[169] O Cristianismo Historicamente NÃO Depende da Infalibilidade Bíblica
Sim, é isso mesmo que você leu. O cristianismo NÃO dependia da fé na infalibilidade da Bíblia durante sua história, só mais recentemente isso se tornou um fundamento para a fé de muitos cristãos.
Essa afirmação pode parecer à primeira vista falsa. Mas vou mostrar aqui que, ao contrário, ela não só é válida pelo menos para o primeiro milênio e meio de cristianismo, como o é para a Igreja cristã dos primeiros séculos.
Como mostrei no meu texto anterior “O Falso Ídolo da Inerrância Bíblica”, a ideia de inerrância bíblica é uma invenção extremamente recente em se tratando de cristianismo. Isso é algo bem aceito pelos teólogos e historiadores de maneira geral.
Contudo, a inerrância é uma tese mais forte que a da infalibilidade da Bíblia, e não devem ser confundidas. Inerrância significa a ausência de qualquer tipo de erro, sobre qualquer assunto mesmo que meramente tangenciado no texto bíblico. Algo que como mostrei no outro texto, é muito implausível e mesmo torna a Bíblia num objeto de idolatria.
Já infalibilidade significa ausência de erro em ‘matérias de fé e prática’, deixando em aberto a possibilidade de outros tipos de erros, desde aceitar apenas discrepâncias menores entre os livros (uma visão mais estrita da infalibilidade) até aceitar a existência de lendas e erros históricos dentro da Bíblia (uma visão menos estrita da infalibilidade).
Curiosamente, pouca gente sabe que a posição oficial da Igreja Católica Romana é pela visão menos estrita da infalibilidade, aceitando plenamente a crítica histórica da Bíblia em suas instituições acadêmicas. Mesmo um papa é bem conhecido por ter recorrido aos resultados da alta crítica bíblica em seus escritos. Adivinha quem? Papa (emérito) Bento XVI (Ratzinger), de credenciais conservadoras irretocáveis, mas ainda assim aceita o método histórico-crítico. (Como veremos, isso não é uma anomalia, mas uma posição bem coerente com o que veremos da história do cristianismo)
Portanto, o que chamamos de tese da infalibilidade bíblica é um espectro de opções sobre até que ponto se admite erros factuais na Bíblia, DESDE QUE seja mantida a sua infalibilidade para estabelecer doutrinas e normas.
E, por óbvio, isso também depende de como se define ‘doutrina’. Alguns poderão querer dizer que certos eventos históricos são parte da doutrina, então, da perspectiva destes, quem acha que essas narrativas bíblicas não têm nenhum respaldo histórico estaria com isso negando a infalibilidade bíblica. Mas se doutrina não incluir estes elementos, então negar a historicidade de certas narrativas não seria problema para manter a infalibilidade.
Complicadinho né? Aqui vou me focar na tese mais estrita da infalibilidade, onde apenas equívocos menores são aceitos. É costumeiro se dizer que tal tese é a que corresponde à visão clássica cristã, seja ortodoxa, católica ou protestante. Que essa fosse a concepção dos apóstolos…
Mas calma! Não tão rápido. Do início do cristianismo até cerca de 1 milênio e meio pelo menos, essa ‘infalibilidade bíblica’ que na retrospectiva dizemos que os cristãos aceitavam era muito mais um SINTOMA de uma outra tese de infalibilidade: a da veracidade do Evangelho/Doutrina Apostólica. A Bíblia só seria infalível na medida em que refletisse o ensino apostólico!
Antes que você feche o link achando que estou falando bobagem, venha checar comigo os fatos sobre isso. Lembre-se: tente olhar para os cristãos do passado sem cometer anacronismos. Não leia seja o Novo Testamento ou os Pais da Igreja ou mesmo os Reformadores Protestantes já munidos da carga teológica posterior que se agregou a certos conceitos.
Com isso em mente revisemos o Credo Apostólico, uma declaração de fé amplamente aceita dentro das igrejas cristãs (com algumas variações terminológicas) e em uso desde os séculos 4º-6º da Era Comum:
“Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra; e em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu na Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos; creio no Espírito Santo, na santa Igreja Católica(Universal), na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém.”
