[161] O Evangelismo Gospel NÃO SEGUE o ensino de Jesus

A Estrela da Redenção
11 min readNov 7, 2021

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Nos últimos posts, tenho apresentado que o fenômeno religioso a que denomino de ‘Evangelismo Gospel’ é deficitário em relação à Bíblia. No post [159] argumentei a respeito do caráter não-bíblico do evangelismo gospel em face da Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento) e no post [160] argumentei a respeito do caráter não-bíblico do evangelismo gospel em face do Novo Testamento cristão. Se você quiser entender melhor o que eu estou denominando como evangelismo gospel, veja o post [159].

No post [160] comentei mais especificamente que o evangelismo baseado na maximização de números de membros e ouvintes nas igrejas NÃO é o tipo de evangelização que fora promovido na época do Novo Testamento. Dei o exemplo da chamada ‘Grande Comissão’, onde Jesus (após sua ressurreição, conforme a crença cristã) teria incumbido aos seus apóstolos a missão de fazer discípulos entre todas as nações. Expliquei como isso nada tem a ver com o marketing religioso promovido pelo evangelismo gospel. (Volte no post se quiser entender melhor o porquê)

Mas uma coisa que ficou faltando comentar ali é o seguinte. Ao narrar a Grande Comissão, o Evangelho de Mateus tem um propósito claro: entende como valioso que os ensinamentos de Jesus sejam espalhados entre as nações*. Tanto que ali se usa a expressão “ensinando-os a guardarem tudo que vos ensinei”. Mas fica a questão: qual o teor desse ensinamento de Jesus, cuja propagação o Evangelho de Mateus avalia positivamente?

Como expliquei nos posts [144]-[145]-[146]-[147]-[148], o ensinamento de Jesus e da comunidade apostólica cristã original (judaica de fala aramaica em Jerusalém, guiada pelo irmão de Jesus, de nome Tiago/Jacó; muitos de seus membros conheceram Jesus pessoalmente antes de sua crucificação) ainda era fortemente imerso na ênfase da Bíblia Hebraica a respeito da libertação da opressão nesse mundo, com a diferença de ter um viés apocalíptico envolvido.

Portanto, a respeito de Jesus (especialmente como relatado nos Evangelhos Sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas) e da comunidade judeu-cristã original de fala aramaica (bem representada pela epístola de Tiago, e com reflexos no livro do Apocalipse), as mesmas considerações que fizemos no post [159] a respeito da inadequação do evangelismo gospel frente à Bíblia Hebraica podem ser feitas a respeito da inadequação do evangelismo gospel frente ao centro nuclear do Novo Testamento, a saber, as tradições a respeito do próprio Jesus e de seus discípulos originais.

Jesus ensinava sobre o Reino de Deus e a redenção que este traria. Essa redenção humana não é pensada de forma “espiritualizada”, mas sim em termos concretos, como é a maneira judaica de pensá-la: a paz mundial, o fim da opressão sociopolítica, o conforto daqueles que sofrem, a restauração de Israel, o fim do exílio judaico, o fim da fome e da pobreza, a cura das doenças, a realização da justiça no seu sentido mais pleno para todos, a destruição dos opressores, a exaltação dos oprimidos etc.

Como Maria mãe de Jesus aparece cantando no Evangelho de Lucas:

“Com o seu braço agiu valorosamente; Dissipou os soberbos no pensamento de seus corações.
Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes.
Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos.
Auxiliou a Israel seu servo, Recordando-se da sua misericórdia;
Como falou a nossos pais, Para com Abraão e a sua posteridade, para sempre.” (Lucas 1:51–55)

A questão central da Bíblia Hebraica NUNCA FOI a salvação individual da alma (ou quaisquer outras ideias de salvação espiritual e metafísica), mas sim a justiça e o Reino de Deus na terra (veja post [28]). E podemos afirmar o mesmo dessa concepção apostólica original judeu-cristã de fala aramaica, na qual figurava proeminente o ensino do próprio Jesus antes de sua morte.

Note ainda que o próprio critério para o julgamento universal ensinado por Jesus NÃO tinha a ver com seguir certa religião ou ter certas crenças, inclusive NÃO tinha a ver com ter ou não “fé em Jesus”. O critério que a tradição sinótica sinaliza é muito claro: atos de justiça para com os oprimidos e aflitos (inclusive pessoas aprisionadas pelos opressores romanos).

“E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória;
E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas;
E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.
Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;
Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver.

Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?
E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos?
E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?

E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;
Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber;
Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.

Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos?
Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a um destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim.” (Mateus 25:31–45; sobre a questão do ‘fogo eterno’, não confunda com a doutrina posterior do inferno eterno, veja post [102] para entender)

Ou dentro da tradição de Tiago irmão de Jesus como refletida na Epístola de Tiago do Novo Testamento, invocando as obrigações da Torá:

“A religião pura e imaculada para com Deus e Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo.” (Tiago 1:27)

“Porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé, e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?
Mas vós desonrastes o pobre. Porventura não vos oprimem os ricos, e não vos arrastam aos tribunais?
Porventura não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado?
Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis.
Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, e sois redargüidos pela lei como transgressores. […]

Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade.
Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo.”
(Tiago 2:5–9, 11–13)

“Eia, pois, agora vós, ricos, chorai e pranteai, por vossas misérias, que sobre vós hão de vir. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão comidas de traça. […]
Eis que o jornal dos trabalhadores que ceifaram as vossas terras, e que por vós foi diminuído, clama; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos.” (Tiago 5:1–2, 4)

Note como todos esses textos falam de situações bem concretas vividas por judeus na Judéia e na Galiléia daquela época, sob a opressão romana e de uma elite intrajudaica saducéia conivente. Fala-se de estar empobrecido, reduzido à miséria, jogado numa prisão, ter o salário diminuído ou não pago, ser processado por alguém mais poderoso etc. E é contra tudo isso que virá o Reino de Deus.

No contexto mais específico do Evangelho de Mateus, a peça central do ensino de Jesus reside no Sermão da Montanha, que começa com as bem-aventuranças:

“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados;
Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra;
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos;
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia;
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus;
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus;
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus;
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós.” (Mateus 5:3–12)

O interessante aqui é que esses ‘bem-aventurados’, ‘felizes’, desafiam o pensamento mais comum, uma vez que entenderíamos essas pessoas como ou infelizes (‘os que choram’, ‘os que sofrem perseguição’ etc.) ou pelo menos como vulneráveis frente à violência alheia por seu caráter íntegro e não-agressivo (‘os pacificadores’, ‘os mansos’ etc.). Mas o que Jesus quis ensinar aqui é que seriam justamente esses os mais felizes, pois o Reino de Deus é para eles!

O Reino de Deus está reservado para aqueles que praticam o bem e para aqueles que suspiram pelo advento de justiça contra toda opressão (e para aqueles que se encaixam em ambos simultaneamente). Os opressores estarão excluídos do Reino de Deus! É por isso mesmo que, como visto anteriormente, o critério do julgamento final redunda primordialmente em termos de ações concretas voltadas à justiça social e à benevolência: para com os necessitados, para com os doentes, para com aqueles aprisionados por um governo opressor, e assim por diante.

Nesse ponto chamo a atenção para a pintura abaixo:

“A Sermon for Our Ancestors” [Um Sermão para Nossos Ancestrais], Laura James, 2006.

Trata-se de a “A Sermon for Our Ancestors”, da artista negra americana Laura James. A artista aqui representa, no estilo da Iconografia Etíope (Ortodoxa Tewahedo), as Bem-Aventuranças do Sermão do Monte de Jesus. A cada uma das bem-aventuranças (“bem-aventurados os que choram”; “bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça”; “bem-aventurados os que sofreram perseguição por causa da justiça”. etc.) são apresentadas cenas do sofrimento dos e injustiças contra os negros escravizados no Sul dos Estados Unidos. A mensagem é clara: o objetivo das bem-aventuranças de Jesus é quebrar toda a opressão e trazer libertação aos aflitos, com Jesus se identificando ‘carnalmente’ com os oprimidos. Então, quando, por exemplo, Jesus afirmou “bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”, isso não deve ser espiritualizado, mas sim entendido em termos bem materiais e concretos. Existem inúmeros outros exemplos de ditos de Jesus que foram indevidamente “espiritualizados” quando, lidos naturalmente, claramente falam da redenção em termos judaicos, isto é, em termos sociopolíticos e materiais/carnais.

No resto do Sermão do Monte, Jesus dá uma série de especificações sobre como ele entende a observância da Torá sob a véspera da redenção final. Ele ensina sobre como rezar (o Pai Nosso figura aqui), sobre dar a outra face diante de provocações, sobre a regra de ouro (“faça aos outros o que querem que vos façam, essa é toda a Torá e os Profetas”; Mateus 7:12), etc. Em suma:

“buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça” (Mateus 6:33)

Ou seja, praticar a justiça em favor dos oprimidos, enquanto aguarda que Deus traga sua justiça contra todos os opressores. É essa mensagem central (com as instruções práticas de como implementa-la dadas no Sermão do Monte) que o Evangelho de Mateus entende que Jesus ordenou a seus apóstolos de espalharem pelo mundo.

