[164] Evangelismo Gospel versus Adventismo sob um olhar judaico
No post anterior comentei a respeito de como o Adventismo fornece alguns insights que servem de antídoto à tentação do Evangelismo Gospel dentro do cristianismo, considerando a inadequação do Evangelismo Gospel em face do panorama bíblico (veja posts [159]-[160]-[161]-[162]).
Expliquei ali que o Adventismo, representado principalmente pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, consegue apresentar um antídoto eficaz contra o Evangelismo Gospel, porque o Adventismo ressalta a Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento) e lê o Novo Testamento cristão à luz da Bíblia Hebraica, resgatando o cerne judaico muitas vezes soterrado dos textos bíblicos (incluindo o do próprio Novo Testamento cristão, na medida em que este pressupõe a Bíblia Hebraica) dentro do cristianismo mainstream.
Esse cerne judaico (explorado por grupos tão distintos entre si como os adventistas e os rastafaris, ou a teologia luterana neo-ortodoxa de Bonhoeffer, bem como preservado pelos próprios judeus em sua discussão interpretativa contínua ao longo de milênios, todos analisados anteriormente nessa sequência de textos) incorpora a real ênfase e prioridade dos textos bíblicos, que é antitética àquela apresentada pelo Evangelismo Gospel. Para entender melhor esses pontos, leia os textos anteriores já mencionados.
O objetivo aqui será discutir uma questão mais específica que poderá ter intrigado o leitor: o Evangelismo Gospel, cuja definição mais precisa apresentei no post [159], contém dentro de si um subgrupo marcado pelo uso de símbolos judaicos e a frequente utilização de personagens da Bíblia Hebraica/“Velho” Testamento em sua retórica. Talvez o leitor esteja pensando se isso não invalidaria a minha linha de raciocínio acerca de como o cerne judaico da Bíblia Hebraica é antitético às premissas do Evangelismo Gospel.
Como eu já havia aludido no post anterior, penso que essa aproximação de certos setores do Evangelismo Gospel para com o judaísmo e/ou a Bíblia Hebraica é superficial, tocando muito mais na ‘periferia’ ou na ‘estética’ de ambos, ao invés de seu ‘cerne’ ou ‘visão de mundo’. Situação inversa ocorre com o Adventismo, cuja aproximação entendo como mais autêntica, daí me parecer útil fazer uma comparação entre ambos nesse quesito.
Primeiro, comecemos por esses setores do Evangelismo Gospel, muitos deles de caráter neopentecostal mais especificamente. Sua aproximação ao judaísmo/Bíblia Hebraica se dá pelos seguintes fatores:
a) uso de símbolos judaicos dentro da liturgia, por exemplo, a kipá, a menorá, a estrela de Davi etc. Esses símbolos não são tradicionalmente utilizados pelos cristãos, e o intuito de usá-los parece ser o de tornar a estética da liturgia cristã mais próxima ao que tais setores imaginam ser a liturgia dentro do judaísmo.
b) valor mágico ou sobrenatural concedido a itens oriundos da terra de Israel (hoje sob o governo do Estado de Israel) e adjacências como a península do Sinai, por exemplo, ‘água do Rio Jordão’, ‘pedra do Monte Sinai’, etc. Então, se algo vem ‘de Israel’ (entendida como uma localização geográfica), seria dotado de uma sacralidade quase inerente dentro desse imaginário que estamos analisando.
c) alegorização de personagens ou temas da Bíblia Hebraica para designar circunstâncias atuais, por exemplo, nomear uma sessão religiosa de ‘culto da fogueira santa’, na qual dar ofertas em dinheiro equivaleria às oferendas animais e de farinha trazidas no antigo Templo de Jerusalém. Ou nomear uma organização missionária como “Gideões”, fazendo alusão aos poucos soldados selecionados para uma batalha importante narrada no livro de Juízes, sob a liderança de Gideão. Ou fazer raciocínios como “se Davi venceu Golias, você também pode vencer os desafios que encontra na sua vida por mais gigantes que pareçam, basta ter fé!”. Nesses e em muitos outros casos o raciocínio funciona por uma espécie de alegoria, um método muito antigo de interpretação da Bíblia Hebraica no meio cristão, enquanto usada de forma idiossincrática por esses setores do Evangelismo Gospel.
d) interpretação literal das profecias a respeito do povo judeu dentro da Bíblia Hebraica, então mesmo eles achando que os cristãos sejam o novo povo de Deus (o pensamento cristão convencional), as profecias e promessas a respeito dos judeus na Bíblia Hebraica ainda se aplicariam à ‘nação’ judaica (teologia dispensacionalista), com especial ênfase para a fundação do Estado de Israel, entendida dentro desses setores como um marco fundamental para o drama a ser desenrolado no ‘fim dos tempos’ (escatologia futurista).
