[166] Nova Direita Gospel como BESTA DO APOCALIPSE (!)

A Estrela da Redenção
17 min readNov 22, 2021

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O Evangelismo Gospel tem uma alta preocupação com as Bestas do capítulo 13 do livro de Apocalipse, com a tão famosa questão da “marca da Besta” e o “número da Besta, 666”. A identificação dessas Bestas e sua marca seria de suma importância, com hipóteses variadas desde chips implantados no corpo à geopolítica do Oriente Médio. Contudo, ironicamente, não poderia o Evangelismo Gospel, ao promover a Nova Direita Gospel como seu braço político, estar contribuindo para a irrupção do domínio ‘da Besta’? Não poderia a própria Nova Direita Gospel ser uma das BESTAS DO APOCALIPSE?

Talvez o leitor possa achar essa hipótese um tanto quanto ‘gratuita’, mas nesse post pretendo explicar como, na verdade, é plausível considerar a Nova Direita Gospel (que abordei no post anterior) como candidata potencial a ser enquadrada como uma das Bestas do Apocalipse! No mínimo, existem melhores bases bíblicas, históricas e até filosóficas para entender a Nova Direita Gospel em termos afins ou próximos às Bestas do Apocalipse do que há para especulações acerca de chips implantados ou para a geopolítica israelense.

Antes de prosseguir um aviso importante: o objetivo desse texto não é atacar nenhuma religião, seja o catolicismo romano, seja o protestantismo, seja o evangelicalismo, etc. Esse aqui é o 8º texto de uma série crítica ao fenômeno do Evangelismo Gospel no meio evangélico reavivalista/pentecostal/neopentecostal, mas no texto onde defino tal fenômeno (o [159]) deixo claro que há pessoas e lideranças nessas igrejas evangélicas que também criticam tal tendência. Aqui no blog busco fazer uma discussão teórica séria sobre questões religiosas e culturais em sintonia com a pesquisa acadêmica. Meu foco é o judaísmo (a perspectiva judaica, portanto, norteia esse blog), mas de vez em quando abordo outras tradições religiosas, especialmente na medida em que se conectem com fontes judaicas ou com ideias/práticas judaicas.

O que mostrarei aqui é que, dentro da própria perspectiva cristã-clássica, faz sentido alinhar as Bestas do Apocalipse com os Poderes Políticos-Religiosos Cristianizados de perfil tirânico e corrupto que existiram e ainda poderão existir ao longo da história humana. Também farei um paralelo com a tradição judaica, na qual também se faz o alinhamento da Quarta Besta e seu Chifre Pequeno do livro de Daniel com tais Poderes Políticos-Religiosos. Toda essa terminologia ficará mais clara no decorrer da apresentação!

O livro do Apocalipse faz parte do Novo Testamento cristão, portanto, faz parte do cânon cristão, não do judaico. Já o livro de Daniel faz parte da Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento), um exemplar de literatura judaica antiga compartilhado por judeus e cristãos. O livro do Apocalipse dialoga diretamente com o livro de Daniel, daí a relevância dos paralelos entre Daniel e Apocalipse.

No livro de Daniel, existem alguns sonhos e visões (pelo rei babilônico Nabucodonosor e pelo sábio judeu Daniel) a respeito de uma sucessão de Quatro Reinos. Mais especificamente, na visão tida por Daniel no capítulo 7, aparecem Quatro Bestas, ou Quatro Animais, representando Quatro Impérios.

Note que a palavra ‘Besta’ significa primariamente ‘Animal’, enquanto algumas das Bestas/Animais de fato sejam Bestas/Monstros também. As Bestas do Apocalipse derivam desse simbolismo das Bestas de Daniel, mais especificamente a da quarta Besta.

