[180] O real significado do Bezerro de Ouro na antiguidade israelita

A Estrela da Redenção
18 min readDec 18, 2021

--

Uma das narrativas mais famosas da Bíblia Hebraica diz respeito ao Bezerro de Ouro.

O povo israelita, recém-saído do Egito, havia chegado aos pés do Monte Sinai, aceitando fazer uma Aliança com Deus, pela qual o povo se comprometia com Deus e Deus se comprometia com seu povo. Selando esse compromisso, o povo inteiro teve a oportunidade de ouvir a voz de Deus proferir os Dez Mandamentos, entre os quais se incluía não fazer imagens de escultura para adorá-las. Contudo, como ouvir a voz divina era uma experiência extremamente intensa, o povo preferiu que Moisés subisse ao Sinai para ouvir sozinho o que Deus tinha a dizer a respeito de quais seriam os fundamentos da civilização que os judeus foram chamados a desenvolver.

O problema é que Moisés demorou a aparecer de volta, e aos pés do Sinai pela primeira vez o povo descumpriu a Aliança, com a escultura de um Bezerro de Ouro:

“Mas vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão, e disse-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses [Elohim], que vão adiante de nós; porque quanto a este Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe sucedeu.
E Arão lhes disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de vossos filhos, e de vossas filhas, e trazei-mos.
Então todo o povo arrancou os pendentes de ouro, que estavam nas suas orelhas, e os trouxeram a Arão.
E ele os tomou das suas mãos, e trabalhou o ouro com um buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então disseram: Esses são teus deuses [Elohecha], ó Israel, que te tirou da terra do Egito.
E Arão, vendo isto, edificou um altar diante dele; e apregoou Arão, e disse: Amanhã será festa ao Senhor [YHWH].
E no dia seguinte madrugaram, e ofereceram holocaustos, e trouxeram ofertas pacíficas; e o povo assentou-se a comer e a beber; depois levantou-se a folgar.” (Êxodo 32:1–6)

“The Israelites Dancing Aroung the Golden Calf” [Os Israelitas Dançando ao Redor do Bezerro de Ouro], Henri Paul Motte, 1899.

Apenas uma tribo do povo de Israel não participou da contribuição para o Bezerro de Ouro: a tribo de Levi. Essa tribo mais tarde seria aquela responsável pelo Santuário Sagrado, onde Deus seria representado pelo espaço vazio acima da Arca da Aliança entre os 2 Querubins da Arca. Lembrando que Moisés era levita, e Arão, irmão de Moisés, também era levita.

O episódio teve um desfecho intenso, onde Deus afirma para Moisés que destruiria o povo inteiro e faria de Moisés apenas uma grande nação, mas Moisés argumenta incisivamente com Deus e faz com que Deus se arrependa dessa disposição destrutiva. Além disso, Moisés mesmo afirma que, se não for para o povo ficar bem, então Deus poderia riscar o nome do próprio Moisés do ‘livro’ que Deus estava escrevendo… (ou seja, Moisés critica Deus, se dispõe a ser destruído junto com o povo inteiro, e por conta disso Deus reconhece que Moisés é quem estava com a razão! Sobre isso, veja o post [6])

Agora, essa narrativa também surpreende as pessoas: por que os antigos israelitas teriam fabricado um Bezerro de Ouro tão longo Moisés demorou a aparecer? Aos olhos contemporâneos, isso pode parecer muito ‘gratuito’ e ‘repentino’, mas na verdade essa narrativa reflete realidades históricas muito interessantes.

Para entender isso melhor, vamos pular um pouco no tempo e ir até a época dos antigos Reinos Israelitas, que dentro da narrativa bíblica começam por volta de 400–500 anos depois do Êxodo do Egito.

É no contexto da divisão política do povo de Israel entre 2 Reinos distintos, o Reino de Judá ao Sul e o Reino de Israel/Efraim ao Norte, que novamente a narrativa bíblica retoma a questão do Bezerro de Ouro.

O 1º Rei do Reino de Israel/Efraim ao Norte, de nome Jeroboão, resolve criar Santuários alternativos em relação ao Templo de Salomão em Jerusalém (Templo este que era o sucessor do antigo Santuário Portátil de Moisés).