O que salta aos olhos no Credo Apostólico é que…. NÃO TEM A BÍBLIA! Não tem a infalibilidade bíblica aí. Pode reler se quiser. Óbvio que as pessoas por trás desse credo eram profundamente crentes nas Escrituras Sagradas, e aqueles que recitaram tal credo ao longo dos séculos também eram. Apesar disso, eles não acharam necessário mencionar que a Bíblia era infalível entre os dogmas. Será que esqueceram? Ou será que simplesmente eles não acreditavam nisso diretamente como dogma, mas apenas enquanto consequência de que é na Bíblia que achamos os dogmas do Credo?
Agora vamos voltar um pouco no tempo… antes da formação do cânon do Novo Testamento, os cristãos só tinham a Septuaginta, uma tradução grega da Bíblia Hebraica + livros deuterocanônicos e apócrifos (a depender da coleção especifica), como suas Escrituras Sagradas. A Bíblia Hebraica na sua língua original, o hebraico, pouco influenciou os rumos da Igreja até o renascimento europeu após o fim da Idade Média (com o hebraismo cristão).
Entretanto, já haviam vários evangelhos (sobre a vida e destino de Jesus), epístolas atribuídas a apóstolos ou associados, narrativas sobre as primeiras atividades (“atos”) dos apóstolos e apocalipses em circulação entre as comunidades cristãs antes da formação do cânon do Novo Testamento. (Consulte aqui uma ótima plataforma com o texto integral de TODOS os escritos cristãos sobreviventes desse período)
Como esses crentes poderiam ser cristãos sem o Novo Testamento existir? Segundo a visão de que o cristianismo depende da infalibilidade bíblica, isso se torna incompreensível. Esses cristãos dos primeiros séculos não podiam simplesmente ir checar no Novo Testamento se suas doutrinas e preceitos eram baseados no Novo Testamento. Não existia um Novo Testamento! E sem sua existência, por simples lógica, também não existia uma coleção de textos infalível em matéria de fé e prática que guiasse as comunidades…
Então, de onde vinham suas crenças, se não as tiravam de um texto infalível? De uma tradição oral que remontava aos apóstolos, via uma cadeia de transmissão pela ordenação dos bispos. Esta era a Doutrina dos Apóstolos, ou o Evangelho.
(Não confundir o Evangelho neste sentido com os evangelhos enquanto livros, enquanto obviamente a homonímia tem a ver com a proximidade maior do Evangelho com os evangelhos do que com outras formas de literatura bíblica, como veremos a seguir)
Com esse ensinamento oral, os Pais da Igreja (autores dos escritos cristãos pós-apostólicos dos primeiros séculos) conseguiram combater o gnosticismo em seu meio, o qual trazia uma outra tradição oral, mas que os gnósticos afirmavam ser a ‘doutrina SECRETA dos apóstolos’.
Por meio da ideia da sucessão apostólica, a integridade do verdadeiro ensinamento oral dos apóstolos seria preservada. Até hoje algumas igrejas mantém a sucessão apostólica de seu episcopado, que é rastreável até os apóstolos originais: as Igrejas Ortodoxas Orientais, a Igreja Católica Romana, a Igreja Anglicana e algumas Igrejas Luteranas (as Nacionais Escandinavas).
Curiosamente, nesse embate entre os Pais da Igreja (representantes do que viria a ser a Ortodoxia Cristã) e os gnósticos cristãos, a iniciativa da formação de um cânon foi… dos gnósticos! Sim, a ideia de um cânon escrito definido foi originalmente dos HEREGES!
Então, Marcião, um gnóstico cristão (em sentido amplo*), trazia seus argumentos munidos de um cânon composto de 1 evangelho (similar ao de Lucas) e de 10 epístolas de Paulo, por volta do ano 144 . (*Em sentido amplo, porque a rigor o marcianismo pode ser considerado uma corrente distinta do gnosticismo, mas não vamos entrar nesse mérito aqui)
Seu objetivo declarado era substituir o cânon herdado dos judeus, o ‘Velho’ Testamento, por esse novo conjunto de obras, no qual, para Marcião, seria cristalina a doutrina gnóstica dos apóstolos! (Marcião diferia dos gnósticos em recorrer à evidência textual escrita, ao invés da tradição oral secreta)
Simplificando um pouco, para Marcião, o Deus do “Velho” Testamento seria um demiurgo mau, em contraposição ao verdadeiro Deus, que seria o do Cristo. Ele apoiava isso com base no cânon do ‘Novo Testamento’ que ele mesmo compilara.
