[181] Relacionando o Bezerro de Ouro com a Carruagem Divina de Ezequiel
No post anterior abordei as histórias do Bezerro de Ouro feito pelos israelitas aos pés do Monte Sinai (narrado no livro de Êxodo) e dos Bezerros de Ouro feitos pelo rei Jeroboão no Reino de Israel/Efraim ao Norte, um dos dois reinos israelitas da Idade do Ferro (narrado no livro de [1]Reis). Mostrei que há uma forte intertextualidade conectando essas duas narrativas, mesmo que separadas por séculos de distância (dentro da cronologia bíblica) e mesmo que a autoria e fontes desses 2 livros sejam muito diferentes entre si.
Ali utilizei uma abordagem acadêmico-moderna para analisar o real significado dos Bezerros de Ouro na antiguidade israelita — a partir de dados literários-textuais e arqueológicos.
No presente post trarei uma nova camada de insight, fornecida pela discussão judaica tradicional, que, como mostrarei, permite uma ponte interessante com a análise acadêmico-moderna — não por coincidência a meu ver, uma vez que os comentários rabínicos clássicos partem de uma espécie de metodologia protoacadêmica ou acadêmico-tradicional para investigar o significado de textos bíblicos, operando num contexto cultural e linguístico organicamente contínuo ao dos autores originais da Bíblia Hebraica (tópico já abordado nos posts [107]-[110]-[111]-[138]).
Mais especificamente, mostrarei como a discussão judaica clássica tentou entender como seria possível aos israelitas, dentro da narrativa apresentada, terem feito um Bezerro de Ouro aos pés do Monte Sinai logo após tudo o que a narrativa apresenta como tendo acontecido entre os israelitas e Deus — desde as pragas do Egito até ouvir a voz do próprio Deus vindo do Monte Sinai. Essa questão intrigava os rabinos há milênios. A partir disso, farei uma conexão com o caso dos Bezerros de Ouro de Jeroboão: os apontamentos rabínicos ao caso do Sinai também trazem uma nova luz ao caso similar de Jeroboão.
Vamos recapitular a história do Bezerro de Ouro do Sinai.
O povo israelita, recém-saído do Egito, havia chegado aos pés do Monte Sinai, aceitando fazer uma Aliança com Deus, pela qual o povo se comprometia com Deus e Deus se comprometia com seu povo. Selando esse compromisso, o povo inteiro teve a oportunidade de ouvir a voz de Deus proferir os Dez Mandamentos, entre os quais se incluía não fazer imagens de escultura para adorá-las. Contudo, como ouvir a voz divina era uma experiência extremamente intensa, o povo preferiu que Moisés subisse ao Sinai para ouvir sozinho o que Deus tinha a dizer a respeito de quais seriam os fundamentos da civilização que os judeus foram chamados a desenvolver.
O problema é que Moisés demorou a aparecer de volta, e aos pés do Sinai pela primeira vez o povo descumpriu a Aliança, com a escultura de um Bezerro de Ouro:
“Mas vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão, e disse-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses [Elohim], que vão adiante de nós; porque quanto a este Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe sucedeu.
E Arão lhes disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de vossos filhos, e de vossas filhas, e trazei-mos.
Então todo o povo arrancou os pendentes de ouro, que estavam nas suas orelhas, e os trouxeram a Arão.
E ele os tomou das suas mãos, e trabalhou o ouro com um buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então disseram: Esses são teus deuses [Elohecha], ó Israel, que te tirou da terra do Egito.
E Arão, vendo isto, edificou um altar diante dele; e apregoou Arão, e disse: Amanhã será festa ao Senhor [YHWH].
E no dia seguinte madrugaram, e ofereceram holocaustos, e trouxeram ofertas pacíficas; e o povo assentou-se a comer e a beber; depois levantou-se a folgar.” (Êxodo 32:1–6)
Apenas uma tribo do povo de Israel não participou da contribuição para o Bezerro de Ouro: a tribo de Levi. Essa tribo mais tarde seria aquela responsável pelo Santuário Sagrado, onde Deus seria representado pelo espaço vazio acima da Arca da Aliança entre os 2 Querubins da Arca. Lembrando que Moisés era levita, e Arão, irmão de Moisés, também era levita.