O Templo de Jerusalém, a capital do Reino de Judá ao Sul, continha a Arca da Aliança, que, como eu disse acima, representa Deus por meio de um espaço vazio na Arca. Mas, para o Rei Jeroboão, seria indesejável que os israelitas do Norte precisassem ir até a capital do Reino vizinho para adorar a Deus, até porque Jeroboão estava em conflito com o Rei de Judá, Roboão (o filho de Salomão e neto de Davi).

Então, Jeroboão, apesar de na narrativa bíblica ter sido escolhido por Deus para iniciar o Reino do Norte, acaba quebrando a regra divina contra as imagens de escultura na hora de criar seus Templos alternativos no Norte. O Rei Jeroboão manda fazer… Bezerros de Ouro!

“E disse Jeroboão no seu coração: Agora tornará o reino à casa de Davi.
Se este povo subir para fazer sacrifícios na casa do SENHOR [YHWH], em Jerusalém, o coração deste povo se tornará a seu senhor, a Roboão, rei de Judá; e me matarão, e tornarão a Roboão, rei de Judá.
Assim o rei tomou conselho, e fez dois bezerros de ouro; e lhes disse: Muito trabalho vos será o subir a Jerusalém; vês aqui teus deuses [Elohecha], ó Israel, que te fizeram subir da terra do Egito.
E pôs um em Betel, e colocou o outro em Dã.
E este feito se tornou em pecado; pois que o povo ia até Dã para adorar o bezerro.
Também fez casa nos altos; e constituiu sacerdotes dos mais baixos do povo, que não eram dos filhos de Levi.
E fez Jeroboão uma festa no oitavo mês, no dia décimo quinto do mês, como a festa que se fazia em Judá, e sacrificou no altar; semelhantemente fez em Betel, sacrificando aos bezerros que fizera; também em Betel estabeleceu sacerdotes dos altos que fizera.
E sacrificou no altar que fizera em Betel, no dia décimo quinto do oitavo mês, que ele tinha imaginado no seu coração; assim fez a festa aos filhos de Israel, e sacrificou no altar, queimando incenso.” (1 Reis 12:26–33)

Note que as narrativas têm uma simetria muito clara, mesmo estando distantes 500 anos uma da outra na cronologia bíblica. Em ambas temos Bezerros de Ouro. E em ambas vemos que os levitas de alguma forma são mais distantes dessa forma de culto: no caso do Sinai, os levitas não participam dos atos envolvendo o Bezerro de Ouro (exceto por Arão, mas este fez o que fez pela pressão popular dos não-levitas); no caso de Jeroboão, este estabelece sacerdotes não-levitas para seus santuários em Dã e Betel, nos quais os Bezerros de Ouro estavam.

A simetria mais impressionante está na fala que inaugura a reverência devida aos Bezerros de Ouro:

“E ele [Arão] os tomou das suas mãos, e trabalhou o ouro com um buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então disseram: Esses são teus deuses [Elohecha], ó Israel, que te tirou da terra do Egito.”

“Assim o rei tomou conselho, e fez dois bezerros de ouro; e lhes disse: Muito trabalho vos será o subir a Jerusalém; vês aqui teus deuses [Elohecha], ó Israel, que te fizeram subir da terra do Egito.”

A mesma frase no hebraico é usada: אֱלֹהֶ֙יךָ֙ יִשְׂרָאֵ֔ל אֲשֶׁ֥ר הֶעֱל֖וּךָ מֵאֶ֥רֶץ מִצְרָֽיִם [elohecha yisrael aser heelucha meretz mitzraim], isto é, “Israel, [estes são] seus deuses, que te tiraram da terra do Egito”.

