[145] Jesus na Apocalíptica Judaica (entre essênios e profetas populares)
Como afirmei no post anterior, Jesus estava bem alinhado com o farisaísmo de seu tempo, com os debates de tradição oral judaica ali em andamento. Contudo, o judaísmo do Jesus histórico não é uma questão apenas de elementos que o alinham aos fariseus. Como já deixei claro, existe outro componente bem importante nessa equação: o da apocalíptica judaica, que o conecta em algum grau aos essênios (mas também aos profetas populares). É o que examinarei neste post.
Relembrando o que disse no texto anterior acerca dos essênios: trata-se de outro partido judaico que se opunha aos saduceus e sua cooptação da elite sacerdotal (enquanto curiosamente os essênios representassem uma forma de zadoquismo mais purista na questão sacerdotal). Os essênios consideravam que o sacerdócio tinha se tornado tão corrompido que o culto feito no Templo tinha se tornado inteiramente ilegítimo. A resposta essênia era abandonar completamente esse circuito do Templo e formar comunidades próprias (como a de Qmram, com cohanim zadoquitas dissidentes), praticando ascetismo e esperando uma guerra iminente seja literal ou simbólica que iria pôr fim à opressão e restituir o sacerdócio legítimo. Daí o peso da apocalíptica judaica, que era mais intenso entre eles do que nos demais grupos da época.
Como os essênios formavam comunidades isoladas, é difícil afirmar que Jesus fosse essênio, ou mesmo que simpatizasse explicitamente com eles. O Novo Testamento cristão é notadamente silente em relação aos essênios, talvez por conta desse maior isolamento desse grupo judaico.
“A tradição sinótica nada diz sobre os essênios. Ou não havia essênios na Galileia — e neste caso tal silêncio notável refletiria o mundo galileu limitado em que Jesus vivia. Ou eles aparecem na tradição sinótica sob o nome de fariseus. […] É mais provável que, diferentemente dos fariseus, os essênios não quiseram influenciar todo o povo. Eles mantinham seus ensinamentos secretos (Bell 2,141; 1QS VIII,11s.) e evitavam discussões com os de fora (1QS IX,16). Por isso encontramos na tradição de Jesus debates com os fariseus, mas não com os essênios. […] A separação de pecadores e impuros nos círculos essênios contradiz a preocupação pelos pecadores que encontramos em Jesus.” (THEISSEN & MERZ, p. 161)
Contudo, podemos afirmar que, na ênfase apocalíptica, encontramos um ponto em comum entre Jesus e escritos essênios como aqueles encontrados em Qmram. Além disso, também temos como elementos comuns certas práticas ascéticas que parecem ter caracterizado Jesus e seus seguidores, como a questão do celibato.
Não tentarei aqui delimitar precisamente a questão comparativa entre Jesus e os essênios. Ao invés, meu foco será na questão mais geral da apocalíptica judaica, muita da qual conhecemos hoje em dia por intermédio dos escritos encontrados na comunidade de Qmram, que era essênia. (Note que a apocalíptica judaica em si mesma não era exclusividade essênia, enquanto os essênios fossem os que mais a enfatizaram)
Um elemento que mostra como Jesus estava imerso na apocalíptica judaica era o fato de sua pregação (como encontrada nos Evangelhos Sinóticos — Mateus, Marcos e Lucas — o evangelho de João não é informativo aqui, veja post [143]) se centrar no advento iminente do “Reino de Deus” como um grande evento cósmico, que alteraria radicalmente a natureza das coisas (por exemplo, com a ressurreição dos mortos). Assim, o teor de sua pregação era “apocalíptico”: o fim está próximo, é preciso se preparar para receber o Reino de Deus.
Deixando isso ainda mais claro, Jesus falava da vinda do Filho do Homem como um agente de julgamento celestial:
“E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória;
E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas;
E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.” (Mateus 25:31–33)
A figura cósmica do Filho do Homem é retirada do livro de Daniel, que, não por coincidência, é um livro de apocalíptica judaica (o único a ter entrado na Bíblia Hebraica):
“Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram chegar até ele.