Uma pessoa que não conhece a fundo o judaísmo (dentro de suas interpretações tradicionais e contemporâneas) realmente pode à primeira vista ficar meio deslumbrado, tendo a impressão de que esses cristãos realmente são bem ‘judaicos’ por todos os pontos acima elencados. Mas mostrarei como as aparências enganam.
Antes de prosseguir, um disclaimer: certamente tais fatores tornam esses cristãos mais filosemitas, o que é um mérito considerando o histórico cristão tradicional fortemente antissemita. Então, existe um lado positivo nisso nesses termos de filossemitismo x antissemitismo.
Agora, partindo para as críticas.
Em relação ao primeiro ponto, a adoção da kipá, da menorá, etc. são muito obviamente emulações de caráter ESTÉTICO. O significado desses símbolos no contexto judaico não é preservado quando se associam tais coisas às doutrinas cristãs, restando então o impacto apenas do simulacro, isto é, de ter uma aparência que remete aos costumes judaicos.
Para ser mais específico, tais símbolos no meio judaico remetem a uma série de aspectos primordialmente culturais, de como a Torá judaica foi implementada nas circunstâncias culturais pelos quais os judeus passaram, especialmente ao longo de uma diáspora de milênios. Esse aspecto cultural não diminui seu peso no contexto judaico: mesmo que haja certa ‘arbitrariedade’ em porque se tenha adotado a kipá ao invés de outra forma de cobrir a cabeça, ou se tenha adotado a Estrela de Davi como um símbolo, e assim por diante, tudo isso tem um sentido à luz de toda uma trajetória histórica pela qual o povo judeu passou. O judaísmo é primordialmente uma CIVILIZAÇÃO, mais do que uma religião. Por isso mesmo o uso desses símbolos tão específicos fica descaracterizado quando alocados para grupos cuja essência é puramente religiosa, como as igrejas e ministérios do Evangelismo Gospel são. Perde-se o elo cultural-histórico, em prol de um novo significado puramente religioso-doutrinário. Resta a estética similar.
Em relação ao segundo ponto, percebemos que esses setores do Evangelismo Gospel não entendem bem a real dimensão da experiência judaica ao longo dos últimos milênios. Parece-me que, para eles, a experiência judaica significativa é apenas aquela que ocorreu na terra de Israel. Por isso, no seu imaginário o judeu é caracterizado por: 1) o povo do ‘Velho’ Testamento, conforme as narrativas ali escritas; 2) o povo que atualmente habita no Estado de Israel, fundado em 1948.
O problema é que o judaísmo foi muito mais moldado pela experiência do EXÍLIO do que a de morar na terra prometida em si. Como comentei no post [152], a respeito da diferença entre judeus e samaritanos, o povo judeu há milênios se tornou uma comunidade global, espalhada em todos os continentes, composta por diferentes grupos étnicos e raciais, deixando de ser simplesmente uma comunidade siro-palestina do Levante (como os samaritanos se mantiveram dessa última forma).
O motivo disso é justamente a experiência exílica e diaspórica, cujas raízes estão na própria Bíblia Hebraica, como se vê com especial ênfase nos 15 livros proféticos, no livro de Daniel e no livro de Ester, bem como pelo fato da Torá inteira (os 5 primeiros livros bíblicos) mostrar o povo judeu ainda fora da terra de Israel, e muitas das histórias de seus ancestrais também ocorrerem fora da terra de Israel!
Não pretendo negar que ‘eretz Israel’ (terra de Israel) seja um conceito judaico e bíblico fundamental, longe disso. Mas nem de longe a experiência judaica foi primordialmente fixa numa região geográfica específica.