Uma frase que vai em contradição à primeira sentença proferida por Deus no Monte Sinai em viva voz para o povo inteiro ouvir, quando Deus se apresentou ao povo:

“Então falou Deus todas estas palavras, dizendo:
Eu sou o Senhor [YHWH] teu Deus [Elohecha], que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.” (Êxodo 20:1,2)

E aqui é importante percebermos uma limitação no que diz respeito a conhecer o texto bíblico apenas por traduções. O termo “Elohim”, literalmente “poderosos” ou “deuses” (singular “El”, para “poderoso” e “deus”), é usado para Deus e para os Bezerros de Ouro. E por isso aquela frase de Jeroboão e do povo usava “Elohecha” tal como Deus usou “Elochecha” para referir a si próprio nos Dez Mandamentos. Quem é o “Elohim” [deuses/Deus] de Israel? E aí se faz o contraste de 2 opções: YHWH (o nome próprio com que Deus se apresenta no Sinai) ou o Bezerro de Ouro.

Note que curiosamente Arão, que participou da feitura do Bezerro de Ouro por conta da pressão popular, ainda tentou conectar isso a YHWH, pois convocou uma festa em honra de YHWH para o dia seguinte.

Em todo caso, a questão que ressoa nas 2 narrativas é essa: a identidade do Elohim de Israel. Quem é ‘teu Elohim’ (Elohecha), Israel? Teu Elohim é YHWH, a divindade que não pode ser representada, no máximo sendo aludida por um espaço vazio acima da Arca da Aliança? Ou teu Elohim é o Bezerro de Ouro, a divindade representável por uma escultura de um animal?

Ou seja, aqui vemos um grande embate da fase inicial da civilização judaica: se a Divindade que libertou Israel do Egito é representável ou não.

E as narrativas deixam entrever que a tribo dos levitas foi decisiva nessa discussão, uma vez que teriam sido a tribo mais compromissada com o ‘aniconismo’, isto é, uma forma de culto que não apelasse para nenhum tipo de representação da divindade em questão.

É por isso que representar Deus pelo espaço vazio acima da Arca da Aliança caia muito bem para o Santuário administrado pelos Levitas (seja no deserto do Sinai, seja em Jerusalém): nesse caso Deus é representado justamente em razão de não estar sendo representado!

Assim, durante a primeira fase da civilização judaica, seja no período pré-monárquico ou no período monárquico, muito do culto a El/Elohim utilizava a escultura de uma forma bovina, enquanto o culto a YHWH era mais estritamente anicônico.

As evidências de que o culto israelita a YHWH desde seus primórdios era principalmente anicônico é revisada por Sommer no apêndice de seu livro “The Bodies of God and the World of Ancient Israel”, 2009— isso não significa que YHWH nunca tenha sido representado, mas simplesmente era muito raro que isso acontecesse, no mais das vezes sendo representado por alusão, usando-se espaços vazios ou o disco solar. (No caso do disco solar, YHWH não era identificado como o sol, mas sim aludido pela luz do sol, da mesma forma como no caso do espaço vazio YHWH não era identificado como um espaço vazio, mas sim aludido pelo espaço vazio)

“The Taanakh cult stand”, um artefato do século X antes da Era Comum, um dos exemplos mais antigos conhecidos de um objeto presente em santuários israelitas (nesse caso, da região Norte). Aqui, na primeira e na terceira seção do objeto (contado de baixo para cima), está representada a deusa Asherá, enquanto na segunda e na quarta seção provavelmente estamos diante de YHWH sendo representado simbolicamente por um espaço vazio entre querubins (na segunda seção) e pelo disco solar (na quarta seção). Então, mesmo que aqui YHWH não seja adorado exclusivamente, ao contrário, sendo adorado lado a lado da deusa Asherá, ainda assim há um respeito pelo aniconismo, representando apenas a imagem de Asherá, mas não a de YHWH, a qual apenas se alude por meio do espaço vazio e do disco solar. Veja Somner, 2009, p. 156–159.

A forma de culto anicônico em nenhum momento colocava em dúvida a soberania de El/Elohim, e nem o entendia como diferente de YHWH, mas ressaltava que o culto a essa divindade sob a Aliança devia ser estritamente anicônico. Ou seja, representar El/Elohim por meio de um Bezerro de Ouro não era uma forma adequada de representá-lo, mas sim de rebaixá-lo.