A 1ª Besta de Daniel era um leão com asas de águia. A 2ª Besta de Daniel era um urso, roendo 3 costelas entre seus dentes. A 3ª Besta de Daniel era um leopardo com 4 asas de ave e com 4 cabeças. Todas essas imagens já são impressionantes por si mesmas, mas a 4ª Besta de Daniel leva a coisa toda a um novo patamar:

“Depois disto eu continuei olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha dentes grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez chifres.
Estando eu a considerar os chifres, eis que, entre eles subiu outro chifre pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava grandes coisas.” (Daniel 7:7,8)

A interpretação das Quatro Bestas já é dada logo em seguida:

“Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que se levantarão da terra.” (Daniel 7:17)

Ainda não satisfeito, Daniel inquire pela Quarta Besta, e pelo Chifre Pequeno, ao que lhe é respondido:

O quarto animal será o quarto reino na terra, o qual será diferente de todos os reinos; e devorará toda a terra, e a pisará aos pés, e a fará em pedaços.
E, quanto aos dez chifres, daquele mesmo reino se levantarão dez reis; e depois deles se levantará outro [chifre], o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis.
E proferirá palavras contra o Altíssimo, e destruirá os santos do Altíssimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei; e eles serão entregues na sua mão, por um tempo, e tempos, e a metade de um tempo.
Mas o juízo será estabelecido, e eles tirarão o seu domínio, para o destruir e para o desfazer até ao fim.
E o reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo; o seu reino será um reino eterno, e todos os domínios o servirão, e lhe obedecerão.” (Daniel 7:23–27)

Aqui mostra-se o paralelismo com a visão do rei babilônio Nabucodonosor em Daniel 2, acerca de uma grande estátua, cujas partes representavam reinos também, mais especificamente grandes impérios a começar do babilônico. É por esse motivo que sabemos que a Primeira Besta representa o Império Babilônico, e as demais Bestas representam Impérios que sucederam os babilônios, dominando a terra de Israel.

As interpretações mais plausíveis para a Quarta Besta é que ela designa o Império Romano OU o Império Grego. Para aqueles que defendem que se trata do Império Grego, as Bestas são: Babilônios, Medos, Persas, Gregos. Para aqueles que defendem que se trata do Império Romano, as Besta são: Babilônios, Medo-Persas, Gregos, Romanos.

Em relação a essas interpretações, penso que devemos trabalhar com AMBAS. O redator do livro de Daniel (que compilou essas visões e narrativas) quase certamente entendia a Quarta Besta como sendo o Império Grego, e que o Chifre Pequeno fosse Antioco Epifânio, de modo que a descrição é modelada mais diretamente como pensando nessa figura específica (cuja derrota está por detrás da festa judaica de Chanuká). Contudo, por coincidência (ou não?), os eventos que levaram ao Império Romano acabaram se encaixando ainda mais fortemente dentro da descrição simbólica fornecida.

Por exemplo, a ‘abominação da desolação’ no Santuário parece remeter a quando Antioco Epifânio colocou uma estátua de Zeus no Templo em Jerusalém. Contudo, os romanos vieram e simplesmente derrubaram o Templo, e depois ainda buscaram criar um templo para Júpiter em seu lugar, e depois ainda levando ao exílio judaico. (Nos Evangelhos Sinóticos inclusive Jesus faz referência justamente à abominação da desolação prevista por Daniel, prevendo que os romanos destruiriam o Templo)

O Livro do Apocalipse foi escrito após a destruição do Templo, e, portanto, após o que seu autor acreditava ter sido (o início d)a ‘abominação da desolação’ de Daniel. Portanto, o escritor do Apocalipse entendia a Quarta Besta de Daniel como o Império Romano.

Quem era o escritor do Apocalipse? Seu nome era João de Patmos, que não deve ser confundido com o apóstolo João, nem com o escritor do Evangelho de João e das Epístolas de João (como a tradição acabou por confundir). O autor do Evangelho de João e das Epístolas de João é um; o autor do Apocalipse é outro.

O autor do Apocalipse era um judeu-cristão velha guarda, cuja mentalidade ainda era imersa no judaísmo, resistindo àquelas tendências helenizantes que acabaram por transformar o cristianismo numa religião separada (veja PAGELS, 2012, e ENCYCLOPAEDIA JUDAICA, 1906). Tanto que ele ainda reverbera muito da teoria messiânica apostólica original ainda bem judaica, ao invés de ‘cristológica’ (veja meus posts [147]-[148]).

Nesse sentido o livro do Apocalipse pode ser entendido como um exemplar da apocalíptica judaica da era romana, mas que acabou por identificar Jesus como o Messias. Um dos pontos cruciais para ele é que a Torá permanecia válida, mas que aqueles que seguissem as mitzvot (preceitos/mandamentos) da Torá seriam perseguidos, tal como Jesus seguia as mitzvot e fora executado por Roma.

