[179] Como Deus pode ser Natural e Físico mesmo sendo Transcendente

A Estrela da Redenção
14 min readDec 18, 2021

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O objetivo do presente texto será discutir a natureza de Deus em relação ao mundo. Como já explorado nos posts [108]-[128], eu defendo uma forma de panenteísmo acerca da natureza divina, pela qual o mundo é parte de Deus, Deus não existe afora o mundo, mas ainda assim o transcende. A conclusão é que Deus, além de ser divino e transcendente, também pode ser encarado como natural e físico ao mesmo tempo. Como isso pode ser consistente? É o que mostrarei aqui.

Lembrando que o ideal é que você já tenha lido pelo menos os textos “[108] Redescobrindo Deus — mesmo numa visão naturalista de mundo” e “[178] Mesmo o Nível Fundamental da Realidade sendo apenas físico, Deus é o Fundamento do Ser”. (O texto “[177] Mesmo se a origem sem causa do Universo foi necessária, Deus ainda seria o Fundamento do Ser” também é recomendável) Eu irei relembrar para o leitor algumas ideias já discutidas nesses textos, mas, se você não as compreender muito bem na apresentação mais sucinta aqui, leia esses outros textos onde a explicação técnica delas estará mais completa.

Avisando que esse será mais uma vez um texto nos conduzindo às fronteiras do intelecto humano, mas tentarei ser o máximo didático possível.

O texto [108] despertou muitas reações interessantes desde que foi lançado, e uma delas foi de levar outras pessoas a refletirem sobre as questões envolvidas em afirmar o panenteísmo (ou mesmo o panteísmo) como uma forma de entender o que está em jogo ao usarmos a palavra ‘Deus’, de uma maneira que seria inteiramente consistente com uma visão de mundo científica e naturalista.

Inspirado por aquele meu texto, um dos leitores desse blog, Gabriel Brasileiro, escreveu em seu Medium um post intitulado “Um Argumento Naturalista a Favor da Existência de Deus”. Tendo solicitado minha opinião sobre como melhor formular o panenteísmo ali proposto, em privado sugeri algumas modificações, algumas das quais vou explorar no presente texto, a respeito da dependência ontológica no panenteísmo.

(Dependência ontológica faz parte da minha área de especialização stricto sensu. Meu mestrado foi em naturalismo metodológico e teoria jurídica analítica, e meu doutorado foi em metafísica analítica da dependência ontológica e ontologia social)

No que segue abordarei o modelo de como entender a dependência ontológica essencial entre Deus e o mundo que, ao mesmo tempo, permite que Deus seja divino e transcendente, enquanto também sendo inteiramente natural e físico.

Em primeiro lugar, é importante esclarecer o que é dependência ontológica. Para uma explicação mais detalhada disso, você pode ler meu capítulo de livro, “Dependência Ontológica” (2020), ou na minha tese de Doutorado, “Ontologia Social Não-Mentalista: uma abordagem comportamental biocentrada” (2021), mais especificamente no segundo capítulo. Aqui vou apenas colocar de forma bem resumida.

Há um relacionamento de dependência ontológica entre duas entidades quando, necessariamente, uma entidade depende de outra para existir (existência) ou para ser o que é (identidade). Existem duas variantes básicas, a dependência ontológica histórica e a dependência ontológica constante. Enfocaremos nessa segunda, por ser a mais relevante pros fins desse texto.

Dependência ontológica constante ou constitutiva é aquela na qual uma entidade depende (para sua existência) de outra estar existindo em todo o tempo no qual a entidade dependente exista. Então, se X depende de Y nesse sentido, X apenas existe nos instantes temporais nos quais Y também exista. Caso Y deixe de existir, X deixará de existir também. E isso se dá necessariamente. Um exemplo seria a relação entre a mesa e a madeira de que a mesa é composta: caso a madeira deixasse de existir, a mesa deixaria de existir também.

Outra distinção importante antes de prosseguir diz respeito à dependência ontológica rígida versus dependência ontológica genérica. Na dependência ontológica rígida, uma entidade depende de outra definida de forma individualizada e particular (“essa entidade específica”), enquanto na dependência ontológica genérica, uma entidade depende de uma outra de certo tipo, definida de forma genérica (“alguma entidade do tipo X”).

Um exemplo para facilitar: a molécula de H2O depende, para sua existência, dos átomos de hidrogênio e de oxigênio, em todo o tempo no qual a molécula exista. Então, em cada instante temporal ‘t’, é necessário que, se H2O existe em ‘t’, os átomos de hidrogênio e de oxigênio existam. Isso pode ser entendido genérica ou rigidamente: 1) genérico: necessariamente, se alguma molécula H2O existe, então existem átomos de hidrogênio e de oxigênio; 2) específico/rígido: necessariamente, se essa molécula H2O específica existe, então existem esses átomos específicos de hidrogênio e de oxigênio.