Por que o culto a El/Elohim usava mais esculturas do que o culto feito a YHWH? O motivo era que o culto a El/Elohim não era distintivamente judaico/hebreu (usando hebreu aqui no sentido bíblico para incluir ‘Edom’, um povo aparentado ao de Israel, ao ponto que a narrativa bíblica entende que os ancestrais deles tivessem sido irmãos gêmeos, Esaú e Jacó; e também cabe mencionar ‘Midiã’ como outro desses povos aparentados, e com uma ligação particular com a história do êxodo, pois Moisés seria genro de um sacerdote midianita e Midiã ficava na região próxima do Sinai).

A adoração a El como deus supremo de um panteão de outros deuses (que também eram adorados paralelamente) era uma característica da religião cananéia-ugarítica. Já a adoração a YHWH como uma divindade libertadora era distintivamente hebréia, presente em Israel, Edom e Midiã.

Assim, no aspecto compartilhado entre israelitas/hebreus e caananeus, isto é, o nome El/Elohim, a forma de culto usava esculturas; enquanto no aspecto distintivo dos hebreus, isto é, o nome YHWH, a forma de culto não usava esculturas. Essa dualidade do elemento distintivo versus compartilhado gerou a tensão que vemos permear grande parte das narrativas da Bíblia Hebraica até antes do exílio babilônico.

Aqui é importante deixar claro que o texto bíblico NÃO ESCONDE nada disso. Apesar de nem sempre podermos afirmar que os textos bíblicos descrevam acontecimentos históricos, coloque o seguinte princípio na sua cabeça: a Bíblia Hebraica é BASEADA EM FATOS REAIS.

Algumas narrativas são mais históricas (como essas envolvendo os Reinos Israelitas do Sul e do Norte, incluindo a própria figura de Jeroboão; essa parte têm um nível de atestação muito alto); enquanto outras são mais lendárias (como aquelas envolvendo o deserto do Sinai pós-êxodo do Egito). Contudo, em todos esses casos as narrativas SE BASEIAM EM FATOS REAIS, refletindo coisas que realmente fazem sentido pelo contexto cultural e sociopolítico.

Por exemplo, não temos como dizer que, historicamente, o povo inteiro de Israel resolveu prestar culto a um Bezerro de Ouro ao pé do Monte Sinai. Mas podemos dizer que a narrativa reflete as seguintes realidades históricas: 1) muitos dos israelitas prestavam culto a El/Elohim por meio de esculturas com formas bovinas; 2) os levitas eram avessos a essa forma de culto; 3) os levitas são os candidatos mais prováveis a terem vivenciado a experiência do êxodo do Egito e a forma de culto utilizando ‘arcas’ têm paralelos egípcios, o que conecta a libertação do Egito com um dos elementos do aniconismo em matéria de culto (ou seja, a ideia da Arca da Aliança como símbolo máximo tem raízes em um êxodo ou êxodos que realmente aconteceram, os quais a narrativa bíblica condensou e deu um colorido maior); 4) a conexão mais forte do culto a YHWH com a região mais distintivamente hebréia de Israel, fazendo a ponte tanto com a região do Sinai (pelo povo de Midiã) como com a região sul de Canaã vizinha a Edom.

Já no caso de Jeroboão, a existência desses Santuários do Norte é um fato histórico, que nos ajuda a entender que os israelitas de fato prestaram culto a Bezerros de Ouro (ou usando esses Bezerros de Ouro) durante séculos, especialmente no Reino do Norte*, algo que ocorreu menos no Reino do Sul (que não por coincidência era vizinho a Edom e mais próximo de Midian e do Sinai, portanto, estava num contexto mais distintivamente hebreu que o Reino do Norte, por assim dizer).