Os Pais da Igreja protestaram contra isso e retiveram o “Velho” Testamento como um texto autorizado de sua fé. (A meu ver, fizeram isso com muita sabedoria!) Mas ao mesmo tempo isso catalisou o início do processo que levaria à formação do cânon do Novo Testamento como um texto autorizado da Ortodoxia Cristã compilando escritos atribuídos aos apóstolos e seus associados.
E como o cânon do Novo Testamento veio a ser escolhido? Eusébio de Cesaréia, um dos Pais da Igreja, nos conta que o fator principal era que um livro candidato tivesse aceitação ampla entre diversas comunidades cristãs (ortodoxas) como tendo realmente sido escritos por apóstolos ou por seus associados.
E o que levava a essa aceitação entre diferentes comunidades? Que esses textos convergissem com…. aquela tradição oral, a Doutrina dos Apóstolos ou Evangelho, que era repassada desde os apóstolos para os bispos da geração presente (alguns dos quais hoje são chamados de Pais da Igreja) por uma cadeia ininterrupta de transmissão.
Afinal, que melhor maneira de checar a autoria apostólica dos escritos senão pela coincidência do texto escrito com o ensinamento oral reconhecido como sendo dos apóstolos?
Por conta disso, vemos que alguns escritos hoje incluídos entre os mais antigos Pais da Igreja, os assim chamados pais apostólicos, quase entraram no Novo Testamento: o Didaquê, também chamado de Doutrina dos Doze Apóstolos (!), a Epístola de Barnabé (discípulo associado ao apóstolo Paulo) e o Pastor de Hermes. São chamados de antilegomena.
Assim, vemos que a linha entre escritos ‘canônicos’ e escritos não canônicos que representavam o ponto de vista apostólico era muito tênue. Não havia essa divisão rígida criada posteriormente na qual, ao nos movermos para os textos do Novo Testamento, de repente passamos da literatura falível dos Pais para a literatura infalível dos Apóstolos e/ou seus discípulos associados.
A divisão era simplesmente entre o primeiro grau da tradição oral apostólica posta por escrito (os textos do Novo Testamento) e os graus posteriores na cadeia de transmissão (os textos dos primeiros Pais da Igreja, por exemplo, a Epístola de Inácio, o qual conhecera e fora discípulo do Apóstolo João). O que os mantinha numa mesma cadeia não era a infalibilidade dos textos, mas a veracidade da Doutrina Apostólica do qual os textos eram suportes escritos.
Com isso, mesmo após formado o cânon do Novo Testamento, nos séculos subsequentes tanto na tradição das Igrejas Orientais como da Igreja Romana, todos os livros bíblicos eram cânon inspirado, mas não possuíam igual peso.
Isso se reflete até hoje na liturgia dessas Igrejas, onde o papel de destaque reside nos Quatro Evangelhos, que narram a vida, morte e ressurreição de Jesus. (De uma maneira similar a como a Torá, para os judeus, têm um peso maior que os demais livros da Bíblia Hebraica)
O ‘Velho’ Testamento nos Pais da Igreja passava por uma interpretação alegorizante que se baseava na Doutrina Apostólica oral (no entendimento helenista desta, se considerarmos que as perspectivas mais judaico-observantes — e as sabatistas — que floresceram na comunidade cristã apostólica acabaram perdendo espaço por razões que não tratarei aqui).
E no Novo Testamento, o centro nuclear residia nos Quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João). Os demais livros eram lidos à luz dos Evangelhos e da Doutrina Apostólica oral (das quais agora já se tinha uma coleção escrita, os Pais da Igreja de que viemos falando). E também os Evangelhos eram lidos à luz do Evangelho (no sentido da Doutrina Apostólica oral).
E pela crença de que a Igreja é guiada pelo Espírito Santo, por meio de uma cadeia ininterrupta de ordenação e ofício sacramental iniciada nos apóstolos, surge a ideia da ‘infalibilidade’ dos Concílios Universais dessa Igreja. As decisões dos Grandes Concílios Ecumênicos seriam infalíveis por serem guiadas pelo Espírito Santo recebido dos apóstolos.
Em termos práticos, isso significava que a Igreja guardiã da Doutrina Apostólica derivava a autoridade de seus concílios ecumênicos da veracidade dessa Doutrina que foi transmitida a ela pelos apóstolos.
Novamente: não da Bíblia, porque a da Bíblia também deriva da Doutrina. E dentro da Bíblia, os Evangelhos que são a autoridade suprema, pois neles veríamos o Evangelho da transmissão oral posto por escrito com mais detalhe.
