[167] “Aceitar Jesus” NÃO era o foco do cristianismo (nem do Novo Testamento)

A Estrela da Redenção
10 min readNov 22, 2021

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Nos últimos textos do blog tenho comentado extensivamente sobre o fenômeno do Evangelismo Gospel, e mostrado os problemas dessa tendência em face da Bíblia Hebraica, do Novo Testamento, do ensino de Jesus etc. bem como alguns antídotos possíveis a esse quadro.

No presente post pretendo esclarecer um ponto que comentei tangencialmente em um desses textos anteriores: um dos pilares do Evangelismo Gospel é a ideia de que as pessoas precisam “aceitar Jesus como seu Senhor e Salvador”, de que é necessária uma ‘conversão pessoal’ para a salvação, mas uma coisa que pode surpreender muita gente é que tal doutrina ‘conversionista’ ou ‘decisionista’ NÃO remonta aos tempos do Novo Testamento, e de fato NÃO EXISTIU POR MAIS DE UM MILÊNIO E SETE SÉCULOS de cristianismo. Na verdade, trata-se de uma ideia bem recente, datada de pouco mais de 2 séculos se muito!

Note que o cristianismo sempre defendeu que Jesus e a Igreja são elementos constituintes do projeto divino para salvar a humanidade. A fé em Jesus e a salvação por intermédio da obra de Cristo são doutrinas chaves em toda a cristandade. Contudo, isso NÃO É A MESMA COISA que essa ideia do “aceitar Jesus” ou da necessidade da ‘conversão pessoal’. O ‘conversionismo’ é uma interpretação MUITO específica, que nasceu num contexto MUITO específico (os Grandes Reavivamentos da América do Norte no século XIX, com precursores no século XVIII: puritanismo dos EUA colonial, metodismo inglês e pietismo alemão).

Para que o leitor possa apreciar melhor isso em perspectiva, temos de entender que historicamente o cristianismo, seja ortodoxo oriental, católico romano ou protestante, enfatizava o batismo e a educação nos valores e dogmas cristãos (conforme cada interpretação) como os pilares da identificação cristã. Se uma pessoa fosse batizada e tivesse sido educada nesses valores e dogmas, não se exigiria dela uma experiência específica de ‘conversão’, uma vez que ela já seria cristã. A questão agora seria o nível de comprometimento e prática que ela teria desses valores e dogmas ao longo de toda a sua vida, algo que só seria definitivamente pesado após sua morte pelo próprio Deus.

Que uma pessoa batizada e educada nos valores e dogmas cristãos seria cristã parece óbvio, já que a palavra ‘conversão’ faria mais sentido se estivéssemos falando de uma pessoa de outra religião que quisesse se tornar cristã. Mas o Evangelismo Gospel popularizou esse outro sentido no qual mesmo alguém que já foi educado como cristão e mesmo batizado AINDA PRECISA SE CONVERTER para que seja salvo. E isso é uma mudança GIGANTE em termos de cristianismo, introduzindo uma novidade sem nenhum respaldo bíblico ou histórico, mas que se vende como se tivesse tal respaldo!

Explicarei sucintamente aqui em primeira mão qual era a visão HISTÓRICA do cristianismo dentro de seus diversos ramos. Para então mostrar como essa doutrina ‘conversionista’ mudou o paradigma existente.

Em primeiro lugar, para a Ortodoxia Oriental, de maneira geral podemos afirmar que a salvação é uma questão de ‘divinização’ (theosis). Deus se tornou homem para que nós nos tornássemos ‘deuses’, isto é, Deus veio participar da natureza humana (com a encarnação de Deus Filho como Jesus Cristo) para que os humanos pudessem participar da natureza divina, se tornando um com Deus. Obviamente ninguém poderia participar da própria essência divina, mas para isso a teologia oriental alude à diferença entre a essência e as energias divinas, sendo essas últimas aquilo que o ser humano pode participar da natureza divina, alcançando assim união com a Divindade.

E como se começa a participar da natureza divina? “Se convertendo”, “tendo uma experiência de conversão”, “aceitando Jesus”? NÃO! Nada disso! Tudo começa com o batismo (geralmente infantil) e passa pela participação nos sacramentos da Igreja e pela prática de boas ações.