E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído.” (Daniel 7:13,14)
Em Daniel, vemos um ser místico semelhante a um ser humano recebendo um domínio eterno, que daria fim aos impérios opressivos que dominariam Israel. Como os impérios eram descritos como Monstros na visão que Daniel teve, o Reino de Deus é descrito como um similar a um Humano. Nesse sentido, o Filho do Homem ( = humano) é uma metáfora para o Reino de Deus (de natureza celestial) que é compartilhado entre o Céu (Deus e seus anjos) e o “povo dos santos do Altíssimo” (o remanescente do povo judeu).
Por conta disso, nos ditos públicos de Jesus o Filho do Homem é referido como uma figura que desceria do Céu junto com os anjos para trazer julgamento às nações e estabelecer a plenitude do Reino de Deus. É para encontrar o Filho do Homem que a pregação de Jesus prepara a si mesmo e a seus discípulos, bem como ao povo. Jesus e seus apóstolos teriam um papel bem importante quando o Filho do Homem aparecesse (a identificação entre Jesus e o Filho do Homem provavelmente ocorre apenas após a morte de Jesus, como falarei no post [147]).
Jesus foi ele mesmo preparado para esse advento iminente do Reino de Deus por João Batista. Mesmo quando Jesus começou a pregar e formou o seu quadro pessoal de discípulos, João Batista continuou com sua pregação e com seus discípulos, como os Evangelhos descrevem. Contudo, João Batista acabou sendo aprisionado e depois assassinado a mando do rei da Galiléia, Herodes Antipas (um rei idumeu cliente do Império Romano).
Um componente bem importante da atuação do Batista dizia respeito à sua crítica incisiva contra a casa herodiana, fazendo a denúncia profética dos desmandos dessa elite contra a Torá. Além disso, a preparação por ele ensinada diz respeito basicamente à Teshuvá (arrependimento/retorno), por meio de atos de justiça e de uma purificação ritual por meio de água. A purificação ritual por meio da imersão em água é ensinada na Torá, mas o Batista a associou também a uma expectativa de perdão de pecados.
“Dizia, pois, João à multidão que saía para ser batizada por ele: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir?
Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai; porque eu vos digo que até destas pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão.
E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não dá bom fruto, corta-se e lança-se no fogo.
E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois?
E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira.
E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer?
E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado.
E uns soldados o interrogaram também, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo.” (Lucas 3:7–14)
Tal modus operandi profético, inclusive o fato de que o governo romano ou mancomunado com Roma reprime violentamente o movimento popular assim iniciado, coloca João Batista e Jesus em uma série de profetas populares, ou “profetas de sinais”, que existiram no 1º século:
“É característico desses profetas, dos quais temos apenas breves informações, que eles profetizam um grande milagre que motiva seus seguidores a mover-se para o lugar onde ele é esperado. Em geral, são considerados um perigo pelas autoridades políticas e combatidos com violência. O sumário seguinte oferece um panorama sobre os assim chamados ‘profetas de sinais’:
Por volta de 36 d. C., um profeta samaritano promete a uma multidão que ele vai mostrar-lhes os objetos desaparecidos do templo no monte Garizim, que Moisés teria enterrado ali. Ele junta seus seguidores para irem para Garizim, mas Pilatos intervém e massacra a multidão. Pilatos foi destituído por causa dos protestos contra essa ação brutal (Ant 18, 85–87).
Sob o procurador Cúspio Fado (44–46 d. C.), um certo Teúdas persuade uma multidão a ‘segui-lo’ com seus pertences até o Jordão. Ele promete que o Jordão se abriria e que eles poderiam passar a pés secos. Novamente o procurador intervém e termina esta tentativa de ‘posse da terra’ com um banho de sangue (Ant 20, 97–99, cf. At 5,36).