O episódio teve um desfecho intenso, onde Deus afirma para Moisés que destruiria o povo inteiro e faria de Moisés apenas uma grande nação, mas Moisés argumenta incisivamente com Deus e faz com que Deus se arrependa dessa disposição destrutiva. Além disso, Moisés mesmo afirma que, se não for para o povo ficar bem, então Deus poderia riscar o nome do próprio Moisés do ‘livro’ que Deus estava escrevendo… (ou seja, Moisés critica Deus, se dispõe a ser destruído junto com o povo inteiro, e por conta disso Deus reconhece que Moisés é quem estava com a razão! Sobre isso, veja o post [6])
Agora, essa narrativa também surpreende as pessoas: por que os antigos israelitas teriam fabricado um Bezerro de Ouro tão longo Moisés demorou a aparecer? Ainda mais depois de terem tido uma experiência tão intensa envolvendo Deus — das pragas no Egito a ouvir a própria voz divina diretamente falando com eles no Monte Sinai.
A discussão judaica tradicional tenta se colocar no lugar dos personagens bíblicos e explorar como suas ações podem fazer sentido. A conclusão mais convergente é que não faria sentido que os israelitas tivessem ‘esquecido’ do que seu Deus (cujo nome próprio era YHWH) havia feito. Eles não iriam ‘repentinamente’ fazer outro deus e dizer que esse deus que os salvara do Egito. O motivo para os israelitas terem feito o Bezerro de Ouro mais provavelmente estaria ligado ao problema do aparente sumiço de Moisés e como prosseguir sem essa liderança — especialmente para organizar o culto devido a YHWH.
A edição Chumash-Gutnik do livro de Êxodo traz um apanhado muito interessante dessas análises judaico-rabínicas clássicas. Colocarei elas abaixo, e depois farei um comentário a respeito das intertextualidades que essas análises trouxeram à tona.
a) Saadia Gaon: Arão quis testar os judeus para ver se eles adorariam ídolos de fato, assim ele fingiu aceitar o plano deles. Não obstante, já que ele não executou os adoradores de ídolo imediatamente ao pecado deles, Deus também ficou bravo com Arão.
b) Ibn Ezra e Kuzari (Judá HaLevi): Os judeus não queriam adorar ídolos, Deus nos livre. Na ausência de Moisés, eles estavam buscando uma forma concreta de Serviço Divino. O bezerro era um objeto através do qual eles pretendiam servir a Deus, como Arão explicitamente disse: ‘Amanhã deverá ser um festival para Deus [YHWH]’.
c) Ramban/Nachmanides: Os judeus não pretendiam adorar ídolos, Deus nos livre. Em vez disso, já que Moisés tinha desaparecido, eles buscaram um substituto para guiá-los no serviço a Deus. Arão escolheu um bezerro, uma vez que na carruagem celestial a face de um boi pode ser vista do lado esquerdo, representando a força de Deus [Ezequiel 1:10].
d) Daat Zekenim: Os judeus estavam divididos em três grupos. 1) Esses que estavam somente procurando um novo líder. 2) Esses que desejavam adorar ídolos. 3) A tribo de Levi que permaneceu totalmente leal a Deus.
e) Tiferet Yehonatam: Os judeus sabiam que se Moisés não tivesse desaparecido, o Tabernáculo teria sido construído e Deus falaria com Moisés de entre os dois querubins [da Arca da Aliança]. Quando eles viram que Moisés tinha partido, eles decidiram fazer os querubins, de forma que Deus falaria com eles. Assim, eles pediram a Arão: ‘Faça-nos deuses que irão perante nós’, no plural, já que eles pretendiam fazer dois querubins. Porém, em vez de fazer os querubins com a face de uma criança, como seriam feitos para o Tabernáculo, eles escolheram a face de um boi (bezerro), pois a face de um boi apareceu no lado esquerdo da carruagem celestial de Ezequiel, ao passo que Moisés é associado com o ‘lado direito’ de Deus, como o versículo diz: ‘Ele conduziu a direita de Moisés, o braço de sua Glória [Isaías 63:12]. Assim, quando Moisés partiu, eles presumiram que Deus já não estava trazendo suas bênçãos pelo lado da mão direita da carruagem, mas sim pela esquerda, por Arão. Então, eles fizeram os querubins com a face de um boi (bezerro).
