‘Velho’ e Novo Testamentos) de forma muito parecida com a maneira como um cristão fundamentalista/fanático lê a Bíblia, com a diferença que o referido cristão aceita a autoridade da Bíblia, enquanto os neo-ateus a rejeitam. Algo muito similar ocorre com a leitura que eles fazem do Corão: “por coincidência” os neo-ateus entenderam o Corão da mesma forma que um muçulmano fundamentalista entenderia!
É por isso que por vezes me refiro ao neo-ateísmo como fundamentalismo ateu: o neo-ateísmo basicamente compra a leitura fundamentalista das Escrituras, seja judaicas, cristãs ou islâmicas, como se fosse a leitura correta desses textos. Nisso acabam sendo TÃO FUNDAMENTALISTAS quanto os religiosos que juraram combater, pois, para os neo-ateus, ‘Deus’ é o que um fundamentalista religioso acha que Deus seria.
Obviamente que se o objetivo fosse demolir a visão de Deus ou do Sagrado propagada pelos fundamentalistas religiosos de qualquer tipo (seja judeus, cristãos, islâmicos, budistas, hindus, etc.), eu não teria problema nenhum com isso, afinal, constantemente faço isso aqui no blog. Inclusive há muitas razões TRADICIONAIS para ser PROGRESSISTA — o fundamentalismo não representa nem mesmo o que é o realmente tradicional em termos de sua tradição específica, por mais que se arrogue como tradicionalista.
O problema é que o neo-ateísmo na verdade anda de mãos dadas com esses fundamentalistas religiosos, validando a leitura completamente equivocada que os fundamentalistas fazem do textos, como se a interpretação fundamentalista fosse a essência da sua religião respectiva!
No caso da Bíblia Hebraica, é ainda pior porque não somente se prioriza uma leitura fundamentalista, como também uma leitura puramente cristianizada — ignorando completamente o fato de que a Bíblia Hebraica é uma coletânea judaica, que deve ser compreendida em termos da cultura judaica que a produziu e que a continuou lendo na língua original por milênios, utilizando de um processo bem intrincado de raciocínio (a lógica talmúdica) para aplicar aqueles textos na prática (o que se chama de Torá Oral, não sendo suficiente apenas o texto escrito). O judaísmo é primordialmente uma metodologia, não uma doutrina ou dogmas. E o judaísmo é uma CIVILIZAÇÃO, que vai muito além da religião (enquanto esta seja um componente importante dela).
Se você quer aprender sobre uma tradição religiosa (qualquer uma), existem fontes muito melhores — tanto tradicionais e históricas quanto acadêmicas e modernas — do que os livros dos fundamentalistas cristãos ou islâmicos etc. a respeito dessa tradição religiosa. E da mesma forma, MUITO MELHORES do que os livros dos neo-ateus. (Aqui uma exceção pode ser dita a respeito do livro de Dennett, uma vez que ali existe uma contribuição ao campo do estudo da teoria da evolução cultural da religião, apesar de que ainda assim existem fontes mais bem balizadas)
Então, aprender religião com “Deus um delírio” ou “Deus não é grande” é como aprender sobre cristianismo comprando um livro de um autor evangélico aleatório cuja tendência teológica seja a do Evangelismo Gospel ou da Nova Direita Gospel (contra os quais falei nos posts [159]-[160]-[161]-[162]-[163]-[164]-[165]-[166]-[167]). Não é uma boa ideia.
E digo mais ainda: mesmo aprender sobre ateísmo com esses livros é problemático. Também existem fontes melhores para isso (que comentarei no post em sequência a esse). O motivo é que existem muito mais variantes de ateísmo e agnosticismo do que esses livros neo-ateus levaram as massas (especialmente os jovens da era online) a acreditar.
Basicamente essa é a crítica central do meu blog ao neo-ateísmo. Tenho outras críticas também (p. ex. a respeito de qual seria a real relação entre ciência e religião, a questão do lugar do Islã na história mundial, etc.), mas creio que seja melhor falar desses pontos separadamente em outros textos, para tratar do mérito em si dessas outras questões.
Também devo destacar que, do fato de eu ser totalmente contrário ao neo-ateísmo, não acho que qualquer coisa escrita por um neo-ateu seja ruim. Por exemplo, gosto muito dos trabalhos de divulgação de Richard Dawkins em matéria de biologia (como “O Maior Espetáculo da Terra: as evidências da evolução” e “O Gene Egoísta”).
No próximo post trarei um panorama das variantes de ateísmo e agnosticismo, e farei recomendações de excelentes livros em matéria de ateísmo/agnosticismo, muito melhores e mais sérios que os dos neo-ateus.
Dessa forma, meu veredicto é que a popularização online do neo-ateísmo foi um erro colossal, que por muito tempo ainda dificultará um debate saudável e sofisticado sobre a religião e sobre o próprio ateísmo.
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