Sob o procurador Antônio Félix (52–60 d.C.) aparecem vários profetas anônimos que exigiam de seus seguidores que os seguissem até o deserto. Lá eles veriam sinais e milagres (ou sinais da liberdade). Também esse começo de um novo êxodo é reprimido de forma sangrenta (Ant 20, 167s; Bell 2,258–260)
Na mesma época apareceu um egípcio que conduz seus seguidores para o Monte das Oliveiras. Ele promete que os muros de Jerusalém desabarão por ordem sua. O milagre ocorrido com as muralhas de Jericó deveria, dessa forma, repetir-se em Jerusalém (Ant 20, 169–172; Bell 2,261–263 […], cf. At 21,38)
Sob o procurador Pórcio Festo (60–62) um profeta promete ‘redenção’ e o fim do mal, caso as pessoas o seguissem para o deserto. Os romanos reprimem com violência esse movimento (Ant 20,188).
Sob Albino (62–64?) chega um profeta chamado Jesus, filho de Ananias, do campo para Jerusalém com uma mensagem de juízo sobre a cidade, o templo e o povo. Sua lamentação provoca sua prisão pela aristocracia judaica, que o entregou ao procurador romano. No interrogatório, este chega à conclusão de que o homem é louco e o deixa livre. Ele segue com sua profecia de desgraça até a destruição de Jerusalém; e morre no cerco da cidade (Bell 6,300–309 […]).
Ainda nos últimos dias do cerco de Jerusalém apareceram profetas prometendo salvação. Um deles anunciou que Deus ordenava que as pessoas se juntassem no templo e aguardassem os sinais de salvação. Josefo o culpa pela morte de tantas pessoas no incêndio do templo (Bell 6,285s.).
Jesus de Nazaré também tem algumas características que lembram tais ‘profetas de sinais’ judaicos. Ele promete a destruição e a reconstrução milagrosa do templo de Jerusalém (Mc 14,57s). Com isso ele apela, a exemplo dos outros profetas de sinais, às memórias da história da salvação, seja do êxodo, da tomada da terra ou da construção do templo. Como os outros profetas, Jesus vai para o lugar onde foi prometido o milagre; como eles, ele exorta ao ‘discipulado’. Como nos outros casos, os romanos intervêm. O profeta é executado (normalmente com muitos de seus seguidores). A maioria dos profetas tem uma mensagem que é dirigida contra a força de ocupação estrangeira. Quem promete um novo êxodo vê o povo como oprimido. Apenas no caso de Jesus de Nazaré, de João Batista e de Jesus, filho de Ananias, que talvez tenha sido influenciado pela profecia de Jesus sobre o templo, encontramos um anúncio de juízo dirigido contra o próprio povo.” (THEISSEN & MERZ, p. 165–166)
Dessa forma, vemos como Jesus foi um profeta popular cujo despertar profético se deu após seu encontro e instrução por João Batista, outro profeta popular. João Batista pregava o juízo iminente de Deus contra a Casa Herodiana e as elites judaicas mancomunadas com Roma, e promovia um movimento de Teshuvá (arrependimento/retorno à Torá) antes que fosse tarde demais. Jesus estava imerso na apocalíptica judaica: seu foco era a vinda iminente do Reino de Deus, com a aparição da misteriosa figura do Filho do Homem. E esse Reino já se manifestaria nas curas e exorcismos que o próprio Jesus promovia, trazendo solidariedade e restauração para os judeus oprimidos e aflitos na periferia da dominação romana e às margens da elite judaica mancomunada com Roma. Com o Reino de Deus viria a Restauração de Israel*. Essa era a esperança apocalíptica de Jesus.
*Que o objetivo de Jesus fosse a restauração de Israel é bem aceito mesmo por scholars de credenciais irretocavelmente cristãs. Veja Sanders (1985), Wright (1997) e Skarsaune (2004).
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