Essa edição também discute a razão pelo qual o comentarista mais clássico da Bíblia Hebraica, Rashi, não trouxe um esclarecimento a esse ponto tão intrigante. A análise nesse sentido é adaptada do Likutei Sichot do Rebbe de Lubavitch: fazendo um cotejo com outros comentários de Rashi, é observado que Rashi já havia apontado anteriormente que a expressão ‘elohim’ (aqui geralmente traduzida como ‘deuses’) pode também ser traduzida como ‘líderes’ (‘pessoas em posição de autoridade ou de julgamento’), então isso já permitiria ao leitor de Rashi entender que o povo não estava pedindo novos ‘deuses’ mas sim novos ‘líderes’ para substituir Moisés; além disso, anteriormente Rashi já havia apontado que Jacó havia instruído seus filhos sobre a futura construção do Tabernáculo. Juntando tudo isso, faria sentido que os israelitas ansiassem pela construção do Tabernáculo, já entendessem que nele haveria querubins entre os quais Deus manifestaria seus ditames, e, por conta disso, devem ter inferido que os querubins seriam uma forma de intermediário entre Deus e os judeus, que poderia assim substituir Moisés — e foi com base nisso que convenceram Arão. Rashi não teria precisado explicar tudo isso explicitamente, tendo deixado o exercício para o leitor.
Agora, para entender bem o que esses vários comentaristas judaicos clássicos estavam tentando elaborar é preciso se atentar ao que são os Querubins e porque eles estariam na Arca da Aliança (que ainda não tinha sido construída ao momento da narrativa do Bezerro de Ouro no Sinai). Note que eu já falei a respeito disso no post [121], então aqui falarei de modo mais resumido.
A Arca da Aliança representava Deus de forma anicônica, isto é, sem nenhum tipo de escultura ou de desenho. Esculpidos na Arca (na parte de cima) estavam 2 Querubins um de frente para o outro, se curvando perante um “espaço vazio”, espaço vazio este que alude ao Criador de tudo (completamente irrepresentável). Essa arca ficaria dentro da câmera mais secreta do Santuário (na qual apenas o Sumo-Sacerdote poderia entrar 1 vez por ano, no Yom Kipur — o Dia da Expiação). Assim, o Espaço Vazio acima da Arca e entre os Querubins nela esculpidos representava a Presença Divina.
O que seriam os Querubins representados na Arca? Seriam criaturas místicas-mitológicas que ficavam abaixo da Carruagem Divina (e do Trono Divino). A Arca da Aliança seria o Trono Divino na terra e o Santuário/Templo no qual a Arca estava dentro seria o Palácio terrestre de Deus.
A figura dos querubins é referida e mesmo descrita pelo Profeta Ezequiel, numa imageria absolutamente psicodélica e surrealista:
“Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo revolvendo-se nela, e um resplendor ao redor, e no meio dela havia uma coisa, como de cor de âmbar, que saía do meio do fogo.
E do meio dela saía a semelhança de quatro seres viventes. E esta era a sua aparência: tinham a semelhança de homem.
E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles quatro asas.
E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido.
E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas.
Uniam-se as suas asas uma à outra; não se viravam quando andavam, e cada qual andava continuamente em frente.
E a semelhança dos seus rostos era como o rosto de homem; e do lado direito todos os quatro tinham rosto de leão, e do lado esquerdo todos os quatro tinham rosto de boi; e também tinham rosto de águia todos os quatro.
Assim eram os seus rostos. As suas asas estavam estendidas por cima; cada qual tinha duas asas juntas uma a outra, e duas cobriam os corpos deles.
E cada qual andava para adiante de si; para onde o espírito havia de ir, iam; não se viravam quando andavam.
E, quanto à semelhança dos seres viventes, o seu aspecto era como ardentes brasas de fogo, com uma aparência de lâmpadas; o fogo subia e descia por entre os seres viventes, e o fogo resplandecia, e do fogo saíam relâmpagos;
E os seres viventes corriam, e voltavam, à semelhança de um clarão de relâmpago.” (Ezequiel 1:4–14)
Os querubins reaparecem em Ezequiel 10. Tanto no capítulo 1 quanto no 10 de Ezequiel estamos diante da visão da própria Carruagem do Trono Divino. E o misticismo em torno dessa Carruagem (a Merkavah), que aparece aqui e ali no próprio Talmude, é o ancestral da Kaballah (a qual já constrói a partir de toda a Torá Escrita e Oral — Bíblia Hebraica, Talmude e Midrash).
Um ponto interessante é que os querubins são retratados como seres com elementos tanto humanos como animais. O que representa uma forma de ser muito diferente da humana. E um desses elementos animais é o Bovino.
Quando a Arca da Aliança foi construída posteriormente, segundo a tradição judaica oral, os Querubins foram retratados com rostos de criança, assim enfatizando a face humana dos Querubins. Contudo, pela descrição já feita, uma outra opção seria a de representar os Querubins com um rosto de um Bezerro (ou seja, um ‘boi infantil’), já que uma das faces do Querubins era bovina.
