[160] O Novo Testamento NÃO apoia o Evangelismo Gospel

A Estrela da Redenção
11 min readNov 6, 2021

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Enquanto aqui geralmente eu fale da Bíblia Hebraica e de perspectivas judaicas, hoje apresento um foco diferente: vamos falar do Novo Testamento cristão.

Como vimos no post anterior “[159] Bob Marley é MAIS BÍBLICO que o Evangelismo Gospel”, o ‘evangelismo gospel’ é muito menos bíblico do que parece, apesar de sua retórica baseada em ‘estamos seguindo a Palavra de Deus’.

Mas talvez o leitor tenha ficado intrigado: mesmo que eu tenha mostrado que, pra maior parte da própria Bíblia Cristã (que é a Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida por “Velho” Testamento), esse evangelismo gospel erra totalmente o ponto, será que haveria algum sentido para isso pelo menos no Novo Testamento?

O objetivo desse artigo será mostrar que a resposta a essa pergunta é um claro “não”. Uma análise imparcial do Novo Testamento (até por sua conexão à própria Bíblia Hebraica) nos leva a concluir que o evangelismo focado em números nunca foi o objetivo nem de Jesus, nem de Paulo, etc.

Antes de prosseguir, é preciso lembrar a maneira como defini a ideia de ‘evangelismo gospel’ no post anterior. Um dos componentes centrais desse fenômeno religioso, conforme explicado ali, é a de formar um meio ‘gospel’ baseado em um grande número de denominações e ministérios autônomos entre si, cujo foco é a maximização do número de pessoas dentro dessas igrejas. O meio ‘gospel’ gira em torno do evangelismo ou evangelização: atrair pessoas para o meio ‘gospel’ redunda na opção de escolher uma entre um grande número de igrejas possíveis que concorrem entre si (Assembleia de Deus, Universal, Mundial, Quadrangular, Batistas de vários tipos, etc.) ou, se preferir, apenas acompanhar o ministério de algum Pastor-Figurão específico (ex. Silas Malafaia, Edir Macedo etc.).

Numa leitura superficial do Novo Testamento, realmente pode parecer que haja algum apoio para esse tipo de evangelismo ali. Afinal, Jesus não mandou pregar para as nações? E Paulo não saiu pelo Império Romano pregando o Evangelho? Vamos analisar isso com calma.

Em relação a Jesus, referida missão evangelística se baseia numa passagem do Evangelho de Mateus, relatando uma fala de Jesus após sua ressurreição (logo, isso não é do Jesus histórico, acessível por métodos históricos, mas do Cristo da fé pós-pascal; reveja o post [143] se precisar entender esse ponto). Ali Jesus instrui os seus apóstolos a propagarem seu ensino em todas as nações, “a Grande Comissão”:

“E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: É-me dado todo o poder no céu e na terra.
Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;
Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém.” (Mateus 28:18–20)

“The Great Comission” [A Grande Comissão], Nalini Jayasuriya (Sri Lanka), 2002.

O evangelismo gospel interpreta essa passagem da seguinte forma: precisamos que o maior número possível de pessoas ‘aceite Jesus como seu Senhor e Salvador pessoal’, como uma condição para que sejam salvas. Mas o texto não afirma isso. O que o texto afirma é para fazer DISCÍPULOS, não para maximizar o número de membros ou ouvintes numa igreja.

Agora pense na vida de Jesus antes da sua morte, como relatada no próprio Evangelho de Mateus e nos outros Evangelhos. Jesus não tinha apenas discípulos, ele também falava às multidões interessadas no seu ensinamento e que levavam algo dele para o resto de suas vidas (seja uma palavra, seja uma cura, etc.). Seria incoerente que ele na verdade estivesse condenando ‘a multidão’ porque a maioria não chegava a ser discípulo em tempo integral. (Um livro interessante a abordar esse aspecto muitas vezes subestimado das narrativas evangélicas, num tratamento bem literário e poético, é o clássico “O Filho do Homem”, do cristão maronita Khalil Gibran)