“E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao remanescente da sua semente, os que guardam os mandamentos de Deus, e têm o testemunho de Jesus Cristo.” (Apocalipse 12:17)

“Aqui está a paciência dos santos; aqui estão os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus.” (Apocalipse 14:12)

Bem-aventurados aqueles que guardam os seus mandamentos, para que tenham direito à árvore da vida, e possam entrar na cidade pelas portas.” (Apocalipse 22:14)

A ameaça não era, porém, apenas externa/persecutória, mas interna/doutrinal, onde ‘falsos mestres’ ensinavam os seguidores de Jesus a descumprirem a Torá. Nos trechos abaixo, isso é resumido na questão de comer carne dedicada a ídolos e a ‘fornicação’, esta última provavelmente remetendo ao desrespeito às regras judaicas-tradicionais de casamento e pureza familiar, como revela a menção aos casos de Balaão e Jezabel, ambos episódios nos quais a união sexual ilegítima entre judeus e não-judeus levou a desastres para o povo judeu.

“algumas poucas coisas tenho contra ti, porque tens lá os que seguem a doutrina de Balaão, o qual ensinava Balaque a lançar tropeços diante dos filhos de Israel, para que comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem.” (Apocalipse 2:14)

“algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria.” (Apocalipse 2:20)

Pois bem, agora indo para o que nos interessa mais: e as Bestas do Apocalipse? O que elas são?

Como afirmado, o autor do Apocalipse está tentando interpretar a Quarta Besta de Daniel, ou seja, o Império Romano. Então as Bestas do Apocalipse tem relação com o Império Romano, e com tiranos gentios (não-judeus).

Isso é importante esclarecer porque o Evangelismo Gospel favorece a interpretação de que a Besta seria um líder judeu do Estado de Israel que se apresentaria falsamente como messias, mas essa interpretação foge totalmente do horizonte simbólico do livro do Apocalipse, porque desde o livro de Daniel as Bestas são Reinos i. e. Poderes Políticos NÃO-JUDAICOS que dominam o povo judeu.

O Apocalipse apresenta 2 Bestas, uma vinda do mar e uma vinda da terra.

A do mar é descrita da seguinte forma:

“e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.
E a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a sua boca como a de leão” (Apocalipse 13:1,2)

A da terra é descrita da seguinte forma:

“E vi subir da terra outra besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro; e falava como o dragão.” (Apocalipse 13:11)

A Besta do mar é não só um Animal, mas um Monstro, evocando claramente a Quarta Besta de Daniel. Já a Besta da terra é um Animal que parece um cordeiro, mas fala como um dragão, e apoia a Besta do Mar.

A Besta do Mar representa mais claramente a Quarta Besta de Daniel e seu chifre pequeno, num tom de blasfêmia explícita contra Deus, seu santuário, seu povo etc.

“E [à Besta do mar] foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois meses.
E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua, e nação.” (Apocalipse 13:5–7)

Já a Besta da Terra representa uma espécie de linha auxiliar à Quarta Besta de Daniel e ao chifre pequeno, mas que é mais sutil, mais persuasivo e convincente, aparentando ser ‘divino’ ou ‘apoiado pelo divino’:

“E [a Besta da terra] fez grandes sinais, de maneira que até fogo faz descer do céu à terra, à vista dos homens.
E engana os que habitam na terra com sinais que lhe foi permitido que fizesse em presença da besta [do mar], dizendo aos que habitam na terra que fizessem uma imagem à besta [do mar] que recebera a ferida da espada e vivia.” (Apocalipse 13:13,14)

Aqui é muito importante destacar que a Besta da terra tem chifres de cordeiro, mas fala como dragão. No Apocalipse, diversas vezes se menciona ‘o Cordeiro’, para representar Jesus. Então essa Besta da terra traz consigo uma aparência de ‘cordeiro’, mas na realidade pertence ao ‘dragão’ (o inimigo do Cordeiro, que é identificado como Satanás).

Então, o autor do Apocalipse identificava a Besta do Mar como a Força Imperial Romana, mas a Besta da Terra, mais elusivamente, representa algum tipo de Braço Religioso dessa Força Imperial Romana. Muitos estudiosos pensam que a Besta do Mar alude a Nero, por conta do número da Besta, 666, ser o número em gematria (uma forma de numerologia judaica com as letras hebraicas) do nome ‘Nero César’ em hebraico. Como o autor do Apocalipse escreve bem depois de Nero, é como se ele imaginasse que alguém como Nero voltaria, ou mais metaforicamente que a ferocidade de Nero voltaria ao Império Romano, mesmo que no tempo de sua escrita o Império estivesse relativamente ‘quieto’.