Agora você deve estar conseguindo entender porque o credo apostólico não cita a Bíblia né?
No cristianismo oriental, essa visão foi mais ou menos mantida organicamente até os dias de hoje. A espiritualidade e teologia das Igrejas Ortodoxas Orientais (grega, bizantina, Copta, Tewahedo, Síria, etc.) são muito menos doutrinárias e sistemáticas que as do cristianismo ocidental por essa razão. O aspecto místico dos Dogmas foi preservado em grau maior.
Já no cristianismo ocidental, houve uma grande ruptura com a Reforma Protestante, quase 1 milênio e meio depois de iniciado o cristianismo. Isso levou a uma reação pela Igreja Católica, chamada de Contra-Reforma, que foi a primeira vez onde teólogos, sentindo estarem acuadas as reivindicações da Igreja, tiveram de formular explicitamente a ideia de infalibilidade bíblica. (Vide cardeal Berllamino) E também da própria infalibilidade da Igreja, que culminou séculos depois no dogma da Infalibilidade Papal, adotado pela Igreja Católica Romana apenas em 1870.
Mas entre os reformadores protestantes, é famoso como Lutero manteve a ideia de que os livros bíblicos não possuem o mesmo peso. Para Lutero, havia um cânon dentro do cânon: quanto mais um livro espelhava a mensagem do Santo Evangelho (agora definido em termos das epístolas de Paulo e de uma tradição agostiniana como pano de fundo), mais esse livro tem valor.
Note: a diferença de Lutero para com a Igreja Católica, que o levou ao famoso Sola Scriptura, não era que a Bíblia fosse mais importante que a Doutrina Apostólica ou Evangelho. Para Lutero, o Evangelho/Doutrina era o mais importante. Contudo, Lutero o definia diferente da Igreja Romana.
Lutero entendia o Evangelho ou Doutrina Apostólica como a doutrina da justificação somente pela fé em Jesus Cristo, encontrada nas epístolas de Paulo, e não mais como todo um conjunto de Tradição Oral que se avolumou no contexto católico e ganhou uma conotação escolástica durante o medievo.
Ele respeitava profundamente os Pais da Igreja, mas entendia que todos — livros bíblicos, escritos dos Pais, as tradições da Igreja Romana — deveriam ser julgados por essa doutrina. E com isso o centro das Escrituras passa a ser as epístolas de Paulo (e o Evangelho de João), ao invés dos Quatro Evangelhos.
Famosamente, Lutero via certos escritos do Novo Testamento como tendo pouco valor. O caso mais famoso é o da Epístola de Tiago, a qual Lutero considerava uma ‘epístola de palha’, por enfatizar demais a Lei ao invés do Evangelho.
Mas com certos desenvolvimentos do protestantismo reformado/calvinista (a ideia de que só é autorizado dentro da igreja aquilo que as Escrituras explicitamente permitem, em contraste ao padrão luterano/anglicano de permitir o que as Escrituras não proíbem) e mesmo no próprio braço luterano (ortodoxia luterana, com uma nova escolástica que pretendia definir no exato detalhe o conteúdo proposicional da fé justificadora), também no protestantismo se chegou na ideia de uma infalibilidade bíblica intrínseca, igual para todos os livros bíblicos e não derivada da veracidade da Doutrina Apostólica.
Assim, ao fim dessa história que narrei com vocês, a ideia de infalibilidade bíblica intrínseca é um produto da contra-reforma católica e da consolidação de uma ortodoxia protestante pós-reforma.
Seu contexto foi a necessidade de definir qual era a igreja certa num cenário de divisão eclesiástica, num ramo de cristianismo (o ocidental) que já se preocupava muito com a formalização da crença desde a Escolástica Medieval (anterior à Reforma Protestante). Mas essa tese da infalibilidade bíblica até então nunca fora realmente necessária para embasar a fé de nenhum cristão, e o cristianismo não depende logicamente dela para subsistir.
Sempre haverá cristianismo enquanto houver o querigma cristão, isto é, as crenças e práticas entendidas como sendo o Evangelho de Jesus Cristo que foi transmitido pelos seus Apóstolos. Seja numa versão ortodoxa oriental, católica romana ou protestante disso. Mesmo se a Bíblia desaparecesse!
Texto originalmente publicado no blog O Evangelho de Brian
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