Então, esse valor mágico dado à terra de Israel e suas adjacências por esses setores do Evangelismo Gospel na verdade foge muito do cerne cumulativo da experiência judaica ao longo dos milênios, pelo qual o conceito de ‘eretz Israel’ é inseparável do conceito de ‘galut’ (exílio), que lhe serve de contrapartida. O judaísmo não é baseado na crença em torno de uma terra mágica.
Em relação ao terceiro ponto, a alegorização da Bíblia Hebraica na verdade é uma metodologia profundamente estranha à tradição judaica. No passado, teve lugar apenas entre os judeus helenizados, mais especificamente proposta pelo judeu Filo de Alexandria na tentativa de encontrar uma doutrina platônica nas Escrituras. Tal método não prevaleceu no meio judaico, mas acabou vingando em terras cristãs, justamente porque o cristianismo rapidamente se tornou uma religião essencialmente helenística (apesar de ter tido origens judaico-palestinas). No contexto cristão, a alegoria caia bem por motivos polemistas também: possibilitaria encontrar uma doutrina cristã nas Escrituras Hebraicas, mesmo que esse seja um texto essencialmente judaico. E diga-se de passagem, lendo a Bíblia Hebraica numa tradução para o grego, ao invés de no seu idioma original, o hebraico (com algumas poucas partes em aramaico).
Em outro post aqui, o [107], já expliquei que o judaísmo não é uma doutrina, mas sim uma metodologia. A maneira como se abordam as Escrituras no contexto judaico sempre foi muito mais literária e textual, narrativa e intertextual, com atenção às peculiaridades do idioma hebraico e seu estilo de raciocínio característico, bem distinta da ênfase doutrinária cristã. Remeto os interessados aos posts que já escrevi sobre o assunto ([107]-[110]-[111]-[112]-[138]).
Então, de maneira geral, essas alegorizações feitas por esses setores do Evangelismo Gospel são espúrias de uma perspectiva judaica. Realmente aqui estamos diante de Cristianismo com ‘C’ maiúsculo, passando longe do judaísmo e da própria Bíblia Hebraica em si mesma. A mentalidade por trás da Bíblia Hebraica teve sua continuidade orgânica dentro da tradição judaica, para a qual essa alegorização é alienígena e estranha.
E apenas para dar um exemplo de como essa alegorização introduz ideias onde elas não existem, basta ver o exemplo que eu mencionei acima de fazer um paralelo entre um crente individual cristão como sendo paralelo ao jovem Davi, tendo que enfrentar desafios da vida contemporânea como paralelos ao inimigo Golias. Por meio da alegoria, a história de Davi e Golias é transformada numa história sobre a vitória da ‘fé’, da ‘crença’, de um ‘plano espiritual’ mas a ênfase na fé, na crença e num plano espiritual não são típicas nem da Bíblia Hebraica nem do judaísmo.
A história de Davi e Golias é sobre um tema muito mais caro à Bíblia Hebraica e ao judaísmo: a resistência contra opressores cruéis, nesse caso, contra a dominação filistéia, cuja contraposição foi determinante para o desenvolvimento da monarquia israelita antiga.
O embate aqui sequer é primariamente religioso (no sentido de que os judeus tivessem a ‘doutrina’ ‘certa’, enquanto os filisteus a ‘errada’), mas sim sociopolítico. Deus aqui aparece não como o objeto de doutrinas religiosas, mas sim como a direção de uma libertação sociopolítica concreta. Assim, Davi, o pequeno e fraco (como o próprio povo judeu), vence Golias, o grande e forte (como os filisteus nesse caso, e outros opressores de Israel), porque Deus está do lado do judeu oprimido, não do filisteu opressor.
Em relação ao quarto ponto, esse entendimento mais literal das profecias da Bíblia Hebraica como dizendo respeito ao povo judeu de fato é mais consonante com o entendimento judaico a respeito, até porque de fato é isso que a Bíblia Hebraica realmente propõe.
Contudo… novamente aqui a semelhança é superficial, porque a maneira como essas profecias em favor do povo judeu são compreendidas residem num framework absolutamente espúrio da perspectiva judaica. Vamos entender isso melhor.
