[162] Disciplina Arcana do Evangelho CONTRA o Evangelismo Gospel

A Estrela da Redenção
10 min readNov 7, 2021

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Como ficou claro nos últimos três posts desse blog, o evangelismo gospel NÃO é bíblico: tanto a Bíblia Hebraica (que compõe a maior parte da Bíblia Cristã) quanto o Novo Testamento cristão (incluindo os ensinamentos de Jesus) mostram que o evangelismo gospel é um distorção severa do panorama bíblico.

Contudo, qual seria a alternativa ao evangelismo gospel? Como pensar a proclamação cristã do Evangelho de uma maneira tal que resista ao evangelismo gospel (e ao fundamentalismo religioso a este associado)?

Enquanto existem certamente várias alternativas a serem pensadas no contexto cristão, um caso bem interessante é o do teólogo luterano neo-ortodoxo Dietrich Bonhoeffer, com seu ‘cristianismo sem religião’ formulado em suas Cartas na Prisão. Ele fora preso pela participação em um atentado para matar Hitler, e por fim foi executado pelo regime nazista. Mas na prisão deixou um incrível legado para o pensamento humano que, a meu ver, será muito importante no contexto desse terceiro milênio, na tarefa de resgatar a Bíblia e a religião do fundamentalismo (seja religioso ou ateu).

Como já afirmara nos posts [0]-[1]-[2]-[3], enquanto a perspectiva que norteia esse blog é o existencialismo judaico, também me proponho a discutir insights do existencialismo cristão quando seja pertinente. Bonhoeffer não é exatamente um existencialista cristão, posto que apresenta uma crítica ao uso de existencialismo em teologia (em especial por parte de seu colega Rudolf Bultmann), mas a maneira como Bonhoeffer pensa o cristianismo e a Bíblia em termos existenciais o coloca nesse contexto de discussão.

Além disso, de forma muito interessante para o presente blog, como já comentado no post [28], Bonhoeffer nas cartas da prisão levava a Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento) EXTREMAMENTE A SÉRIO. Ele se propôs levar a sério o fato de que a Bíblia Hebraica compõe a maior parte da Bíblia Cristã, e a ler a Bíblia Cristã na ordem: o Novo Testamento sendo lido À LUZ do “Velho” Testamento, e não o contrário.

Com isso Bonhoeffer foi capaz de formular uma perspectiva extraordinária a respeito do próprio Evangelho, antevendo um ‘cristianismo não-religioso’ (ou ‘cristianismo sem religião’), que se baseia na vida AQUI E AGORA, e em como construir uma comunidade humana baseada no amor e na justiça NESTE MUNDO.

Como ele chegou nessa conclusão? Bonhoeffer percebeu que a perspectiva ‘religiosa’ comum na cristandade, definida por uma preocupação metafísica e individualista com a salvação individual da alma, simplesmente NÃO APARECE na Bíblia Hebraica. Além disso, tomando ciência desse fato a respeito da Bíblia Hebraica, e pegando para reler o Novo Testamento, ele concluiu que NEM MESMO O NOVO TESTAMENTO apoia tal noção:

“A pergunta individualista pela salvação pessoal da alma não desapareceu quase completamente de nossa visão? Não temos realmente a impressão de que existem coisas mais importantes do que essa pergunta (- talvez não mais do que esse assunto, mas sim mais do que essa pergunta!?)? Sei que dizer isso parece bastante monstruoso. Mas, no fundo, não seria até mesmo bíblico? A questão da salvação da alma ocorre em algum lugar do Antigo Testamento? O centro de tudo não são a justiça e o Reino de Deus na terra? E também em Romanos 3:24ss o alvo do raciocínio não seria também a ideia de que só Deus é justo, e não uma doutrina individualista da salvação? O que está em pauta não é o além, mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e renovado. O que está além deste mundo quer estar aí para este mundo no evangelho; não digo isso no sentido antropocêntrico da teologia liberal, mística, pietista e ética, mas no sentido bíblico da criação e da encarnação, da crucificação e da ressurreição de Jesus Cristo.” (Bonhoeffer, carta de 1944, edição brasileira “Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão”, 2003, p. 380)

Nessa mesma carta, Bonhoeffer menciona o conceito da “disciplina arcana” ou “disciplina do segredo”, que é um conceito histórico a respeito da Igreja dos primeiros séculos. Bonhoeffer desejava resgatar esse conceito para o contexto do mundo moderno:

“Barth foi o primeiro teólogo — e isso continuará sendo seu grande mérito — a encetar a crítica da religião, mas então ele a substituiu por uma doutrina positivista da revelação que te diz: “é pegar ou largar”; que se trate do nascimento virginal, da trindade ou do que quer que seja, cada coisa é igualmente significativa e necessário para o todo, o qual deve ser engolido inteiro ou não é engolido de jeito nenhum. Isso não é bíblico. Há níveis de conhecimento e níveis de importância; isto é, deve-se restabelecer uma disciplina arcana [Arcandisciplin; disciplina arcani] por meio da qual os mistérios da fé cristã sejam protegidos da profanação. O positivismo da revelação facilita demais as coisas para si mesmo ao estabelecer, em última análise, uma lei da fé e rasgar o que é uma dádiva para nós — através da encarnação de Cristo! No lugar da religião está agora a igreja — o que é em si bíblico, mas o mundo, de certa forma, é deixado …” (BONHOEFFER, carta de 1944, p. 380–381)