Agora o que significa exatamente “depende de” em todos esses casos? A literatura se divide entre propostas modais e essencialistas. Por motivos que não irei entrar aqui (você pode ler os trabalhos acadêmicos de minha autoria já sugeridos acima se quiser entender melhor), uma definição puramente modal de dependência ontológica caiu em desfavor, sendo mais comum apelar-se atualmente a alguma noção de ‘essência’.

Na definição puramente modal, usamos apenas a lógica padrão modal utilizada em filosofia analítica, onde a ideia de ‘mundos possíveis’ é usada para explicar o que significa falar que algo é possível versus necessário. Então, nós afirmamos coisas como “é possível que o Brasil fosse uma monarquia em 2021”, mesmo que o Brasil seja uma república em 2021. Dentro do tratamento lógico-semântico em questão, isso equivaleria a dizer que “há um mundo possível no qual o Brasil é uma monarquia em 2021”.

Assim, a possibilidade metafísica de algum X se dá quando há pelo menos um mundo possível onde X se realize, enquanto a necessidade metafísica de algum X se dá quando, em todos os mundos possíveis, X se realiza. Disso extraímos também a impossibilidade metafísica de algum X: se não há nenhum mundo possível onde X se realize.

Nesse caso, a dependência ontológica definida de forma puramente modal entenderia que X depende ontologicamente de Y quando, necessariamente, se X existe em um mundo possível, Y também existe naquele mundo possível, em todos os instantes de tempo nos quais X exista ali.

A definição essencial de dependência ontológica (que pode ser elaborada de maneiras diferentes) vai além postulando uma noção de “essencial” ou “essencialmente” que seria diferente da de “necessário” ou “necessariamente”. A essência aqui não é algo misterioso, mas simplesmente a expressão do ‘ser’ de algo, do que algo ‘é’, aquelas características que algo tem de ter para ser o que é (ou seja: a natureza de algo). Por exemplo, você é essencialmente humano porque ‘ser um humano’ faz parte do que você É. Como você é essencialmente humano, isso explica porque, em todo mundo possível onde você exista, você será humano, e, portanto, explica porque você é necessariamente humano.

As noções de ‘essencial’ e ‘necessário’ não se confundem: por exemplo, se alguém pensa que ‘números’ existem como objetos abstratos, essa pessoa entenderá que o ‘número 7’ existe em todos os mundos possíveis. Isso significaria que o ‘número 7’ vai existir também em todos os mundos possíveis nos quais você exista, e então é necessário que, se você exista, o ‘número 7’ também exista. Mas duvido que alguém realmente acredite que você depende do ‘número 7' para existir! Então, a noção de essência vem em nosso socorro aqui: apesar de realmente você só existir quando o número 7 existir (sob essa visão a respeito da existência dos números), você não depende do número 7 para existir, porque o número 7 não faz parte da sua essência enquanto um humano.

Então, finalizando essa parte introdutória, a dependência ontológica essencial (em termos constantes/constitutivos) pode ser formulada de 2 maneiras básicas: 1) X depende de Y se faz parte da essência de X que, necessariamente, X só existe quando Y existe; 2) X depende de Y se faz parte da essência de X que, necessariamente, a identidade de X é uma função da identidade de Y.

Agora, como toda essa coisa de dependência ontológica se relaciona com a relação entre o mundo e Deus?

Eu comentei no post [108] que o melhor argumento a definir Deus em termos básicos (ou seja, antes de adentrarmos na questão de teísmo, panenteísmo, panteísmo, etc.) é o argumento cosmológico da contingência.

Como já esclarecido nos posts [177]-[178], o argumento cosmológico da contingência postula uma dependência ontológica constante entre Deus e a Totalidade dos Fatos Contingentes. Então, necessariamente, a Totalidade dos Fatos Contingentes só existe na medida em que Deus exista. E ‘Deus’ aqui seria definido muito minimamente como o ‘Ser Concreto Necessariamente Existente’. Rigorosamente falando, não somos obrigados a chamar esse ‘Ser Concreto Necessariamente Existente’ de Deus, mas, como já expliquei naqueles textos, a Divindade Transcendente tal como imaginada e elaborada nas mais diversas tradições religiosas/filosóficas/místicas é basicamente a única candidata fenomenologicamente bem articulada que casa com o papel formal-lógico desempenhado pelo Ser Concreto Necessariamente Existente no argumento cosmológico da contingência.

Além disso, esclareci no post [178] mais uma condição importante para entender a relação entre o Ser Concreto Necessariamente Existente (ou Deus) e a Totalidade dos Fatos Contingentes: Deus se relaciona ontologicamente com todos os fatos contingentes de igual modo, independentemente de tempo, lugar e nível ontológico. Pegue 2 fatos contingentes quaisquer: “Daniel pensa em comprar um lanche (em 15/12/2021)” e “o valor do spin de um elétron específico (há 2 bilhões de anos atrás)”. Esses 2 fatos, por mais díspares que sejam em termos de tempo, espaço e nível ontológico, fazem igualmente parte da totalidade dos fatos contingentes. Por conta disso, esses 2 fatos contingentes têm a MESMÍSSIMA relação ontológica com o Ser Concreto Necessariamente Existente. Ambos dependem igualmente do Ser Concreto Necessariamente Existente na medida em que a totalidade da qual esses 2 fatos fazem parte depende do Ser Concreto Necessariamente Existente.