Então, o que esses comentários clássicos mostram é que é plausível, ao nível narrativo-literário, que a intenção dos israelitas (pelo menos de uma grande parte deles) fosse tentar representar os Querubins da Carruagem Divina, esperando que assim a Presença Divina habitasse entre eles (já que Moisés supostamente desaparecera e, então, não estaria mais disponível para dar as instruções acerca da Arca da Aliança e do Santuário).
Isso também nos remete ao caso do Rei Jeroboão, quando este estabelece santuários alternativos ao de Jerusalém (onde estava a Arca da Aliança). Recapitulando: o Rei Jeroboão havia recém estabelecido o Reino de Israel/Efraim ao Norte, mas o Templo contendo a Arca estava no Sul, mais especificamente a capital do Reino de Judá, Jerusalém. Ambos eram Reinos Israelitas, mas havia uma tensão política entre eles. Assim, para o Rei Jeroboão, seria indesejável que os israelitas do Norte precisassem ir até a capital do Reino vizinho para adorar a Deus.
Então, Jeroboão, apesar de na narrativa bíblica ter sido escolhido por Deus para iniciar o Reino do Norte, manda fazer… Bezerros de Ouro!
“E disse Jeroboão no seu coração: Agora tornará o reino à casa de Davi.
Se este povo subir para fazer sacrifícios na casa do SENHOR [YHWH], em Jerusalém, o coração deste povo se tornará a seu senhor, a Roboão, rei de Judá; e me matarão, e tornarão a Roboão, rei de Judá.
Assim o rei tomou conselho, e fez dois bezerros de ouro; e lhes disse: Muito trabalho vos será o subir a Jerusalém; vês aqui teus deuses [Elohecha], ó Israel, que te fizeram subir da terra do Egito.
E pôs um em Betel, e colocou o outro em Dã.
E este feito se tornou em pecado; pois que o povo ia até Dã para adorar o bezerro.
Também fez casa nos altos; e constituiu sacerdotes dos mais baixos do povo, que não eram dos filhos de Levi.
E fez Jeroboão uma festa no oitavo mês, no dia décimo quinto do mês, como a festa que se fazia em Judá, e sacrificou no altar; semelhantemente fez em Betel, sacrificando aos bezerros que fizera; também em Betel estabeleceu sacerdotes dos altos que fizera.
E sacrificou no altar que fizera em Betel, no dia décimo quinto do oitavo mês, que ele tinha imaginado no seu coração; assim fez a festa aos filhos de Israel, e sacrificou no altar, queimando incenso.” (1 Reis 12:26–33)
Note que as narrativas têm uma simetria muito clara, mesmo estando distantes 500 anos uma da outra na cronologia bíblica. Isso já foi explicado no post anterior.
Agora, eu apontei no post anterior, na 1ª nota de rodapé, que estudiosos cogitam que o propósito original de Jeroboão com os Bezerros não fosse representar diretamente El/Elohim, mas que os Bezerros fossem seu ‘pedestal’, de tal maneira que se aludiria a El/Elohim estar montado nos Bezerros, de forma similar a como YHWH era aludido entre os Querubins na Arca da Aliança. Contudo, como os Bezerros ficavam à vista de todos, ao contrário dos Querubins que ficavam ocultos da vista do público na seção mais reservada do Templo em Jerusalém, o imaginário popular israelita-nortista acabou compreendendo os Bezerros de Ouro dos santuários de Jeroboão como representação direta da forma divina — mesmo que não fosse essa a intenção.
Um olhar acadêmico-moderno nos faz ver a narrativa do Bezerro de Ouro no Sinai como uma crítica aos Bezerros de Ouro do Rei Jeroboão, como explicado no post anterior.
Mas esses comentários judaicos clássicos (acadêmicos-tradicionais) também já entreviam muitos séculos atrás a mesma conexão crítica entre as duas narrativas: a narrativa do Bezerro de Ouro no Sinai se conecta com a questão mais geral a respeito de qual seria o Santuário correto, o do Norte ou o do Sul da terra prometida. Ou o que contivesse os Querubins com face humana (ou seja, aquele da Arca da Aliança, que mais tarde seria fixado na capital do Reino de Judá ao Sul) ou aquele que contivesse os Bezerros de Ouro, mesmo que os Bezerros de Ouros fossem também entendidos como uma representação dos Querubins (ou seja, aqueles santuários construídos no Reino de Israel ao Norte).
