[170] A Bíblia NÃO idealiza a família

A Estrela da Redenção
8 min readNov 27, 2021

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Vi recentemente o seguinte raciocínio sendo formulado: ao contrário do que a sociedade pensa, a relação familiar (especialmente a dos pais/mães para com os filhos/filhas) é geralmente negativa. A razão é que aquilo que aceitamos como normal numa relação de parentesco consanguínea (incluindo aqui também o caso de adoção), se ocorresse em outros tipos de relacionamento (geralmente imaginando namoros ou amizades), seria considerado ‘relacionamento tóxico’, um termo que ganhou tração nas redes sociais para abordar amizades ou namoros ruins. Portanto, segue o raciocínio, não deveríamos dar um peso especial às relações familiares consanguíneas, já que isso só serviria para promover relacionamentos tóxicos dos pais/mães em desfavor de seus filhos/filhas.

Me parece que há um sério defeito nele. Parece supor que o motivo para se dar um peso especial às relações consanguíneas (em especial a vertical, de pais/mães e filhos/filhas) tem a ver com se pensar (ou fingir) que esses relacionamentos sejam perfeitos ou idealizados, a famosa ‘família de comercial de margarina’. Então, foi necessário que a humanidade aguardasse durante milênios que alguém viesse em 2021 ‘desconstruir’ isso, nos informando a ‘chocante’ e ‘inédita’ verdade de que esses relacionamentos podem ser muito ruins!

O problema disso começa pela falta de perspectiva histórica. Por exemplo, muitas obras literárias já em gerações anteriores e mesmo séculos passados exploravam os problemas das relações familiares, com críticas ao comportamento inadequado dos pais/mães em relação aos filhos/filhas, e também o outro lado da equação, o caso do comportamento inadequado dos filhos/filhas contra os pais/mães. E se você for para coisas como a psicanálise freudiana, verá isso sendo tratado exaustivamente como a questão central.

Mas ainda mais curiosamente — dado o enfoque desse blog — a verdade é que tal ponto é tratado também na obra-mor milenar que esse tipo de discurso tende a ‘vilanizar’ como culpada pela tal idealização: a Bíblia, mais especificamente a Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento), onde um dos Dez Mandamentos explicitamente afirma para os filhos e filhas honrarem seus pais e mães. Aqui me focarei na Bíblia Hebraica e na interpretação judaica desta para entendermos melhor a raiz desse ponto.

Sim, a Bíblia Hebraica fala para os filhos/filhas honrarem seus pais/mães. Mas isso não tem ABSOLUTAMENTE NADA A VER com alguma idealização da família ‘tradicional’. Vamos entender isso melhor…

A Bíblia Hebraica traz inúmeros relatos de comportamento inadequado de pais contra filhos (e de filhos contra pais, ou de um irmão contra o outro). E tais relatos não ocorrem apenas em famílias ‘ruins’, mas sim no próprio seio das melhores famílias.

Por exemplo, o inteiro livro do Gênesis é uma compilação de como a vida familiar pode ser muito complicada. Ali se fala de famílias entendidas como ancestrais da humanidade inteira (Adão/Eva, Noé e sua esposa, etc.), e com grande detalhe dos Patriarcas e Matriarcas do povo judeu (Abraão/Sara, Isaque/Rebeca, etc.).

Mas várias narrativas se movem com base em como as coisas dão errado. Por exemplo, todo o arco de Jacó tem relação com seu pai Isaque favorecer seu irmão gêmeo Esaú por motivos não muito objetivos (e Jacó não deixa por menos, enganando seu pai para evitar que Esaú seja favorecido indevidamente). De outro lado, o próprio Jacó vai apresentar um favoritismo quanto ao seu filho José, que levará aos meio-irmãos de José (irmãos por parte de pai, mas não de mãe) planejarem uma forma de sumir com ele! Outro caso ainda mais gritante é como Ló, irmão de Abraão, oferece suas filhas a uma turba furiosa em Sodoma e Gomorra, para evitar que a multidão maltratasse e estuprasse os visitantes que Ló acabara de receber em casa. (Os sábios da tradição oral judaica criticam muito Ló por isso, veja Tanhuma, Vayera 12; e caso você não conheça essa história, as filhas de Ló não chegaram a cair no poder da turba justamente pela intervenção dos próprios visitantes)