É importante não cair aqui na tentação que vemos por aí na internet de pensar que, para os israelitas antigos, havia originalmente duas divindades, El/Elohim (para os israelitas do Norte) e YHWH (para os israelitas do Sul), e que só tardiamente elas foram identificadas. A questão era se El/Elohim devia ser representado ou como uma escultura ou como YHWH (ou seja, não representado pictorialmente, apenas linguísticamente). Então, acima de tudo, a questão era sobre a forma do culto, nunca se duvidando que YHWH e El/Elohim, NO CONTEXTO ISRAELITA, fossem a mesma divindade. [edit 21/09/2024: entretanto, aqui, é preciso fazer um disclaimer para que não haja má compreensão. Quando me refiro ao contexto israelita, entendo que no processo de diferenciação israelita x caananita — que permite falar significativamente de uma cultura israelita diferenciada da caananita — YHWH e El são vistos de forma unificada porque El foi entendido como sendo YHWH (e vice-versa). Como se segue nos próximos parágrafos, é claro que assumo que, sendo parte de diferentes contextos culturais, os nomes YHWH e El nem sempre foram designados para uma mesma divindade. Por isso aqui me refiro ao contexto já especificamente israelita — que da maneira como entendo neste texto, já data de bem antes do exílio babilônico, mas alguns historiadores podem insistir numa data mais tardia.. Bem, mesmo para aqueles que aceitam um processo mais demorado do que o que eu elaborei neste texto, ainda me parece válido que simplesmente falar em duas divindades contrapostas seria simplista demais, justamente porque originalmente esses nomes para divindades não eram do mesmo contexto cultural, e ainda assim, não obstante, uma vez introduzido YHWH no contexto em que se falava de El, foi El quem veio a ser entendido como YHWH, e não Baal ou Asherá.]

A razão é até simples de entender: alguns livros bíblicos, em especial os 4 primeiros (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números), utilizaram narrativas de tradições orais que ora eram mais ligadas às tribos do Norte, ora eram mais ligadas às tribos do Sul (e os Levitas no meio disso tudo). As mais ligadas às tribos do Norte falam mais de El/Elohim, enquanto as mais ligadas às tribos do Sul falam mais de YHWH.

De fato, essa diferença está já nos próprios nomes Israel e Judá. O nome ‘Israel’ foi usado para designar o Reino do Norte, que falava mais de El/Elohim, tanto que ‘Israel’ contém ‘El’ no nome. Já o nome ‘Judá’ foi usado para designar o Reino do Sul, que falava mais de YHWH, tanto que Iehudah (o nome hebraico para ‘Judá’) é derivado de YHWH. (Isso fica mais claro usando as letras hebraicas, יְהוּדָ֗ה [Iehudah] e יהוה [YHWH])

Uma maneira que percebemos isso claramente nos 4 primeiros livros bíblicos é pelas histórias duplicadas, onde uma mesma história é contada ora enfatizando o nome Elohim, ora enfatizando o nome YHWH. (Existe também um motivo literário-redacional para a alternância entre esses nomes divinos, que a tradição judaica oral milenarmente já havia detectado, mas não irei entrar nisso agora)

E é justamente pela duplicação das histórias que podemos afirmar com bastante segurança que, no contexto especificamente israelita, El/Elohim e YHWH eram nomes para uma mesma Divindade. Basicamente, uma história que era contada no Norte a respeito de patriarcas usando o nome divino El/Elohim era contada de forma muito parecida no Sul usando o nome divino YHWH [edit 21/09/2024: para alguns detalhes recentes que lançam novas luzes sobre esta questão, conferir “Às Origens da Torá: novas descobertas arqueológicas; novas perspectivas”], representando então variantes regionais de uma mesma atuação divina em favor dos israelitas (seja ao Norte ou ao Sul).

Só que a diferença no nome tinha um impacto na forma de culto (e por tabela na forma de entender essa divindade referida nas narrativas tradicionais), pois, no Norte, ao se usar o nome El/Elohim compartilhado com caananeus e outros povos cuja forma de culto usava muito as esculturas, havia uma tendência muito forte a visualizar El/Elohim em termos caananitas, como tendo uma forma bovina. O mesmo não acontecia no Sul, pelo culto distintivamente hebreu a YHWH ser anicônico desde os primórdios.

E é aqui onde residiria a controvérsia final: afinal, o Deus que salvou os israelitas do Egito era realmente uma forma bovina? Ou esse Deus era um ser irrepresentável, de quem conhecemos o nome (YHWH), mas não sua forma?