Tal como no caso de Antioco Epifânio, a inspiração original que modela a descrição não necessariamente restringe aquilo que se encaixa nela. Por diversas vezes a ferocidade ‘de Nero’ voltou, seja com a guerra judaico-romana de 135 EC que levou à expulsão judaica da palestina, seja com a perseguição anti-cristã, etc. sob o Império Romano Pagão.

Mas numa grande reviravolta, o Império Romano se cristianizou, adotou o cristianismo como religião oficial. E a partir daí o poder cristão hegemônico passou a perseguir outros cristãos (vistos como hereges) e a perseguir os judeus, submetendo-os a uma série de restrições. Ou seja, a ferocidade do Império Romano persistiu em reaparecer depois de sua cristianização, agora tendo ‘chifres de cordeiro’.

Portanto, seguindo esse raciocínio, podemos concluir que as Bestas do Mar e da Terra aludem a Poderes Políticos de caráter ROMANO e CRISTÃO (ou Cristianizado). Não necessariamente ambos ao mesmo tempo, haja vista que, ao tempo da escrita do Apocalipse, o Império Romano não era cristão. Não temos como saber se o autor do Apocalipse conseguiria sequer imaginar que algum dia o Império Romano viria a se tornar cristão, passando a perseguir judeus e outros cristãos ‘em nome de Jesus’, e descartando uma série de preceitos da Torá (mais famosamente, consolidando o domingo como substituto do sábado/shabat). Mas certamente o autor do Apocalipse conseguiria ver nisso uma realização de sua visão!

Agora note: o problema aqui não está com o desenvolvimento teológico do cristianismo da época, ou com alguma versão específica de cristianismo. A análise aqui não é sobre o conteúdo da ortodoxia cristã que se impôs após a cristianização do império, mas sim sobre a institucionalização política motivando religiosamente uma perseguição contínua aos dissidentes e ‘não-seguidores’, com ênfase àqueles que observassem a Torá mais à risca. Então, simbolicamente, a ‘Roma Cristã’ sucedeu a ‘Roma Pagã’ na consecução do simbolismo do Quarto Reino de Daniel e das Bestas do Apocalipse.

Curiosamente, tanto as discussões judaicas clássicas como as cristãs clássicas foram sensíveis a esse aparente paradoxo do poder político ‘romano’ ser cristianizado.

Para falar do caso cristão clássico, vou fazer referência mais especificamente os adventistas, mas isso se dará por 2 motivos: 1) porque essa denominação mantém uma perspectiva historicista que acabou por uma série de motivos caindo em desuso, mas que era a perspectiva clássica dos reformadores protestantes (Lutero, Calvino, etc.) e que já aparecia entre os católicos medievais (Joaquim de Fiore, etc.); 2) porque isso permitirá finalmente ligar toda essa discussão com a Nova Direita Gospel.

Com base no livro de Daniel, uma posição muito articulada dentro da tradição judaica foi a de que o último Império opressivo a dominar sobre os judeus seria o Império Romano (também chamado de Edom, utilizando uma simbologia que remete a Esaú irmão de Jacó). O Império Romano em questão não é apenas aquele que existiu no passado, mas também sua sobrevivência de maneira dividida sob uma versão cristianizada (seja no Império Romano do Oriente, seja na instituição do Papado em Roma, seja no Sacro Império Romano, etc. em suma, designando de maneira ampla os governos históricos de países cristãos, especialmente europeus).

Esse “Quarto Reino” fez duas coisas terríveis contra os judeus: 1) a destruição do Segundo Templo e o exílio judaico, ainda na sua época pagã; 2) perseguição violenta e marginalização ostensiva das comunidades judaicas, de forma contínua, durante sua época cristã. O terrível cúmulo disso se deu com a Shoá, durante a Segunda Guerra Mundial, na qual milênios de antissemitismo cristão, agora com um verniz racial-moderno, levaram a um genocídio impensável contra o povo judeu.