Sim, esses setores do Evangelismo Gospel concordam com o entendimento judaico tradicional de que as profecias da Bíblia Hebraica apontam para um tempo no qual o exílio judaico findaria, seguido do retorno à terra prometida sem mais estarem os judeus subordinados a uma potência estrangeira.
Mas aparentemente tudo não passa de uma pegadinha dentro dessa interpretação dispensacionalista-futurista: os judeus precisariam retornar para a terra de Israel formando um Estado independente (no caso, o atual Estado de Israel) para que eles venham a aceitar um falso Messias (já que eles ainda aguardam o Messias, por não terem ‘aceitado’ Jesus), e esse falso Messias seria o Anticristo! Esse Anticristo, um judeu de nascença, imporia um perverso governo mundial, até que fosse derrotado por Jesus Cristo em seu retorno….
Então novamente vemos o mesmo padrão: 1) a história judaica é reduzida aquela na qual os judeus estiveram com presença maior na terra prometida, pulando completamente todo o peso e significado do exílio e da diáspora (diáspora que continua existindo paralelamente ao Estado de Israel); 2) a convergência com ideias judaicas é apenas na camada mais externa, uma vez que o significado do retorno à terra prometida como o estopim da Era Messiânica no judaísmo é fortemente descaracterizado ao ser entendido como o requisito para a Era do ANTICRISTO nesses setores do Evangelismo Gospel.
Uma situação muito diferente ocorre no Adventismo. O Adventismo não pretende em nenhum momento se aproximar em si do judaísmo ou de ‘parecer judeu’. Apesar disso, ele acaba incorporando muito da atitude judaica simplesmente por levar a sério o fato da Bíblia Hebraica vir antes do Novo Testamento na sequência do cânon cristão.
A aproximação do adventismo à Bíblia Hebraica, que acaba colateralmente perfazendo uma aproximação ao judaísmo, se dá pelos seguintes fatores:
a) os adventistas não usam kipá, menorá, estrela de davi, etc. mas simplesmente seguem Mitvotz (preceitos) centrais da Torá judaica, com especial ênfase para a observância do descanso sabático, contado do pôr-do-sol de sexta-feira ao pôr-do-sol de sábado (o Shabat bíblico e judaico), e das leis dietéticas, abstendo-se de comer alimentos impuros sob a definição levítica, como a carne de porco. Assim, dentro do adventismo, as pessoas não parecerão ‘judias’ ou ‘judaicas’, nem a liturgia parecerá ‘judaica’, mas o COMPORTAMENTO será mais ‘judaico’, o estilo de vida se aproximará do ‘judeu’. Dessa maneira, um adventista e um judeu tem mais facilidade em coexistir e conviver cada um dentro de sua observância: as instituições adventistas e as instituições judaicas concedem o repouso semanal no Shabat, a alimentação não conterá itens proibidos, etc.
b) os adventistas não dão nenhum peso específico a objetos ou itens da terra de Israel, muito menos um mágico ou sobrenatural, então, por seguirem nisso o padrão convencional do cristianismo, não adotam práticas alienígenas ao judaísmo como as tais pedras do Sinai ou água do Rio Jordão….
c) como todo cristianismo, o adventismo tem um enfoque doutrinário ao ler a Bíblia, mas seu estilo interpretativo geral acaba sendo mais parecido com estilo dos comentários judaicos do que a média cristã, enfatizando expansões textuais imaginativas (como na prosa narrativa da série O Grande Conflito de Ellen White), algo que é feito pelo Midrash judaico, e tomando uma série de pressupostos do texto bíblico-hebraico em seu valor de face, por exemplo, o monismo antropológico e uma redenção ainda a ser completada no futuro. Inclusive os adventistas destacam-se no meio cristão por rejeitarem totalmente a noção de “inferno eterno”, tal como os judeus também rejeitam-na (veja posts [92]-[102]).