Portanto, a dúvida não era tanto se El/Elohim e YHWH seriam a mesma divindade [cf. disclaimer acima], mas sim se El/Elohim tinha uma forma que poderia ser representada (como a forma bovina dos Bezerros de Ouro), ou se El/Elohim não tinha como ser representado nem se devia tentar fazê-lo (como YHWH, representado pelo espaço vazio acima da Arca da Aliança).

Então, YHWH nunca foi um contraponto para El/Elohim, mas YHWH era um contraponto para a forma bovina que se dizia representar El/Elohim.

Com isso em mente chegamos na conexão oculta entre a história do Bezerro de Ouro no Sinai e a história dos Bezerros de Ouro de Jeroboão.**

É muito claro que a história do Bezerro de Ouro no Sinai tem uma intenção crítica em relação aos Bezerros de Ouro dos santuários de Jeroboão. O primeiro pecado do povo torna-se a construção de uma forma bovina para prestar culto e Deus (YHWH/Elohim) reage de forma muito adversa a isso, ao ponto de Moisés ter que lembrá-lo das promessas da Aliança para evitar a destruição prematura do povo israelita.

Uma outra maneira de ler essa narrativa, do ponto de vista dos santuários nortistas de Jeroboão, seria a seguinte: os nossos ancestrais fizeram um Bezerro de Ouro no Sinai, porque é assim que nosso Deus que nos libertou do Egito gostaria de ser representado ou aludido (ou, alternativamente, porque nosso Deus tem a forma de um Bezerro/Boi/Touro).

[Sobre essa opção de alusão, onde Deus estaria assentado sobre o Bezerro, ao invés de ser diretamente representado pelo Bezerro, veja o próximo post onde discorro mais detalhadamente sobre esse ângulo, complementando esse texto aqui]

Então, a narrativa na forma como chegou até nós vem contrapor esse pensamento: realmente, os israelitas fizeram Bezerros de Ouro no passado para cultuar, mas isso foi uma quebra da Aliança, porque o Deus que nos libertou do Egito nunca quis ser representado por meio de esculturas — e as esculturas ‘roubam’ de Deus aquilo que lhe é devido.

Curiosamente, isso faz sentido historicamente pelo fato de que provavelmente foi a tribo de Levi que experimentou o êxodo do Egito. Mesmo que não necessariamente apenas levitas tenham passado pela experiência do êxodo, é para essa tribo que temos a melhor evidência de uma conexão egípcia, como discutido no livro “The Exodus: how it happened and why it matters” de Richard Eliott Friedman. E é justamente essa tribo que administrava o culto anicônico ligado à Arca da Aliança.

Para finalizar, existe uma referência extrabíblica muito interessante a El como sendo representado pela forma bovina, que casa com uma referência bíblica muito específica: a história de Balaão encontrada no livro de Números.

Nessa história um profeta não-israelita, Balaão, é convocado pelo Rei de Moab (um povo vizinho do Norte de Israel, e que a narrativa bíblica considera aparentado ao de Israel) para amaldiçoar Israel. À essa altura o povo de Israel estava prestes a finalmente entrar na terra prometida (aproximadamente 39 anos depois do episódio do Bezerro de Ouro, na cronologia bíblica).

Para a narrativa bíblica, Balaão tinha contato real com Elohim/YHWH, e isso é uma parte significativa do plot. (Balaão não consegue amaldiçoar Israel, mas apenas abençoar os israelitas, sob o ditame divino)

A questão é que Balaão, justamente por ser um não-israelita, também possui referência extra-bíblica. A Inscrição de Deir Alla é datada por volta de 900 a 700 AEC (arredondando), escrita em aramaico. Portanto, não se trata de um texto israelita. Não por coincidência, foi encontrada onde atualmente é a Jordânia.

Nesse texto Balaão recebe uma visão de ninguém menos que El — e ali também usa a expressão ‘Elohim’, mas nesse caso mais provavelmente significando ‘o panteão dos deuses’ ao invés da divindade suprema.

O professor e rabino Robert Harris escreveu um texto muito interessante a respeito, “Who Was Balaam’s God: YHWH El? Or Bull El?” (escrito para o recomendadíssimo site “The Torah”, de alto nível acadêmico).