Agora note: o livro de Gênesis está falando na maior parte do tempo de personagens tidos em alta estima (não é bem o caso de Ló, mas é o de Isaque e Jacó por exemplo). Ainda assim não se furta a mostrar como as vidas familiares desses personagens teriam sido conturbadas, mesmo ‘tóxicas’ se usássemos o linguajar atual.

Poderíamos dar exemplos de outras partes da Bíblia Hebraica (a família de Davi e sua dinastia sendo um caso bem emblemático, nos livros de [1–2]Samuel e [1–2]Reis), mas esses exemplos fornecidos do Gênesis já ilustram bem que a Bíblia Hebraica não idealiza a família.

A família retratada na Bíblia Hebraica não é a família de um comercial de margarina!

Imagem usada em uma propaganda da marca Robertson’s Mincemeat, 1933, publicada no The Illustrated Sporting and Dramatic News. Para ver a propaganda completa, acesse aqui.

Ainda assim, a Bíblia Hebraica coloca entre os preceitos dados ao povo judeu o de honrar pai e mãe.

Note: ‘honrar’, ‘respeitar’, ‘ter uma reverência especial’, mas não se pede nem exige que eles sejam ‘amados’ ou que se ‘goste’ deles. São questões diferentes!

A jurisprudência milenar da Lei Judaica desenvolveu essa questão em termos práticos, fornecendo exemplos de comportamentos que se encaixariam ou não nesse respeito especial concedido aos pais/mães, mas em nenhum momento condenando ninguém por não gostar de seus pais/mães (ainda mais se houvesse um motivo justo para tanto).

Creio que a maioria das pessoas entenda que você pode ‘respeitar’ alguém (em alguma medida), mesmo se você não ‘goste’ dessa pessoa ou de suas condutas. No caso das relações familiares, a ideia é que há um respeito especial devido aos progenitores, que você não forneceria a nenhum outro adulto da sociedade mesmo que também fosse mais velho que você, mas sim especificamente a ESSES adultos mais velhos que você (seja você um infante, um adolescente ou simplesmente um adulto mais jovem).

Trata-se de um favoritismo para com esses adultos específicos, que teria como contrapartida o favoritismo dos próprios pais/mães com relação a seus filhos/filhas, o qual é manifestado, entre outras coisas, pelo investimento financeiro e temporal desproporcional que os pais/mães fazem em relação a seus filhos/filhas especialmente enquanto estes lhes são totalmente dependentes (obviamente existem casos onde isso não acontece, mas acho que dá pra entender que estou falando de algo que ‘geralmente’ é razoável esperar que aconteça).

(Não entrarei aqui em como esse respeito especial foi debatido e articulado dentro da discussão judaica tradicional e mesmo da contemporânea — outro dia posso entrar nisso, mas deixo de indicação os seguintes textos introdutórios: “ABCs of Honoring Parents”, de R. Shraga Simmons; “Honoring One’s Parents: How Far Should We Go?”, de Mark Greenspan; “Honor Is Not Enough”, por Miriam Eskenasy; “Must One Honor an Abusive Parent?”, do site My Jewish Learning)

Esclarecido isso, agora sim podemos debater se quisermos: por que fornecer um respeito especial aos progenitores, que não concedemos a nenhuma outra pessoa? Devemos fazê-lo? Caso sim, qual seria a medida desse respeito especial? Caso não, quais as consequências de tratar pais/mães como equivalentes a qualquer outra pessoa da sociedade sem relação consanguínea com você?