d) a interpretação adventista das profecias e visões apocalípticas não dá um peso especial ao povo judeu, nisso sendo divergente da tradição judaica (e adotando uma posição cristã mais convencional a respeito), contudo, sua interpretação historicista dos livros de Daniel (na Bíblia Hebraica) e do Apocalipse (no Novo Testamento) acaba sendo curiosamente bem próxima da interpretação historicista do livro de Daniel encontrada na tradição judaica: o Império Romano Cristianizado e a perseguição violenta promovida por instituições cristãs históricas contra aqueles que observassem o repouso sabático são os ‘antagonistas’ centrais do drama histórico pós-destruição do Templo.
e) os adventistas dão uma ênfase especial ao estudo do Santuário e do ritual do dia do Yom Kipur como descritos no livro de Levítico, tal como os judeus, mas não cumprem Yom Kipur e entendem que o Templo não será reconstruído (como a tradição judaica entenderia), pensando que a relevância do Santuário Terrestre estar em ser um espelho do Santuário Celestial. Menciono isso aqui porque é uma doutrina distintivamente adventista, sem paralelo em outros grupos cristãos, mas cujo resultado confere um peso significativo a um livro central da Torá judaica que, em outras tradições cristãs, é tratado como um livro puramente superado.
Todos esses pontos contribuem para que o adventismo tenha uma aproximação autêntica e profunda para com o judaísmo e a Bíblia Hebraica, me levando a pensar, como dito no post anterior, que o adventismo mostra como o cristianismo PODERIA ter sido: muito mais contínuo ao judaísmo do qual se separou, ao invés de ser-lhe hostil como infelizmente ocorreu historicamente. E isso sem em nenhum momento precisar tentar emular os judeus, mas simplesmente por ler a Bíblia Hebraica a sério e entender o Novo Testamento à luz dela. Não é a única forma possível ou correta de fazer isso, mas atualmente é a mais sistemática existente no contexto de uma organização eclesiástica cristã.
Então, vamos aprofundar os pontos acima para entender isso melhor.
Em relação ao primeiro ponto, o centro da vivência judaica reside na prática das Mitzvot da Torá, isto é, dos preceitos que conectam o ser humano ao Criador por meio de seu cumprimento. Em meio a esses preceitos, se destaca o Shabat, o “santuário no tempo” (como o chamava o existencialista judaico R. Heschel; cf. “O Shabat: seu significado para o homem moderno”); e a alimentação kasher, com a abstenção de certos alimentos, garantindo assim que mesmo o simples ato de comer algo dentro de certos parâmetros seja contado como uma refeição com o próprio Deus.
Tamanha a importância do Shabat, que ele aparece nos Dez Mandamentos, proferidos diretamente pela voz de Deus a todo o povo judeu reunido sob o Monte Sinai, segundo Êxodo 20. E as leis alimentares estão entre os preceitos relativos à pureza ritual que mais claramente independem da existência do Templo/Santuário como existira no passado, se tornando uma marca registrada dos judeus em todas as partes do mundo nas quais residiram.
Certamente a adoção da kipá ou da estrela de Davi não se compara ao Shabat ou à abstenção da carne de porco, em termos da sua magnitude e impacto sobre a existência judaica desde tempos imemoriais!
Além disso, em termos da animosidade histórica dos cristãos para com os judeus, a transferência do dia de repouso semanal do sábado para o domingo foi motivado por polêmicas patrísticas (pós-Novo Testamento) contra os judeus e sua ‘Lei’, bem como reforçou uma maior descontinuidade entre o que o cristianismo e o judaísmo vieram a se tornar, criando um “muro de separação”. Muito se perdeu nesse processo, em termos de uma possível forma de cristianismo mais atenciosa às suas origens judaicas; e a opressão cristã contra os judeus foi intensa por milênios a fio. No folclore europeu, o próprio termo “Sabá” foi associado à bruxaria e ao satanismo…
Então, vivenciar semanalmente o Shabat e vivenciar diariamente as leis dietéticas aproxima em muito a experiência adventista e a experiência judaica, em termos de estilo de vida, desenvolvimentos culturais etc.
Isso resulta em convergências que talvez não sejam óbvias à primeira vista: assim como os judeus desenvolveram contemporaneamente uma indústria kosher para atender suas demandas alimentares específicas, os adventistas também desenvolveram fábricas alimentícias próprias. Além disso, tanto o judaísmo como o adventismo, por conta dessas peculiaridades, se prestam a uma versão cultural, não-religiosa. Nos Estados Unidos discute-se muito a respeito do fenômeno do ‘adventista cultural’: apesar de agnóstico quanto às doutrinas religiosas, se sente vinculado a essa forma de vida e a essa comunidade, algo que é muito presente no judaísmo também.