(Independente se Hitler fosse ou não cristão em seu foro íntimo, o fato é que o próprio Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães promovia uma forma de cristianismo, a qual denominava de ‘cristianismo positivo’, como uma forma de unificar todas as igrejas cristãs alemães; confira o livro “O Santo Reich”, de Richard Steigmann-gall)

Já no caso da teologia adventista, com base no livro de Daniel (e nesse caso, lido em paralelo ao livro do Apocalipse), uma conclusão parecida é tirada: o Império Romano Cristianizado é o ‘Quarto Reino’, é o ‘Anticristo’, que sistematicamente perseguiu os dissidentes, com especial ênfase perseguiu aqueles dissidentes que… guardavam o Shabat. Enquanto a explicação adventista foque na perseguição a outros cristãos por parte da cristandade politicamente dominante, e portanto de observantes do sábado que fossem também cristãos, não é difícil ver como os judeus claramente se encaixam muito bem como uma minoria sabatista, que preservava a Lei de Deus, sendo perseguida continuamente por esses governos e instituições eclesiásticas ‘corrompidas’.

Não confunda: essa explicação judaica tradicional e a adventista (que nesse quesito é ‘cristã-clássica’) desse processo histórico sob os símbolos proféticos/apocalípticos NÃO implica em dizer que católicos, ortodoxos, ou mesmo outros protestantes são todos ruins ou algo do tipo. NÃO É ISSO! O que essa explicação foca é nos sistemas de poder (político, eclesiástico e cultural) que perpetraram injustiça e violência EM NOME DA FÉ CRISTÃ ao longo desses quase 2 milênios após o Império Romano ter adotado o cristianismo como religião oficial. Tais sistemas de poder sob um verniz cristão seriam “o Quarto Reino” em sua versão mais atualizada.

“E proferirá palavras contra o Altíssimo, e destruirá os santos do Altíssimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei; e eles serão entregues na sua mão, por um tempo, e tempos, e a metade de um tempo.” (Daniel 7:25)

Tudo isso nos leva à Nova Direita Gospel, e porque ela poderia ser candidata a uma das Bestas do Apocalipse.

A Nova Direita Gospel reproduz a postura de autoritarismo e tirania em nome da fé cristã que está por trás desse símbolo das Bestas do Apocalipse à luz de 2 milênios de história cristã e judaica.

Tentar impor o cristianismo com o poder do Império Romano foi o ‘erro fundamental’ cometido há muitos séculos atrás, levando a que, ‘em nome de Jesus’, muitas atrocidades e injustiças fossem cometidas, pervertendo assim todo o objetivo do próprio Jesus e de seus apóstolos.

A Nova Direita Gospel obviamente tem um approach muito menos violento do que, digamos, a Inquisição Espanhola, contudo, deveria ser claro mesmo de uma perspectiva cristã-evangélica que a Nova Direita Gospel entra numa tendência perigosa que se alinha àquela das demais associações profanas entre poder eclesiástico e civil/político ao longo da história cristã. É esse tipo de alinhamento que fazem as Bestas ressurgirem de tempos em tempos.

E o approach menos violento já estava previsto na própria visão do Apocalipse. Pois a Besta do Mar é que representa o lado mais explicitamente violento e agressivo e blasfemo. Já a Besta da Terra representa o lado mais ‘soft’, mais ligado à persuasão e à retórica, inclusive ao uso de supostos milagres para se validar.

Discutindo a interpretação da Besta da Terra, autores adventistas contemporâneos, como Norman Gulley, Marvin Moore e John Steves, têm explicitamente entendido a Direita Cristã Conservadora em sua versão americana como a tendência mais provável de cumprir o papel das “Bestas Apocalípticas” no horizonte atual. Seria a ameaça mais concreta à liberdade religiosa nos Estados Unidos de hoje, e de lá conturbando a ordem global. Veja “Apocalipse 13: isso pode realmente acontecer?” por Marvin Moore.

Para finalizar, a imagem abaixo ilustra bem como a Nova Direita Gospel se encaixa em toda essa discussão sobre as Bestas do Apocalipse, face ao livro de Daniel:

A imagem acima é uma sátira a respeito do apoio gospel à candidatura de Trump nos Estados Unidos. Muitos evangélicos caíram numa verdadeira idolatria política ao candidato Trump, simplesmente porque ele prometera apontar juízes (‘justices’) pró-vida, isto é, contrários ao aborto, para a Suprema Corte Americana. Por isso na sátira acima aqueles que se ajoelham diante do ídolo do rei se justificam tentando dizer que ao menos o rei prometeu apontar juízes pró-vida…. Qualquer semelhança com o caso brasileiro atual não é mera coincidência, sendo que nosso presidente da república também falou a respeito de nomear um candidato ‘terrivelmente evangélico’ para o Supremo.