Que El (ou Elohim) fosse identificado como uma forma bovina aparece na boca de Balaão na própria referência bíblica:

Deus [El] os tirou do Egito; as suas forças são como as do boi selvagem.” (Números 23:22)

Deus [El] o tirou do Egito; as suas forças são como as do boi selvagem.” (Números 24:8)

Como a referência extrabíblica converge no sentido de que Balaão agia como um mensageiro de El (e também de outros deuses do panteão caananita), podemos dizer então que quando, na referência bíblica, Balaão cita El como tendo tirado os israelitas do Egito e ainda associa isso à figura de um boi, é provável que Balaão estivesse entendendo El dentro desse imaginário da figura bovina, e não como o anicônico YHWH.

(Sobre essa questão de Balaão, veja do mesmo site o texto “Balaam the Seer: From the Bible to the Deir ʿAlla Inscription” escrito pelo professor Carl S. Ehrlich)

Dessa forma, com base em várias evidências textuais da própria Bíblia Hebraica, auxiliado por fontes extrabíblicas, fica claro que os israelitas terem feito Bezerros de Ouro não era algo ‘gratuito’, mas sim algo que tocava no âmago da questão se o povo de Israel seria ‘igual a todos os demais povos’ ou trilharia um caminho muito mais distintivo na história das civilizações.

Epílogo = os leitores mais atentos podem ter lembrado também de textos antigos do blog a respeito da conexão entre idolatria e injustiça nos profetas bíblicos (nos posts [37]-[38]-[39]-[40]-[41]-[44]-[45]-[46]-[47]-[48]-[49]). A questão do aniconismo no culto a YHWH também provavelmente tem certa relação com isso. Pois fabricar ídolos usando ouro era um sintoma de uma sociedade abastada, fazendo gastos de luxo, algo associado à maior opressão sociopolítica daqueles que fossem mais vulneráveis. Já YHWH, como a divindade que liberta os hebreus de seus opressores seja do Egito seja dos próprios cananeus (uma vez que as cidades-Estado cananéias formavam um sistema político ligado ao do Egito) explicitamente recusava que se fabricassem ídolos seja de ouro, prata, etc. em sua honra, e assim faz mais sentido como uma divindade de grupos mais marginalizados (como os hebreus eram no sistema sócio-político egípcio-cananeu que vigorou em Caanã até que os hebreus conseguissem gradativamente ocupar um espaço maior ali). Isso reflete também na divisão entre os Reinos Israelitas do Norte e do Sul: o Reino do Norte foi no geral mais abastado que o do Sul, e justamente no Reino do Norte que predominou o uso dos Bezerros de Ouro como forma de culto. O texto bíblico muitas vezes reflete nesse problema de que, quanto mais abastado, aumenta o risco tanto de não se importar com as injustiças cometidas contra os vulneráveis como de se esquecer da Aliança com Deus — que demanda o cuidado e a justiça para com os vulneráveis tanto quanto o aniconismo.

*Deve-se destacar que estudiosos cogitam que o propósito original de Jeroboão com os Bezerros não fosse representar diretamente El/Elohim, mas que os Bezerros fossem seu ‘pedestal’, de tal maneira que se aludiria a El/Elohim estar montado nos Bezerros, de forma similar a como YHWH era aludido entre os Querubins na Arca da Aliança. Contudo, como os Bezerros ficavam à vista de todos, ao contrário dos Querubins que ficavam ocultos da vista do público na seção mais reservada do Templo em Jerusalém, o imaginário popular israelita-nortistava acabou compreendendo os Bezerros de Ouro dos santuários de Jeroboão como representação direta da forma divina.

**O livro do Êxodo (com a narrativa do Sinai) e o livro dos Reis (com a narrativa de Jeroboão) são de autoria completamente diferente. A conexão entre essas narrativas não se dá por serem obra de um mesmo autor, mas por refletirem um mesmo contexto sociocultural.

Lista com TODOS os posts do blog (links)

Post Anterior [179] Como Deus pode ser Natural e Físico mesmo sendo Transcendente

Próximo Post [181] Relacionando o Bezerro de Ouro com a Carruagem Divina de Ezequiel

--

--

A Estrela da Redenção
A Estrela da Redenção

Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

No responses yet