Em relação ao segundo ponto, acho que não há muito o que acrescentar ao que já foi dito…. Uma fixação ‘mágica’ para com a terra de Israel e suas adjacências, se estendendo para a água do rio jordão ou para as pedras do monte Sinai, simplesmente não tem precedente bíblico nem judaico. Não teria porque um adventista entrar nessa também.
Em relação ao terceiro ponto, o adventismo consegue fazer uma leitura mais parecida com a judaica das Escrituras Hebraicas. Está longe de ser igual, pois o adventismo tem uma maneira mais cristã de olhar para muitos trechos e, por assim dizer, uma postura mais judeu-karaita de olhar para outros tantos trechos (enquanto a posição judaica majoritária tradicional é a judeu-rabínica). Mas existe ali uma maior facilidade de tomar ‘no valor de face’ aspectos judaicos/hebraicos que o cristianismo majoritário simplesmente ignorou ou subestimou.
O próprio fato de se manter o 7º dia como dia de descanso é uma prova viva, afinal, a forma mais natural de ler o texto bíblico é que o Shabat seria perpetuamente válido (o que se poderia discutir no máximo é o escopo de sua obrigatoriedade).
Um exemplo já citado é o de um entendimento mais corporal e corporificado do ser humano e da própria prática religiosa, não relegando o ‘corpo’ e a ‘matéria’ a um status secundário em relação ao ‘espírito’ e ao ‘espiritual’ como foi feito dentro da tradição cristã por seu desenvolvimento na cultura greco-romana helenista, algo que reflete até hoje mesmo em igrejas evangélicas que estão muito distantes da mentalidade que gerou isso historicamente. (Algumas ideias simplesmente persistem por ‘osmose’)
A teologia adventista consciente e deliberadamente rejeita o framework aristotélico e neoplatônico no quesito de interpretação das Escrituras que caracterizou o cristianismo historicamente. Assim, se aproxima de uma leitura mais hebraica das Escrituras, que de fato é a maneira mais adequada de abordar a Bíblia Hebraica. Uma repercussão concreta disso é a rejeição dos seguintes atributos divinos ‘clássicos’: atemporalidade, simplicidade e imutabilidade. Reconhecer que Deus está no tempo é um traço muito claro na Bíblia Hebraica que a teologia adventista incorporou desde cedo. E não é à toa que foi um teólogo adventista (Richard Rice) quem formulou a concepção hoje bastante discutida do teísmo aberto (segundo a qual Deus não teria presciência do futuro), enquanto essa não seja a posição oficial da denominação.
(Para uma panorâmica resumida de semelhanças e diferenças entre judeus e adventistas a respeito de diversos pontos, veja esse texto do Shalom Learning Centre)
Em relação ao quarto ponto, aqui temos um ponto extremamente curioso de convergência. Como já afirmei, os adventistas não falam de um retorno dos judeus à terra de Israel como parte do seu panorama interpretativo das profecias e visões apocalípticas presentes na Bíblia. Eles realmente focam na igreja cristã como povo de Deus, uma posição bem padrão do cristianismo.
Apesar dessa divergência importante em relação à visão judaica tradicional, o caminho tortuoso que conduz até o advento final da Redenção Messiânica acaba convergindo de uma forma bem curiosa. Compare:
Com base no livro de Daniel, uma posição muito articulada dentro da tradição judaica foi a de que o último Império opressivo a dominar sobre os judeus seria o Império Romano (também chamado de Edom, utilizando uma simbologia que remete a Esaú irmão de Jacó). O Império Romano em questão não é apenas aquele que existiu no passado, mas também sua sobrevivência de maneira dividida sob uma versão cristianizada (seja no Império Romano do Oriente, seja na instituição do Papado em Roma, seja no Sacro Império Romano, etc. em suma, designando de maneira ampla os governos históricos de países cristãos, especialmente europeus).