Algo similar se aplica na interpretação desse trecho que finaliza o Evangelho de Mateus. A ideia é levar o ensinamento a outros lugares do mundo, fazendo com que tal ensinamento seja conhecido pelas pessoas desses locais, no decorrer disso formando discípulos de Jesus ali, num processo ORGÂNICO, não forçado por técnicas de marketing ou favorecimentos políticos. Isso inclusive é apresentado claramente na famosa parábola da semeadura de Jesus (Mateus 13:1–23). Enquanto Jesus pensava o lançar da semente do evangelho em termos de agricultura familiar, os evangelistas gospel acham que Jesus falava de monocultura agrícola de escala industrial usando fertilizantes e produtos químicos!

Aqui cabe destacar que precisamos também entender no devido contexto o que era esse ensinamento de Jesus a ser propagado por aí. Por questões de espaço voltarei a isso em um próximo texto dando sequência a este.

Além disso, também podemos perceber com base nos textos do Novo Testamento que Jesus não via a sua missão como exclusivista no que diz respeito ao discipulado. Por exemplo, é notável o fato de que o ministério de Jesus era simpático ao de João Batista, que o batizara. Com o aparecimento de Jesus, o movimento do Batista não se esvaiu, e nem Jesus pretendia que isso acontecesse. Ao contrário, como observamos nos evangelhos, o Batista continuou a ter seus próprios discípulos, e não havia animosidade entre esses movimentos distintos, ambos no aguardo do Reino de Deus:

“E correu dele esta fama por toda a Judéia e por toda a terra circunvizinha.
E os discípulos de João [Batista] anunciaram-lhe todas estas coisas.
E João, chamando dois dos seusdiscípulos, enviou-os a Jesus, dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?
E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram: João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?
E, na mesma hora, curou muitos de enfermidades, e males, e espíritos maus, e deu vista a muitos cegos.
Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho.
E bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar.
E, tendo-se retirado os mensageiros de João, começou a dizer à multidão acerca de João: Que saístes a ver no deserto? uma cana abalada pelo vento?
Mas que saístes a ver? um homem trajado de vestes delicadas? Eis que os que andam com preciosas vestiduras, e em delícias, estão nos paços reais.
Mas que saístes a ver? um profeta? Sim, vos digo, e muito mais do que profeta.
Este é aquele de quem está escrito: Eis que envio o meu anjo diante da tua face, O qual preparará diante de ti o teu caminho.
E eu vos digo que, entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João o Batista; mas o menor no reino de Deus é maior do que ele.
E todo o povo que o ouviu e os publicanos, tendo sido batizados com o batismo de João, justificaram a Deus.” (Lucas 7:17–29)

Outro exemplo dramático disso é um caso onde Jesus repreende seus discípulos por tentarem impedir um ‘não-afiliado’ de operar milagres.

“E João lhe respondeu, dizendo: Mestre, vimos um que em teu nome expulsava demônios, o qual não nos segue; e nós lho proibimos, porque não nos segue.
Jesus, porém, disse: Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e possa logo falar mal de mim. Porque quem não é contra nós, é por nós.” (Marcos 9:38–40)

A questão para Jesus parece ser mais sobre correspondência de propósitos e ações, sobre viver os ensinamentos na prática, o que repercute a frase de Jesus na Grande Comissão: “ensinando-os a guardar (isto é, praticar) tudo o que vos tenho ensinado”. Mais sobre isso no próximo texto.

Por fim, também cabe destacar que historicamente esse trecho foi pensado como voltado aos apóstolos originais de Jesus, não a todos os cristãos em todos os tempos e lugares. O próprio termo ‘Grande Comissão’ (e a ideia de que aqui existe um chamado à evangelização contínua) é de cunhagem tardia, de apenas poucos séculos atrás.