Em segundo lugar, para o Catolicismo Romano, pode-se afirmar que a salvação é uma questão da infusão da graça divina por intermédio dos sacramentos, especialmente os do batismo, crisma, eucaristia e confissão/penitência. O indivíduo não batizado está fora do estado de graça (ou seja, sujeito ao fogo do inferno), daí necessitando o batismo para receber a primeira dose da graça divina. Uma vez batizado, geralmente quando criança, posteriormente precisa confirmar a fé que recebeu no batismo, por meio da crisma, novamente recebendo uma infusão da graça divina. Daí em diante sua jornada com a graça divina alcança a maturidade: a participação frequente na eucaristia o faz perseverar no estado de graça, enquanto a confissão/penitência retifica eventuais perdas do estado de graça que o condenariam ao inferno (por meio dos pecados mortais) e/ou possíveis punições temporais residuais que teriam de ser purgadas no purgatório (por meio dos pecados veniais e mortais; sendo que os pecados veniais não precisam ser confessados, mas é recomendável fazê-lo).

Então aqui fica bem clara a desnecessidade de ‘aceitar Jesus’ ou ‘ter uma conversão pessoal’. A salvação dentro do catolicismo é uma questão de participar da vida sacramental da Igreja e cumprir com suas ordenanças (inclusive pela prática de boas obras). Por intermédio dos sacramentos, o indivíduo entra em estado de graça, de modo que não poderá ser condenado ao inferno (consequência eterna do pecado). Por outro lado, pela prestação de penitência e prática de boas obras, o indivíduo em estado de graça poderá ainda se livrar das punições temporárias do purgatório (consequências temporais do pecado), indo direto para o céu. O importante é ser batizado/crismado, se confessar regularmente e praticar a penitência devida e boas obras requeridas, e tomar da eucaristia durante as missas.

Em terceiro lugar, entrando no campo protestante, a doutrina da salvação aceita por todos os protestantes (inclusive dentro do Evangelismo Gospel) é a chamada ‘justificação somente pela fé’. A ideia básica é que, por meio da morte de Jesus na cruz, Jesus sofreu a punição do nosso pecado. Assim, como a justiça de Jesus não foi creditada ao próprio Jesus, ela pode ser creditada àquele que tem fé (confiança) nessa Palavra da Graça de Deus em Jesus Cristo (o Evangelho), de modo que tal pessoa será salva. Assim, é pela imputação da justiça de Cristo ao crente que este seria salvo. As boas obras são uma consequência (necessária/inevitável) dessa fé receptiva à Palavra Divina, não sendo em si mesmas condições para a salvação (pois caso fossem, o sacrifício de Jesus seria insuficiente, argumentam os protestantes).

Aqui talvez você esteja lendo e já ache que estamos falando do ‘conversionismo’, mas não se engane! O ‘conversionismo’ usa essa terminologia, mas a entende de um modo ‘conversionista’. Nada do que eu disse no parágrafo anterior leva ao conversionismo em si mesmo. Vamos desenvolver isso para cada ramo protestante (novamente, lembrando que estou fazendo uma apresentação sucinta!).

Dentro do campo luterano e anglicanos clássicos, a Palavra Divina da Graça Salvadora de Deus em Cristo (por meio da imputação da justiça de Cristo ao fiel) ocorre no contexto litúrgico: é por meio do batismo, e da Proclamação da Palavra Divina associada ao batismo, que o cristão é salvo. A fé salvadora nada mais é do que essa constante atualização da graça batismal, para aquele que já foi batizado (geralmente na infância). Ou seja, se você foi batizado, você já recebeu a graça divina. A questão agora é, participando da eucaristia e da Proclamação da Palavra, fazer de novo ‘atual’ aquilo que já fora dado no batismo.