Note que o raciocínio a respeito dos Querubins poderia ser invertido: da perspectiva de um israelita do Norte que apoiasse os Santuários de Jeroboão, que os israelitas houvessem construído um Bezerro de Ouro aos pés do Monte Sinai soaria como uma validação para o Rei Jeroboão, ainda mais que o próprio irmão de Moisés, Arão, teria participado da construção do Bezerro de Ouro. Os Bezerros de Jeroboão nada mais seriam do que uma tentativa de restabelecer os Querubins originais, os primeiros construídos no Deserto! Ou: Os Bezerros de Jeroboão são simplesmente a mesma coisa que os Querubins da Arca que está em Jerusalém, mesmo que com alguma variação artística.
Então, os comentários judaicos clássicos detectaram que o subtexto da narrativa sobre o Bezerro de Ouro no Deserto (tal como chegou a nós no livro de Êxodo) se relaciona com o Santuário que haveria de ser construído pelos israelitas — demarcando com grande força qual seria o modelo aceitável e o inaceitável. Como Deus havia expressamente proferido perante o povo inteiro que não era para se fazer imagens de esculturas para fins de culto, apenas uma validação do próprio Deus poderia autorizar exceções a isso dentro do que seria a própria morada divina na terra (o santuário). Sem terem recebido instruções, fazer os Bezerros de Ouro de sua própria cabeça seria uma tentação à idolatria que já havia sido proibida aos israelitas dentro da narrativa mais geral do livro do Êxodo.
E fazendo novamente a ponte com a questão histórica, é plausível que as tradições orais a respeito dessa história do Bezerro de Ouro no Deserto tivessem uma grande conexão com essa discussão a respeito dos Santuários que vieram a existir ao Norte e ao Sul, e que tipo de objetos poderiam ser colocados dentro deles, inclusive a correta representação dos Querubins.
As histórias dos ancestrais eram contadas e recontadas tendo em vista o presente, onde o povo de Israel estava dividido em 2 reinos-irmãos com seus santuários patrocinados pelos monarcas de cada qual.
Eco dessa discussão bem antiga iremos encontrar, posteriormente ao exílio babilônico, a divisão entre Samaritanos e Judeus. Falei sobre isso no post [152]: para os Samaritanos o Templo deveria ser no Monte Gerizim ao Norte, não no Monte Sião (Jerusalém) ao Sul. Eles aceitam apenas a Torá (sob uma variante textual samaritana que consagra o Monte Gerizim como o lugar escolhido; na Torá judaica o lugar escolhido é deixado em aberto) e não aceitam os livros dos Profetas e dos Escritos que os judeus aceitam (sendo que é em livros dessas outras seções da Bíblia Hebraica que é estabelecida a eleição de Jerusalém como lugar escolhido para o Templo).
Assim, é possível ler tanto a narrativa sobre o Bezerro de Ouro no Deserto como a narrativa sobre os Bezerros de Ouro de Jeroboão como tentativas por parte dos personagens responsáveis pelos Bezerros de Ouro de representar aqueles querubins da Carruagem Divina vista pelo profeta Ezequiel em seus estados alterados de consciência — e Deus estaria representado pelo espaço vazio acima dos Bezerros, como se Ele montasse os Bezerros, tal como seria representado pelo espaço vazio entre os Querubins (de face não-bovina) esculpidos na Arca da Aliança.
O problema é que, como já vimos pelo próprio post anterior, representar os Querubins sob uma forma bovina seria mais facilmente confundível com uma representação direta do próprio Deus, pelo fato de Deus (sob o nome El) ser representado com forma bovina entre os povos não-israelitas (inclusive caananitas) que também cultuavam Deus/El tal como os israelitas faziam, mas sem o comprometimento anicônico que fazia parte do pacto israelita (note que israelitas e não-israelitas da região reconheciam El como Divindade Suprema, independente das diferenças de entendimento a respeito de como El seria).
A lição prática mais geral nisso tudo é que a idolatria está muito mais próxima do legitimamente Sagrado do que poderíamos pensar. A religiosidade não é uma garantia contra a idolatria, ao contrário, é possível fazer da religiosidade um ídolo.
Mesmo uma pequena mudança no que seria construído para figurar no Lugar Santíssimo do Santuário poderia levar à idolatria — tratando Deus como um ídolo ou fazendo uma caricatura do divino — . Ser o povo escolhido para que o próprio Deus habite em seu meio é uma responsabilidade imensurável.
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