Agora analisemos o caso de Paulo, que realmente introduziu uma atividade missionária sistemática para levar o evangelho de Jesus (sob o entendimento paulino) aos não-judeus (gentios) do Império Romano. Com base no livro de Atos dos Apóstolos, que descreve suas viagens missionárias, podemos perceber que Paulo primordialmente discutia com gentios que já frequentavam o circuito de Sinagogas dos judeus helenistas espalhados pelo Império. Em alguns momentos ele chegou a discursar em locais públicos, se tais lugares já fossem usados para debates filosóficos e doutrinários do próprio meio pagão-helênico (Atos 17:15-34), mas seu foco era o ensinamento nas sinagogas judaico-helenistas ou em torno delas. E com certeza não ia de casa em casa!

Ou seja, a atividade missionária de Paulo era focada primordialmente em pessoas que já tivessem contato com a cultura judaica, e, secundariamente, em pessoas que já tivessem contato com questões filosóficas a respeito do divino.

O livro de Atos dos Apóstolos chega a deixar claro que existiam por aí gentios justos que já estavam andando com Deus e mesmo recebiam o Dom da Profecia antes da proclamação do Evangelho a eles:

“E havia em Cesaréia um homem por nome Cornélio, centurião da coorte chamada italiana,
Piedoso e temente a Deus, com toda a sua casa, o qual fazia muitas esmolas ao povo, e de contínuo orava a Deus
.
Este, quase à hora nona do dia, viu claramente numa visão um anjo de Deus, que se dirigia para ele e dizia: Cornélio.
O qual, fixando os olhos nele, e muito atemorizado, disse: Que é, Senhor? E disse-lhe: As tuas orações e as tuas esmolas têm subido para memória diante de Deus;
Agora, pois, envia homens a Jope, e manda chamar a Simão, que tem por sobrenome Pedro.
Este está hospedado com um certo Simão curtidor, que tem a sua casa junto do mar. Ele te dirá o que deves fazer. […] E, descendo Pedro para junto dos homens que lhe foram enviados por Cornélio, disse: Eis que sou eu a quem procurais; qual é a causa por que estais aqui?
E eles disseram: Cornélio, o centurião, homem justo e temente a Deus, e que tem bom testemunho de toda a nação dos judeus, foi avisado por um santo anjo para que te chamasse a sua casa, e ouvisse as tuas palavras. (Atos 10:1–6, 21–22)

E veja o teor da declaração de Pedro a este que seria o primeiro gentio a aceitar o Evangelho:

“E, abrindo Pedro a boca, disse: Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas;
Mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo.

A palavra que ele enviou aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus Cristo (este é o Senhor de todos);
Esta palavra, vós bem sabeis, veio por toda a Judéia, começando pela Galiléia, depois do batismo que João pregou;
Como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude; o qual andou fazendo bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele.
E nós somos testemunhas de todas as coisas que fez, tanto na terra da Judéia como em Jerusalém; ao qual mataram, pendurando-o num madeiro.
A este ressuscitou Deus ao terceiro dia, e fez que se manifestasse,
Não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus antes ordenara; a nós, que comemos e bebemos juntamente com ele, depois que ressuscitou dentre os mortos.
E nos mandou pregar ao povo, e testificar que ele é o que por Deus foi constituído juiz dos vivos e dos mortos.
A este dão testemunho todos os profetas, de que todos os que nele crêem receberão o perdão dos pecados pelo seu nome.” (Atos 10:34–48)

Pedro afirma que QUALQUER PESSOA que seja temente a Deus e faz o que é justo é agradável a Deus. Isso não depende do batismo ou mesmo da proclamação do Evangelho.

Como o relato deixa claro, o principal objetivo de proclamar o evangelho fora da terra de Israel seria o de encontrar o ‘remanescente justo’ em todas as nações e avisá-lo de que a redenção do Reino de Deus fundado por Jesus estava para chegar. O objetivo era encontrar esses outros eleitos para serem discípulos, os quais não moravam em Israel e nem sequer haviam nascidos como judeus.