Nessa edição em língua portuguesa, há uma nota de rodapé (p. 371–372) que explica o que seria tal disciplina arcana, em preleções e escritos anteriores de Bonhoeffer:

“(O lugar da confissão, como arcanum, é o culto.) […] A confissão não deve ser alardeada de forma propagandística; ela deve ser guardada como o bem mais sagrado da comunidade.” (preleção “A natureza da Igreja”, no semestre de verão de 1932, DBW 11, p. 285)

Onde ficariam as percepções da igreja antiga, que no catecumenato batismal zelava com tanto cuidado pelos limites entre igreja e mundo, pela graça preciosa?”(livro “Discipulado”, DBW 4 (N), p. 40s)

[no período do século 3 ao 7, havia um catecumenato em três etapas; com a última etapa, começava] “o ensino batismal de acordo com o símbolo que até aquele momento não era do conhecimento da pessoa cristã. […] A partir da terceira etapa, o catecúmeno estava sob a disciplina arcani […] Nada pode ser divulgado.” (“Cataquese de Finkenwalde”, (DBW 14, p. 548; DBW 14, p. 549s, nota 86).”

Para mais detalhes históricos, veja o verbete a respeito da The Catholic Enclyclopedia. No catecumenato dos primeiros séculos, a instrução para o batismo durava 3 anos, apenas no 3º sendo revelado os maiores mistérios da fé cristã. A ideia é que a pessoa precisa de uma preparação antes de ser instruída em tais mistérios. E também os cristãos nesses séculos ocultavam tais questões do debate público com os pagãos. Um bom exemplo seria a doutrina da Trindade, considerando que ela poderia facilmente parecer uma crença em três deuses separados.

Agora, retomando o ponto feito por Bonhoeffer, ele especificamente critica o positivismo da revelação em Karl Barth. Não discutirei exatamente sobre a crítica a Barth, mas aplicarei essa crítica trazendo-a ao contexto do evangelismo gospel.

É muito comum dentro do fundamentalismo cristão que se tratem as doutrinas da fé cristã como se fosse tudo igualmente importante. Vários conceitos, seja da trindade, nascimento virginal, justificação pela fé, sacrifício expiatório da cruz, batismo no Espírito Santo, etc. precisam ser VOCALMENTE GRITADOS para o mundo todo ouvir, e a opção para o mundo é PEGUE OU LARGUE.

Então, sob esse raciocínio fundamentalista, se uma pessoa tiver dúvida sobre alguma dessas crenças, ela já estará condenada. Daí o esforço evangelístico dentro do evangelismo gospel em apagar tal pensamento do coração das pessoas, induzindo-as a emocionalmente receber Jesus como seu Senhor e Salvador pessoal, ‘afirmando’ crença em todas as supostas verdades bíblicas, de maneira a força-las a aceitar todas essas crenças em bloco de uma vez, ‘goela abaixo’.

Inclusive Bonhoeffer em algumas das cartas critica como evangelistas de seu tempo já buscavam se aproveitar das fraquezas emocionais das pessoas, ou momentos de maior fragilidade sentimental, para induzi-las à religião.

Contra tal estado de coisas, Bonhoeffer traz à tona a disciplina arcana do evangelho. Não é preciso forçar ninguém a participar de todas as doutrinas do evangelho cristão de uma vez só, muito pelo contrário! Não se deve pensar “fulano não acredita na crença X, logo condenado”, mas sim nos graus de conhecimento e entendimento que cada pessoa (seja ou não cristã) terá desses mistérios, e como sua prática de boas ações é afetada por tal compreensão.

Note que, numa das citações acima, Bonhoeffer inclusive fala com todas as letras que tais doutrinas não devem ser alardeadas como uma propaganda, como um marketing, em pleno e alto som. A significância delas se perde totalmente com tal marketing fácil, que ‘vende muito barato’ a crença nessas coisas todas para um público muito provavelmente despreparado para receber tais pensamentos inefáveis da maneira mais apropriada.

“The Nativity” [Natividade], G. Wright, 1984, retratando o nascimento de Jesus, um evento discreto e intimista. Créditos da foto: Princess of Wales Community Hospital.

Eu vejo que isso se aplica perfeitamente ao evangelismo gospel, pois esse movimento tenta tornar o mais fácil possível que uma pessoa afirme “o nascimento virginal”, “a trindade”, “o sacrifício substitutivo da cruz” etc. Basta crer na Bíblia, afirmando crer em tudo que a Bíblia afirma.

