[168] O Falso Ídolo da Inerrância Bíblica
Vi algumas reações curiosas ao texto “Kivtz comete pecado contra a quarta pessoa da Trindade” de Cassiano publicado [no blog O Evangelho de Brian], sobre o caso do pastor Ed René Kivitz que fez uma pregação online falando sobre a necessidade de “atualizar” o sentido do Novo Testamento para que ele se torne realmente uma mensagem que nos comunique algo hoje.
Uma dessas reações dizia respeito à aceitabilidade ou não para um cristão ‘verdadeiro’ de apreciar esse texto (e o ponto do referido pastor ali discutido) sendo que o texto não assumiria a inerrância da Bíblia. O motivo está nesse trecho:
“O interessante é que Ed Kivitz reconhece essa autoridade como dada, ele acredita na inspiração e revelação divina. Mas uma coisa é dizer que o texto bíblico é inspirado e sagrado, outra coisa é dizer que é inerrante e infalível, e outra coisa ainda é dizer que ele é suficiente para a orientação moral, sendo totalmente dispensável qualquer raciocínio humano para atualizar — tornar em ato — o seu sentido. O que ele faz é meramente reconhecer o óbvio: que é necessário um esforço humano para a compreensão do seu sentido potencial.”
Eu não entendo o motivo dessa perplexidade. Parece que hoje em dia muitos cristãos assumem que não existe cristianismo sem inerrância bíblica (ou mesmo infalibilidade bíblica).
Mas a verdade é que a esmagadora maioria do cristianismo ao longo desses 2 milênios NÃO aceitava (e NÃO aceita) a inerrância bíblica!
Da mesma forma, não dependia da infalibilidade bíblica no sentido mais moderno que essa expressão ganhou (enquanto aceitasse tradicionalmente uma versão mais fraca dessa tese).
O que é inerrância bíblica? É a tese segundo a qual o texto bíblico não contém nenhum erro — factual, valorativo, talvez nem mesmo gramatical. Tudo estabelecido ali é necessariamente verdadeiro e correto. Os eventos? Aconteceram exatamente e precisamente como relatado. As normas? Para serem obedecidas exatamente e precisamente como relatadas. As doutrinas? Cridas exatamente e precisamente como relatadas.
Plot twist: GERALMENTE os inerrantistas não seguem as normas ou doutrinas nem como exatamente nem como precisamente estão ali relatadas. O sentido ‘literal’ dos inerrantistas via de regra é um sentido já pesadamente carregado de interpretações posteriores e enviesamentos sistemáticos conforme certa doutrina específica a ser tratada como a ‘literal’. Por isso o mais correto é chamar suas interpretações de LITERALISTAS, não de literais. Elas pretendem ser literais, mas elas forçam a barra introduzindo ‘como se literal’ algo que o texto literalmente não tentava dizer.
Pois bem, o inerrantismo bíblico na verdade é defendido por uma parcela bem pequena do cristianismo seja no espaço ou no tempo. Provavelmente NINGUÉM no cristianismo inteiro defendeu o inerrantismo até o século XIX. Você encontra no máximo um ou outro, após a reforma protestante (seja na contra-reforma ou na reforma) no cristianismo ocidental, que falou algo que poderia sugerir alguma ideia de inerrância mas sem desenvolver de fato uma noção dessas.
Essa doutrina é essencialmente moderna: uma reação exagerada ao racionalismo iluminista. Então, apesar de considerada uma posição conservadora em teologia, essa posição não é NADA tradicional. Quem a nega está sendo muito mais tradicional que esses cristãos fundamentalistas.
As Igrejas Ortodoxas Orientais (Bizantina, Grega, Copta, Tewahedo, Síria, etc.) nunca defenderam tal doutrina. A Igreja Católica Romana também nunca a defendeu. Lutero, Calvino, os reformadores protestantes de modo geral não a defenderam. Nem a reforma radical dos anabatistas a defendia. Não a defendem a esmagadora maioria dos protestantes históricos que praticam pedobatismo (luteranos, anglicanos, reformados/calvinistas etc.). Entre os protestantes que praticam batismo por escolha, não a defendem os adventistas do sétimo dia nem grande parte dos batistas.