Diante de tudo isso, posso fechar o argumento dado no post “[159] Bob Marley é MAIS BÍBLICO que o Evangelismo Gospel”. Como explicado ali, Bob Marley foi rastafari durante a maior parte da sua vida (enquanto tenha se convertido à milenar Igreja Ortodoxa Tewahedo Etíope no fim de sua vida), e foi a fé rastafari que influenciou temas profundamente bíblicos dentro de suas músicas.

E tais temas profundamente bíblicos presentes nas letras de Bob Marley sob ensinamentos rastafari dizem respeito justamente à libertação dos oprimidos e ao anseio pela justiça.

Como falei no post [159], essa ênfase rastafari se relaciona fortemente com a Bíblia Hebraica, tanto que os rastafaris (jamaicanos negros descendentes de africanos escravizados trazidos à força para as Américas) se viram nas histórias da Torá (a escravidão dos judeus sob os egípcios) e nos discursos dos Profetas (o exílio judaico sob os babilônios). Foi na história desses judeus oprimidos por potências imperiais opressoras que os rastafaris viram um espelho da história das pessoas negras nas Américas, também marcada pela escravidão e pelo exílio da terra ancestral promovido por impérios coloniais opressores.

Agora podemos acrescentar: os rastafaris também repercutem a experiência do próprio Jesus. Um rabino judeu vendo seu povo dominado por uma potência estrangeira (o Império Romano), procurando trazer esperança aos judeus oprimidos pela regra imperial, e ele mesmo acaba sendo executado sob os horrores da tortura e da crueldade que a lei romana impunha a muitos judeus daquela época (muitos deles resistentes civis). Mas o sonho da liberdade não morreu na cruz: os apóstolos levaram esse legado, procurando ensinar as pessoas justamente como o Reino de Deus é diferente desses reinos humanos opressivos, e de como a prática da justiça e da bondade para com os oprimidos por tais reinos humanos são o caminho para o Reino de Deus, onde tais oprimidos serão exaltados enquanto os opressores serão rebaixados. (Lembre do Cântico de Maria mencionado anteriormente)

Obviamente todas essas considerações têm uma conexão muito forte com a opressão negra nas Américas, como a artista Laura James em sua pintura “A Sermon for Our Ancestors’ retrata tão vividamente!

Em contraste a isso, o evangelismo gospel, com sua ênfase em fazer as pessoas aceitarem Jesus como Senhor e Salvador por meio de pregações altamente sentimentalistas com o intuito de ‘salvar almas’, é PROFUNDAMENTE DESTOANTE em relação ao teor central da mensagem de Jesus como explicado acima.

Não quero com isso negar o mérito que muitas igrejas tem em relação a fazer obras assistenciais. Até explico no post [159] que uso o termo ‘gospel’ ao invés de ‘evangélico’ justamente porque não estou falando de todos os evangélicos (e obviamente muito menos de todos os protestantes ou todos os cristãos), mas sim de uma tendência infelizmente muito predominante hoje no meio evangélico. Além disso, o fato do evangelismo gospel também promover obras assistenciais não o exime da crítica apresentada aqui: a questão toda reside na prioridade.

A prioridade do evangelismo gospel é trazer o máximo número possível de pessoas para dentro das igrejas desse meio, para que ‘aceitem Jesus’. E isso não é barato: milhões de recursos financeiros e de horas de trabalho voluntário são investidos nessa missão de trazer a todo custo pessoas ‘para Jesus’. Mas será que o Jesus retratado pelos Evangelhos realmente acha que essa é a prioridade? Reflita com calma (releia esse e os textos anteriores) e você verá que é muito evidente que NÃO.

Portanto, a conclusão que chego é que os Rastafaris, mesmo não sendo cristãos (enquanto tenham a figura de Jesus em alta conta), incorporam MUITO MAIS o teor central do ensinamento de Jesus que o evangelismo gospel. As letras de Bob Marley representam MUITO MELHOR o real propósito de Jesus do que as incontáveis pregações de Silas Malafaia ou de Edir Macedo.

Agora, feitas todas essas considerações, cabe ainda discutir alguns possíveis antídotos para resistir ao evangelismo gospel dentro da própria perspectiva cristã. No próximo texto me focarei num desses possíveis antídotos: a Disciplina Arcana do Evangelho.

*Note que, como afirmado no texto anterior, a Grande Comissão foi entendida historicamente como um chamado para os apóstolos originais de Jesus, não a todos os cristãos em todos os tempos e lugares. O próprio termo ‘Grande Comissão’ (e a ideia de que aqui existe um chamado à evangelização contínua) é de cunhagem tardia, de apenas poucos séculos atrás.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.