Esse “Quarto Reino” fez duas coisas terríveis contra os judeus: 1) a destruição do Segundo Templo e o exílio judaico, ainda na sua época pagã; 2) perseguição violenta e marginalização ostensiva das comunidades judaicas, de forma contínua, durante sua época cristã. O terrível cúmulo disso se deu com a Shoá, durante a Segunda Guerra Mundial, na qual milênios de antissemitismo cristão, agora com um verniz racial-moderno, levaram a um genocídio impensável contra o povo judeu.
(Independente se Hitler fosse ou não cristão em seu foro íntimo, o fato é que o próprio Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães promovia uma forma de cristianismo, a qual denominava de ‘cristianismo positivo’, como uma forma de unificar todas as igrejas cristãs alemães; confira o livro “O Santo Reich”, de Richard Steigmann-gall)
Já no caso da teologia adventista, com base no livro de Daniel (e nesse caso, lido em paralelo ao livro do Apocalipse), uma conclusão parecida é tirada: o Império Romano Cristianizado é o ‘Quarto Reino’, é o ‘Anticristo’, que sistematicamente perseguiu os dissidentes, com especial ênfase perseguiu aqueles dissidentes que… guardavam o Shabat. Enquanto a explicação adventista foque na perseguição a outros cristãos por parte da cristandade politicamente dominante, e portanto de observantes do sábado que fossem também cristãos, não é difícil ver como os judeus claramente se encaixam muito bem como uma minoria sabatista, que preservava a Lei de Deus, sendo perseguida continuamente por esses governos e instituições eclesiásticas ‘corrompidas’.
Não confunda: essa explicação judaica tradicional e a adventista desse processo histórico sob os símbolos proféticos/apocalípticos NÃO implica em dizer que católicos, ortodoxos, ou mesmo outros protestantes são todos ruins ou algo do tipo. NÃO É ISSO! O que essa explicação foca é nos sistemas de poder (político, eclesiástico e cultural) que perpetraram injustiça e violência EM NOME DA FÉ CRISTÃ ao longo desses quase 2 milênios após o Império Romano ter adotado o cristianismo como religião oficial. Tais sistemas de poder sob um verniz cristão seriam “o Quarto Reino”, “o chifre pequeno da Quarta Besta”, “Edom”, “Anticristo”, etc. (Existem diferenças entre os conceitos de Quarto Reino/Edom, chifre pequeno e anticristo, mas não entrarei nesses pormenores aqui)
“E proferirá palavras contra o Altíssimo, e destruirá os santos do Altíssimo, e cuidará em mudar os tempos e a lei; e eles serão entregues na sua mão, por um tempo, e tempos, e a metade de um tempo.” (Daniel 7:25)
E tanto essa explicação judaica tradicional como a adventista se preocupam em tentar delimitar os períodos de tempo sob o qual essa visão de Daniel seria operante, uma vez que o livro fornece numerologias intrincadas aludindo a tais horizontes temporais. Você pode ver essa tentativa em qualquer material adventista sobre Daniel (ou o Apocalipse). Você pode ver isso sendo feito pelo comentarista judaico medieval Rashi também, em seu comentário a Daniel. Obviamente se qualquer uma dessas tentativas é bem-sucedida fica a critério do leitor. (No futuro pretendo fazer um texto sobre essa questão dentro da interpretação judaica tradicional)
Em relação ao quinto ponto, destaquei uma doutrina altamente distintiva da teologia adventista, a doutrina do Santuário. Os adventistas estudam a sério o template do Santuário descrito no livro de Levítico constante da Torá judaica, e com especial destaque para a diferença entre as oferendas diariamente realizadas ao longo do ano e o ritual especial feito no Yom Kipur envolvendo o bode expiatório.
Aqui cabe fazermos um contraste com a maioria do cristianismo. A grande maioria dos cristãos entende que o Santuário e suas oferendas todas INDISCRIMINADAMENTE remetem ao sacrifício de Jesus na cruz. A depender do ramo do cristianismo, ainda se pode ter a ideia que a eucaristia seria um substituto direto daquelas oferendas. Então tudo que você lesse no livro de Levítico, você já saberia a interpretação: fala que Jesus ia morrer na cruz. Oferenda de olá? “Jesus vai morrer na cruz”. Oferenda de Chatat? “Jesus vai morrer na cruz”. Bode expiatório? “Jesus vai morrer na cruz”. E assim infinitamente, no máximo acrescentando um “a eucaristia faz isso presente de novo” a depender do ramo cristão.