A grande questão é se realmente vale tudo para realizar certos objetivos puramente religiosos na política. Há um enorme potencial de idolatria e injustiça envolvido nisso, de que a própria essência da mensagem cristã seja perdida… e a história cristã pretérita já deixava isso bem claro.

E a sátira acima foi feita em cima da imagem abaixo, que é a original:

A imagem original retrata um episódio do livro de Daniel. Mais especificamente o capítulo 3 de Daniel.

O Rei babilônico Nabucodonosor já tinha sonhado com uma estátua representando os Impérios sucessivos que dominariam Israel, mas que seriam derrotados por Deus no fim, e o sábio Daniel já havia explicado a ele toda essa interpretação.

Não obstante, Nabucodonosor ainda tentou exaltar a si mesmo e ao poder de seu império, mandando fazer uma estátua inteiramente de ouro e obrigando que todos adorassem a estátua.

“O rei Nabucodonosor fez uma estátua de ouro, cuja altura era de sessenta côvados, e a sua largura de seis côvados; levantou-a no campo de Dura, na província de babilônia.
Então o rei Nabucodonosor mandou reunir os príncipes, os prefeitos, os governadores, os conselheiros, os tesoureiros, os juízes, os capitães, e todos os oficiais das províncias, para que viessem à consagração da estátua que o rei Nabucodonosor tinha levantado.
Então se reuniram os príncipes, os prefeitos e governadores, os capitães, os juízes, os tesoureiros, os conselheiros, e todos os oficiais das províncias, à consagração da estátua que o rei Nabucodonosor tinha levantado; e estavam em pé diante da imagem que Nabucodonosor tinha levantado.
E o arauto apregoava em alta voz: Ordena-se a vós, ó povos, nações e línguas:
Quando ouvirdes o som da buzina, da flauta, da harpa, da sambuca, do saltério, da gaita de foles, e de toda a espécie de música, prostrar-vos-eis, e adorareis a estátua de ouro que o rei Nabucodonosor tem levantado.
E qualquer que não se prostrar e não a adorar, será na mesma hora lançado dentro da fornalha de fogo ardente.
Portanto, no mesmo instante em que todos os povos ouviram o som da buzina, da flauta, da harpa, da sambuca, do saltério e de toda a espécie de música, prostraram-se todos os povos, nações e línguas, e adoraram a estátua de ouro que o rei Nabucodonosor tinha levantado.” (Daniel 3:1–7)

Entre todos os presentes, apenas 3 judeus se recusaram a se prostrar ante o ídolo do rei: Sadraque, Mesaque e Abdnego, cujos nomes hebraicos eram Hananias, Misael e Azarias. O restante da história diz respeito a como o rei tentará matá-los por isso, mas será mal sucedido em fazê-lo por intervenção divina.

Agora o que nos interessa aqui é que essa história de todos se prostrarem perante um ídolo político, com apenas os judeus Sadraque, Mesaque e Adbnego recusando-se a fazê-lo, ecoa na história das Bestas do Apocalipse. O autor do Apocalipse imagina que a Besta da Terra faria uma coisa parecida a esse episódio, erigindo uma estátua em honra da Besta do Mar para que todos se prostrassem diante dela:

“E vi subir da terra outra besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro; e falava como o dragão.
E exerce todo o poder da primeira besta na sua presença, e faz que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta, cuja chaga mortal fora curada.
E faz grandes sinais, de maneira que até fogo faz descer do céu à terra, à vista dos homens.
E engana os que habitam na terra com sinais que lhe foi permitido que fizesse em presença da besta, dizendo aos que habitam na terra que fizessem uma imagem à besta que recebera a ferida da espada e vivia.
E foi-lhe concedido que desse espírito à imagem da besta, para que também a imagem da besta falasse, e fizesse que fossem mortos todos os que não adorassem a imagem da besta.” (Apocalipse 13:11–16)

Diante da persuasiva tentação de uma idolatria política em ‘peles de cordeiro’, quem você será: os que se prostram ou os que se recusam a prostrar?

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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