Onde essa doutrina é mais comum? Entre ramos fundamentalistas das igrejas batistas (com destaque para o papel do fundamentalist takeover da Southern Baptist Convention nisso) e reformadas, e dentro do pentecostalismo. Basicamente aquilo que nos EUA é chamado de ‘evangelicalism’ como contraposto às igrejas protestantes históricas (mainline protestantism).
E note: mais comum no meio ‘evangelical’ por conta da influência desproporcionada do fundamentalismo teológico protestante, mas não uma necessidade ou obrigatoriedade nem mesmo nesse meio (vide por exemplo a postura do Fuller Theological Seminary em aceitar a infalibilidade, mas não a inerrância).
Isso é verdade não importa o quanto alguns adeptos do inerrantismo gritem e esbravejem afirmações incendiárias conferindo a tal doutrina um status de ‘ortodoxia doutrinária’ que, como eu disse, essa doutrina NUNCA TEVE.
Infelizmente essa minoria estridente da cristandade grita tão alto (em especial na internet) que muita gente fica com a impressão de que o cristianismo só pode ser defendido ou crido com base na inerrância bíblica. Querem vencer no grito, contando uma mentira mil vezes para torna-la verdade. Mas nunca será.
E por que a inerrância não foi crida por séculos e milênios a fio? Porque ela é uma doutrina profundamente incoerente com o texto bíblico que torna a Bíblia em uma espécie de ídolo.
Numa análise rápida da Bíblia observamos nem que seja discordâncias ou erros menores entre os livros (o que já é suficiente para dedutivamente falsear a afirmação universal de ausência de erro).
Numa análise mais profunda da Bíblia fica claro que não existe um texto uniforme organizado do qual podemos extrair um único significado (quanto mais um inerrante!), mas sim uma vasta gama de diferentes gêneros literários agrupados numa coleção mas cada um mantendo um significado e contexto próprios.
A Bíblia é uma polifania de vozes, não essa voz amorfa que os inerrantistas impõem sobre o texto, deturpando sua real literalidade em prol desse literalismo manufaturado!
Nas mãos dos inerrantistas, a Bíblia torna-se um ídolo. Ela ocupa o lugar que seria o da Divindade. Nem Deus poderia apontar erros na Bíblia, por menores que fossem. O sujeito que crê na inerrância, por ter a Bíblia como seu deus, é obrigado a alterar sua mente de maneira a nunca ver nem saber nada que pudesse apresentar algum erro dentro da Bíblia, nem que o próprio Deus ou o próprio Cristo aparecesse em sua frente. Ele cega sua razão e seu entendimento.
Mas se for possível derrubar tal barreira psicológica e mostrar por A+B um erro menor que fosse na Bíblia, o inerrantista perderia totalmente sua fé. Porque sua fé não é diretamente em Cristo ou em Deus. Sua fé é uma fé na Bíblia inerrante (a quarta pessoa da Trindade?). Ele crê em Cristo ou em Deus em razão de crer na Bíblia, ao invés do contrário, a posição de 99% da história cristã: crer na Bíblia porque crê em Cristo ou em Deus.
Assim, se a fé do inerrantista depende diretamente sobre algo que não seja Deus, ela é uma fé, por definição, idólatra conforme os padrões do texto bíblico. Irônico, mas real.
Mas e quanto à infalibilidade bíblica? Essa tese é mais teologicamente e filosoficamente respeitável, mas em um próximo texto abordarei como a fé cristã depende dela bem menos do que poderia parecer. E não, não só nos tempos modernos. Desde a própria origem da Igreja.
Texto originalmente publicado em O Evangelho de Brian
Lista com TODOS os posts do blog (links)
Post Anterior [167] “Aceitar Jesus” NÃO era o foco do cristianismo (nem do Novo Testamento)
Próximo Post [169] O Cristianismo Historicamente NÃO Depende da Infalibilidade Bíblica