É aqui que ‘o bicho pega’, pois é muito implausível — até num sentido jurídico mesmo — que os pais/mães fossem tratados como pessoas quaisquer em relação a seus filhos. Isso não repercutiria apenas no campo dos direitos e obrigações dos filhos para com os pais, mas também na dos pais para com os filhos. Você não pode mexer numa peça dessa engrenagem institucional-social complexa, sem desorganizar muito mais coisa em consequência.

Então, para que essa ideia de equivalência seja realmente levada a sério, você precisaria de um arranjo social muito diferente. Um exemplo concreto disso foi fornecido pelos kibbutzim israelenses de primeira geração, onde os filhos/filhas eram criados separadamente de seus pais/mães, que não mantinham relações especiais com sua prole e nem seriam vistos de forma distinta em relação aos demais adultos do kibbutz, sendo a infância vivida em alojamentos coletivos para crianças. Nesse experimento social radical, sim, fazia sentido tratar os pais/mães como equivalentes aos demais adultos. Contudo, isso era bom? As consequências observadas nos kibbutzim não foram tão favoráveis em relação a esse modelo, que acabou sendo revertido pelas gerações mais recentes de kibbutzniks.

E talvez possamos também reverter o raciocínio original que estou criticando aqui. Segundo aquele raciocínio, o potencial danoso das relações familiares seria um motivo para não dar nenhum peso especial a tais relacionamentos. Contudo, podemos ir pelo lado oposto: é justamente porque as relações familiares podem ter um potencial danoso significativo que precisamos dar um peso especial a tais relacionamentos!

O potencial danoso significativo é o outro lado da moeda do potencial benéfico significativo. Talvez seja impossível ter um sem o outro, porque relacionamentos humanos íntimos são complicados. Mas, se pudermos organizar a vida familiar de maneira que possa ser mais harmônica e proveitosa para os envolvidos, então tais pessoas só teriam a ganhar desses fortes laços consanguíneos. Nesse sentido é preciso evitar os extremos do rigor excessivo e da permissividade excessiva. E aqui a questão envolve também como você — agora já crescido — pode agir para que a família que você construir seja boa, independente se seus pais/mães fizeram o melhor ou não, no caso de quando eles tiveram essa escolha nas mãos.

No contexto da sociedade moderna — onde os laços familiares já são mais enfraquecidos pelas próprias condições econômicas e sociais — muita coisa que teria lógica no passado (no qual os laços familiares detinham automaticamente e organicamente um peso muito intenso nas relações sociais; p. ex. o nepotismo é uma herança de quando era esperado que os pais sempre iriam buscar beneficiar seus filhos) pode e deve ser repensada. Isso sem contar as coisas que mesmo no passado já fossem opressivas ou inadequadas numa avaliação imparcial (evitado o anacronismo). Mas o antídoto aqui não me parece enfraquecer ainda mais a instituição familiar, e sim pensar em formas esclarecidas de fortalecê-la (incluindo aqui não só famílias provenientes de uniões heterossexuais, mas também aquelas provenientes de uniões homoafetivas).

Por exemplo, um dos maiores problemas sociais atuais é a desestruturação familiar, que efetivamente prejudica o desenvolvimento infantojuvenil — e prejudica não porque laços familiares ‘fortes’ sejam ‘tóxicos’, mas justamente pela REDUÇÃO da ‘força’ desses laços intensificar a vulnerabilidade social e afetiva. A estabilidade familiar é um fator-chave para os indivíduos em formação, e para a sociedade num sentido mais amplo.

Então, devemos levar a sério sim as questões envolvendo pais/mães abusivos, e como colaborar para o bem-estar físico e mental dos filhos/filhas dessas famílias. Mas isso não implica que deveríamos entender os laços familiares como desimportantes ou que deveríamos avaliá-los de forma equivalente a quaisquer outros relacionamentos individuais. O peso especial conferido às relações familiares nunca foi dependente de se ter uma visão idealizada da família, como a própria Bíblia Hebraica atesta há milênios. E talvez seja justamente por se ter uma visão mais sóbria e não utópica dessa questão que seja recomendável conceder uma consideração especial a tais relações.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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