Portanto, dentro da doutrina clássica desses ramos protestantes, uma experiência de ‘conversão pessoal’ ou de ‘aceitar Jesus’ não se faz necessária. O importante é constantemente reafirmar a fé batismal. O batismo é o pilar da salvação, sendo a dádiva conferida no batismo relembrada na pregação eclesiástica e na eucaristia para que a fé dos participantes seja suscitada cotidianamente, para que a graça divina venha a eles de modo constante por seus sinais tangíveis (eucaristia) e auditivos (pregação). Além disso, em caso de pecado, a fé ‘penitente’ — a contrição do arrependido — possibilita que seus pecados sejam perdoados, levando à prática de boas obras em gratidão pela salvação gratuita e imerecida.

Dentro do campo reformado (calvinista/presbiteriano) clássico, a Palavra Divina da Graça Salvadora de Deus em Cristo (por meio da imputação da justiça de Cristo ao fiel) ocorre no contexto da predestinação e da eleição divinas. Apenas os eleitos por Deus recebem a capacidade de ter fé nessa Palavra. Uma pessoa pode ter sido batizada (geralmente na infância), mas ainda assim nunca ter recebido a graça por não ter sido eleita e predestinada para tanto. O batismo e a eucaristia representam como a graça opera, mas a graça é um ato misterioso e oculto de Deus em favor exclusivamente dos eleitos.

Contudo, os reformados clássicos não levam isso na direção do ‘conversionismo’ justamente porque nem mesmo uma experiência intensa de ‘conversão pessoal’ ou ‘aceitar Jesus’ poderiam ser entendidas como conferindo salvação a alguém. Apenas uma vida inteira comprovada de dedicação à fé cristã (inclusive pela observância dos sacramentos) e da prática sistemática de boas obras permitiria sugerir que alguém de fato é objeto da eleição divina. Note que a pessoa não é salva por essas obras, mas essas obras ajudam a sinalizar sua eleição, um tema muito explorado por Max Weber em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.

Agora indo para o lado batista e de outras igrejas que saíram desta (como a adventista), dentro do seu espectro clássico, uma mudança significativa aqui decorre do fato das crianças não serem mais batizadas nelas. Nesse contexto a fé não pode ser um fruto do batismo, mas precisa preceder ao batismo. Portanto, só alguém com suficiente maturidade e consciência poderia ser batizado, por voluntariamente decidir pelo batismo.

Mas mesmo isso não necessariamente leva ao ‘conversionismo’. A questão é que, por mais que se batize a pessoa apenas depois que ela já é crescida, não necessariamente se pede a ela que tenha uma experiência de ‘conversão pessoal’ ou ‘aceite Jesus’. Se ela decide pelo batismo, nada mais é pedido — de resto é ela com Deus, sobre a sinceridade em tomar esse passo do batismo.

Portanto, a doutrina protestante clássica, seja de cunho luterano, reformado ou batista (e afins), segue a linha de que o que torna uma pessoa cristã, o que a faz ‘nascer de novo’ dentro do pacto da Igreja com Deus, é o batismo. A dúvida é de que modo isso opera: se o batismo opera essa inserção dentro do pacto para todos os infantes (aceitando o batismo infantil) ou se o batismo só opera essa inserção no pacto para aqueles que optaram voluntariamente por ele (rejeitado o batismo infantil). Mas todos concordariam que no batismo ocorre o novo nascimento do pecador como cristão (ou seja, todo mundo nasce fora desse pacto, mas após ser batizado, torna-se parte integrante do pacto entre a Igreja e Deus), e que a partir de então a questão é tal pessoa ser educada nos valores e dogmas cristãos, e de pô-los em prática (conforme as interpretações específicas de cada ramo, obviamente). Em nenhum momento se faz necessária uma experiência separada de ‘conversão pessoal’ ou de ‘aceitar Jesus’.

“Baptism” [Batismo], Ivey Hayes, 2001.