Ao dar uma interpretação tão unilateral do livro de Levítico e do sistema sacerdotal judaico, como simplesmente remetendo à crucificação de Jesus e talvez à eucaristia, o livro de Levítico se torna basicamente obsoleto e sem sentido dentro da interpretação cristã majoritária.
Já para os adventistas, as diferenças existentes entre as oferendas, especialmente a do Bode Expiatório no Yom Kipur em relação às demais oferendas, e o fato de que havia uma diferença entre o sacerdote e a oferta, bem como as diferentes partes espaciais do Santuário, precisam remeter a aspectos distintos do trabalho que Deus planejava fazer para expiar os pecados humanos em definitivo. Como cristãos, eles pensam que isso tem a ver com Jesus Cristo, mas não somente com sua morte na cruz (e a eucaristia que a esta alude), e sim também com uma contínua atividade sacerdotal em um Santuário Celestial, cuja etapa final é um Yom Kipur cósmico. Uma sugestão sobre tal tema dentro do entendimento adventista é o livro “O Sacerdócio Expiatório de Jesus Cristo”, de Frank Holbrook.
Os judeus não têm uma ideia análoga a essa doutrina adventista, porque a visão judaica a respeito da expiação de pecados é MUITO diferente da cristã, mas existem referências a um santuário celestial na tradição judaica oral e também na antiga apocalíptica judaica da qual o Novo Testamento bebeu, e essas discussões incluem a ideia de que o anjo Miguel realizaria oferendas celestiais ali! (Em mais um paralelo curioso, os adventistas identificam Jesus com Miguel, mesmo que a maioria dos adventistas adotem também a ideia de Trindade cristã, sendo ambas doutrinas oficiais atualmente — claramente essa identificação passa pelo ministério celestial de Miguel em favor do povo judeu como visto no livro de Daniel, mas ganhando uma tonalidade cristã ao ser identificado com Jesus)
Além disso, chamo atenção para a convergência de que, no contexto judaico, o estudo do Santuário e de suas oferendas permaneceu importante mesmo após a destruição dos Templos. Haveria um mérito em continuar estudando tudo isso, até que um dia o Messias reconstrua o Templo. Afinal, o Santuário na Torá significa justamente que Deus voltou a,habitar entre os seres humanos no sentido. Não é pouca coisa! E se formos para a Kaballah judaica, também um significado cósmico é atribuído ao esquema do Santuário e seu ritual. Assim, o Santuário tem um lugar de destaque no processo da redenção humana, do ‘conserto do mundo’.
Um aspecto que chama atenção nesse estudo judaico é o caso do Yom Kipur, com um tratado do Talmude (Yoma) sendo dedicado integralmente a detalhar como era o ritual realizado nesse dia. Uma coisa que fica clara na discussão tradicional judaica a respeito é que de fato o ritual do Yom Kipur era qualitativamente diferente em relação aos rituais dos outros dias do ano, tendo a maior eficácia expiatória em termos dos rituais sacerdotais (exemplo: o Rambam/Maimônides afirma que o rito do bode expiatório conseguia perdoar certos pecados mesmo sem o arrependimento do transgressor; Mishnê Torá, Leis da Teshuvá 1:2–3). E mesmo sem o Templo e seu ritual, o Yom Kipur continua sendo a data mais importante do calendário judaico.
Outro exemplo curioso é que, apesar da visão cristã sobre Satanás e a visão judaica sobre o Satan serem MUITO diferentes (veja o post [117]), no contexto judaico o Yom Kipur tem uma relação importante com o Satan, um dia no qual este é ‘vencido’ (suas acusações se calam), e convergentemente os adventistas interpretam o fim do Yom Kipur cósmico como fazendo algo parecido com Satanás.
Assim, por todas as considerações acima expostas, concluo que o Adventismo faz uma aproximação genuína ao judaísmo. O mesmo não pode ser dito do Evangelismo Gospel.
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