Assim, esse remanescente poderia se juntar ao remanescente do povo judeu na espera consciente da salvação final, unindo-se ao Rei Messias (que eles entendiam ser Jesus dado crerem em sua ressurreição) e praticando os ensinamentos e dons (do Espírito Santo) em benefício inclusive daqueles que não tivessem se tornado discípulos, para já dar um gosto desse Reino que se avizinhava e haveria de cobrir toda a terra.

Nesse ponto, a discussão sobre a fé em Cristo feita por Paulo em suas epístolas (como a de Romanos) ganha um contexto mais claro. Ali a questão não é a de que só os crentes em Cristo seriam salvos, como costumam propagar por aí. Mas sim como aqueles que não nasceram judeus poderiam se submeter ao Messias Judaico (que seria Jesus).

Afinal, se o Messias seria o Rei Final dos judeus, como poderiam os gentios se submeterem voluntariamente a tal Rei que, para eles, seria “estrangeiro”? Teriam de se ‘naturalizar’ judeus também? A ideia de Paulo é que não era necessário, bastando apenas que cressem em Jesus como Messias e, com isso, abandonassem a idolatria, o serviço a outros deuses. Então, no Reino do Messias, haveria tanto os circuncidados (judeus) quanto os não-circuncidados (gentios). Para entender melhor tudo isso, recomendo ao leitor “Paulo, a Lei e o Povo Judeu” de Ed Parish Sanders, e “A Nova Perspectiva sobre Paulo” de James Dunn.

Por isso mesmo, não é à toa que historicamente não existiu no cristianismo nada como a Missão Evangelista Moderna como vemos hoje, que é levada primordialmente a cabo em nosso país por essas tendências de evangelismo gospel genérico. Por milênios era claro para os cristãos que a questão nunca fora tentar converter não-cristãos o tempo todo e em qualquer lugar, e sim que o evangelho chegasse a diferentes regiões do Planeta, atraindo aqueles a quem coubesse aceitar o evangelho em tais locais. (Mas, naqueles tempos antigos, nem sempre por livre escolha individual: se um rei aceitasse o evangelho, todos os súditos teriam de se converter junto, pois seria como um chefe de família se convertendo levando junto sua família…)

E no caso do nosso país, ainda há mais uma nota irônica: na verdade já se tratava de um país cristão, onde as pessoas conheciam a pregação sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus. Então, a situação que os apóstolos vivenciaram simplesmente não é comparável à do nosso país.

O evangelismo gospel fala primordialmente a pessoas que já conheciam a história do Evangelho (vida, morte e ressurreição de Jesus), mas tenta trazê-las para uma versão mais específica, onde o foco seria induzir sentimentalmente as pessoas a “aceitarem Jesus como senhor e salvador”. Isso LITERALMENTE NUNCA FOI o ponto da Missão de Paulo ou dos outros apóstolos, e a ideia de que é necessário ter uma experiência bem demarcada de conversão pessoal para ser um cristão ‘legítimo’ só surgiu com os Grandes Reavivamentos dos Estados Unidos no século XIX (cujo precursor foi o pietismo alemão no século XVIII). Não, essa coisa de ‘se converter pra aceitar Jesus’ NÃO surgiu com a Reforma Protestante, os protestantes históricos/clássicos NÃO defendem isso. Esse ‘conversionismo’ é uma variante específica de protestantismo ‘evangelical’ que surgiu nos Estados Unidos NA MODERNIDADE e dali acabou se espalhando pelo mundo com esse foco numérico. (Posso explicar melhor isso em post futuro)

No próximo post trarei uma análise de como o ensinamento de Jesus se compara ao Evangelismo Gospel (e mesmo à fé Rastafari, para não perder de vista o início dessa sequência de textos abordando a poesia e música de Bob Marley). Ali ficará claro que o ensinamento de Jesus se aproxima mais das ênfases rastafaris que das ênfases do evangelismo gospel.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.