Isso é Bibliolatria, uma Idolatria cujo ídolo é a própria Bíblia: cada coisa que tem nela é a verdade que deve ser afirmada sem nenhum tipo de reflexão mais profunda a respeito da correspondência entre símbolo (as palavras escritas na Bíblia, os elementos materiais dos sacramentos como a água no batismo e o vinho na eucaristia/ceia do Senhor, etc.) e a realidade assim simbolizada (os mistérios da fé cristã, a experiência prática dos ensinamentos, etc.).

E vemos essa questão de uma alternância entre símbolo e realidade, entre usar palavras que ocultam o seu significado mais profundo e usar palavras que revelem tal significado, no próprio Jesus como descrito nos Quatro Evangelhos do Novo Testamento. Jesus falava em parábolas para o público mais amplo, enquanto ao seu círculo mais íntimo de discípulos aprofundava o significado disso. Basicamente o contrário do que é feito hoje pelo evangelismo gospel do ‘é pegar ou largar, aceite tudo e pronto!”.

“E, acercando-se dele os discípulos, disseram-lhe: Por que lhes falas por parábolas?
Ele [Jesus], respondendo, disse-lhes: Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado;
Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado.
Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem nem compreendem.” (Mateus 13:10–13)

Na discussão da disciplina arcana, é mesmo comum fazer referência ao seguinte dito de Jesus:

Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, não aconteça que as pisem com os pés e, voltando-se, vos despedacem.” (Mateus 7:6)

Ou seja, aquilo que é mais sagrado deve ser protegido de profanação de um contato muito apressado e precipitado por parte de quem não esteja adequadamente preparado.

Abrindo um rápido parêntesis, no judaísmo, a Kaballah é uma disciplina arcana nesse exato sentido. É primeiro preciso conhecer Torá Escrita (Bíblia Hebraica) e Torá Oral (Talmude) para só depois poder e conseguir contemplar de fato os Segredos e Mistérios codificados na Torá. Por isso não é possível um ‘evangelismo’ cabalístico: de nada adianta levar pessoas a ‘aceitarem por fé os mistérios da Kaballah’, a Kaballah é uma questão de ESTUDO e PRÁTICA. Então, me parece que, no contexto cristão, Bonhoeffer percebeu a falta que fazia uma abordagem mais disciplinada para a apreensão intelectual e experiencial dos ensinamentos do Evangelho. Um tipo de abordagem que, no contexto judaico, sempre foi muito claro para o caso da Torá.

Por fim, Bonhoeffer propõe um modelo para a renovação da igreja cristã no contexto da modernidade, sob uma disciplina arcana. Ao invés de separar a igreja do mundo, é preciso que a igreja seja no mundo. Isso será feito pela prática de boas ações, da retidão e da justiça, do ‘amor ao próximo’, levando uma vida como a de Jesus, que era “o homem para os outros”. Esse seria o lado mais visível e público da ação eclesiástica. Já de forma mais intimista, as comunidades cristãs exercerão a disciplina arcana no contexto do culto: entre o louvor e os sacramentos, de um lado, e a instrução doutrinária e filosófica, de outro, as pessoas que seguem a Jesus serão formadas enquanto DISCÍPULAS, como guardiães dos mistérios da doutrina cristã. E o MISTÉRIO TREMENDO dessa vida cristã será a participação e conhecimento do sofrimento de Deus no mundo — viver sem Deus, em nome de Deus, paradoxalmente.

“O poema ‘Cristãos e Pagãos’ contém uma ideia que irás reconhecer aqui. “Cristãos ficam ao lado de Deus na Sua paixão”, é isto que distingue cristãos de pagãos. “Vocês não conseguem vigiar comigo nem por uma hora?”, pergunta Jesus no Getsêmani. Isto é a inversão de tudo o que o ser humano religioso espera de Deus. O ser humano é conclamado a compartilhar o sofrimento de Deus por causa do mundo sem Deus. Portanto, ele realmente tem de viver no mundo sem Deus e não deve procurar encobrir ou idealizar em termos religiosos essa ausência de Deus; ele tem de viver “de forma mundana” e justamente assim participa dos sofrimentos de Deus; ele pode viver “de forma mundana”, isto é, liberto dos falsos vínculos e bloqueios religiosos. Ser cristão não significa ser religiosos de uma determinada maneira, tornar-se alguém (um pecador, um penitente ou um santo) com base em alguma metodologia, mas significa ser pessoa; Cristo não cria em nós um tipo de ser humano, mas o próprio ser humano. Não é o ato religioso que produz o cristão, mas a participação no sofrimento de Deus na vida mundana. Esta é a metanoia [arrependimento/conversão]: não pensar primeiro nas próprias necessidades ou aflições, perguntas, pecados e medos, mas deixar-se arrastar para o caminho de Jesus, para dentro do evento messiânico do cumprimento, então satisfazendo Isaías 53." (p. 489–490)

Eis a disciplina arcana do Evangelho!

Totalmente o contrário do evangelismo gospel, com seu marketing da fé.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.