O ‘conversionismo’ surge no contexto dos Grandes Reavivamentos da América do Norte do século XIX (mais especificamente, originando-se no 2º Grande Reavivamento), com precursores do século XVIII (o puritanismo dos EUA colonial, o metodismo inglês e o pietismo alemão), mas, para simplificar, não vou entrar nos detalhes de como elementos desses movimentos anteriores foram combinados no contexto dos Grandes Reavivamentos do século XIX, ganhando novos contornos e feições. (Recomendo aqui “História da Teologia Cristã” de Roger Olson para entender esse processo histórico)

Os Grandes Reavivamentos envolveram igrejas que batizam infantes, mas com pregadores que chegaram na conclusão de que a doutrina protestante clássica seria insuficiente — uma experiência específica de ‘conversão pessoal’ seria necessária para complementar o batismo. Por outro lado, o maior fruto desse movimento envolveu igrejas que não batizavam infantes, isto é, do ramo batista e dos que surgiram a partir dos batistas (especialmente os pentecostais e neo-pentecostais no século XX). O motivo é um tanto quanto óbvio: a exigência de que a pessoa só pode ser batizada se puder optar por isso voluntariamente torna mais fácil a introdução da necessidade de uma ‘conversão pessoal’, do ‘aceitar Jesus’. Não é obrigatório, uma vez que há igrejas que batizam a pessoa apenas depois de crescida, e ainda assim não adotam o ‘conversionismo’ (exemplo: adventistas). Mas é um fato que o ‘conversionismo’ floresceu com força total justamente em igrejas que não batizam crianças, até porque muitas novas denominações desse tipo surgiram após os reavivamentos.

Um dos maiores símbolos desse reavivalismo conversionista é a ideia do ‘banco dos ansiosos’ de Charles Finney (pregador presbiteriano, mas de linha arminiana, não calvinista), hoje em dia conhecido como ‘chamado para o altar’ ou ‘sistema de apelo na pregação’. Essa prática é extremamente comum no meio gospel atual. A ideia é, ao final de uma pregação, chamar aqueles que queiram ‘aceitar Jesus’ para ir à frente do púlpito, para que o pastor possa orar por eles. Com isso a pessoa estaria tendo sua experiência de conversão pessoal, onde entrega sua vida a Cristo e ali estaria sendo salva.

Note que isso nos leva direto ao Evangelismo Gospel, como defini no post [159]: o objetivo da Igreja é a Missão Evangelística, é conseguir que o maior número de pessoas ‘aceite Jesus’. Isso é MUITO diferente da doutrina cristã clássica, mesmo da doutrina protestante clássica, uma vez que, como mostrei na minha breve exposição, nenhum protestante clássico exigiria que uma pessoa já batizada tivesse de se ‘converter’. Afinal, ela já estava ‘convertida’, já era batizada! Uma exortação poderia ser feita para que ela levasse mais a sério o fato de ser uma cristã batizada, mas não seria preciso nada que a tornasse cristã, pois ela já era cristã….

Veja como essa mudança sutil acaba tendo efeitos de longo alcance. Ao contrário da maior parte do cristianismo em todos os tempos e lugares, na qual o batismo define se a pessoa é cristã ou não, para o ‘conversionismo’ o que define se a pessoa é cristã ou não é se ela teve uma experiência de ‘conversão pessoal’ na qual ‘aceitou Jesus’. Então, para tal teologia, é necessário fazer todo um esforço evangelístico para converter pessoas que já foram batizadas ou que já foram criadas na igreja — porque simplesmente ser batizado e educado nos valores e dogmas cristãos seria insuficiente!

Note que, no campo cristão clássico (seja ortodoxo, católico ou protestante), o principal foco da Igreja não era evangelístico, não se tratava de uma contínua evangelização tentando persuadir as pessoas a ‘aceitarem Jesus’. Ao contrário, o foco da Igreja era ministrar os sacramentos e/ou ensinar as pessoas dentro dos valores e dogmas cristãos, isto é, a edificação de pessoas já entendidas como cristãs simplesmente por serem batizadas, visando trazer a elas uma salvação ou estado de graça que já lhes fora concedido no batismo (conforme os entendimentos próprios de cada ramo).

Portanto, o ‘conversionismo’ não tem base no Novo Testamento, nem na História Cristã de 1 milênio e 7 séculos. Não tem respaldo na doutrina ortodoxa oriental, nem na católica romana, nem nas protestantes clássicas. Portanto, “aceitar Jesus” não era o o foco do cristianismo, como é feito pelo Evangelismo Gospel.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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