É por essa razão que Deus não faz parte dos Níveis da Realidade (como o mental, o biológico, o químico e o físico), mas sim opera transversalmente em relação a eles. Os Níveis da Realidade recortam o mundo em termos dos elementos constitutivos de cada coisa, onde cada coisa depende de seus elementos constitutivos. Daniel depende de elétrons para existir, e talvez elétrons não dependam de nada para existir. Nesse sentido, os elétrons são elementos constitutivos de todo o resto, mas não são constituídos eles mesmos por algum outro elemento. Contudo, enquanto seres contingentes, tanto Daniel quanto o elétron dependeriam do Ser Concreto Necessariamente Existente (ou Deus). (Aqui pode valer a pena revisar o texto [178], onde forneci ao leitor uma visualização para melhor entender essa questão complexa)

Então, podemos formular as seguintes premissas para a nossa noção de Deus, qualquer que seja ela, dado o argumento cosmológico da contingência:

  1. Deus tem existência necessária concreta em razão de sua própria natureza ou essência;
  2. A Totalidade dos Fatos Contingentes depende ontologicamente de Deus de maneira constante;
  3. Cada fato contingente depende ontologicamente de Deus de maneira constante (dada a transitividade da relação de dependência ontológica), em razão de ser parte da Totalidade dos Fatos Contingentes.

Uma formulação panenteísta entende que o mundo é parte de Deus. Nesse caso, isso leva a uma dependência ontológica em outra direção, onde Deus também depende da Totalidade dos Fatos Contingentes em algum sentido. Falando metaforicamente, é como se a Totalidade dos Fatos Contingentes fosse o ‘Corpo de Deus’, e ‘Deus’ apenas existe quando seu Corpo existe (STENMARK, 2018). Então em certo sentido a Totalidade dos Fatos Contingentes é Deus, mas não esgota Deus (porque Ele, ao contrário da Totalidade dos Fatos Contingentes, tem Existência Concreta Necessária).

Assim, pelo panenteísmo, chegamos na ideia de que Deus é uma Totalidade composta pela Totalidade dos Fatos Contingentes, mas que não se reduz a essa Totalidade dos Fatos Contingentes (pois, caso se reduzisse, Ele seria contingente, e não necessário).

Mas como pode Ele ser composto pela Totalidade dos Fatos Contingentes, e ainda assim não se reduzir a eles?

Cada fato contingente faz parte da Totalidade dos Fatos Contingentes. Isso significa que a Totalidade dos Fatos Contingentes (que pode ser entendida como o maior Todo Mereológico que existe, um Todo cujas partes são tudo o que há de forma contingente) depende, para existir, dos fatos contingentes que fazem parte dela para existir. Por exemplo, uma Totalidade dos Fatos Contingentes (vamos chamá-la de ‘A’) que tenha como parte “Daniel pensa em comprar um lanche (em 15/12/2021) só existe se “Daniel pensa em comprar um lanche (em 15/12/2021)” existe realmente. Como é possível que “Daniel não pensa em comprar um lanche (em 15/12/2021)”, isso significa que há uma outra Totalidade dos Fatos Contingentes quase completamente igual à Totalidade A, exceto que nessa Totalidade possível Daniel não pensava em comprar um lanche em 15/12/2021. Chamemos essa segunda Totalidade dos Fatos Contingentes de ‘B’.

Então, vamos revisar para que vocês não se percam: a Totalidade ‘A’ é aquela que realmente corresponde ao que aconteceu, onde Daniel de fato pensou em comprar um lanche em 15/12/2021. Já a Totalidade ‘B’ é uma que não aconteceu, onde Daniel não pensou em comprar um lanche em 15/12/2021, mas essa Totalidade era POSSÍVEL de ter acontecido.

Nesse sentido, as Totalidades ‘A’ e ‘B’ dependem rigidamente de suas partes, como é formulado pela mereologia clássica: se pelo menos 1 parte de um Todo fosse diferente, o Todo em questão não existiria, mas sim outro Todo. No nosso exemplo, a Totalidade dos Fatos Contingentes ‘A’ só existe se Daniel pensou em comprar um lanche em 15/12/2021, enquanto a Totalidade dos Fatos Contingentes ‘B’ só existe se Daniel não pensou em comprar um lanche em 15/12/2021.

Agora, também é possível pensar em Totalidades num sentido que não siga a mereologia clássica. Nesse caso, a Totalidade é entendida como transcendendo suas partes: o Todo em questão pode perder partes, acrescentar partes, mudar partes, mas ainda subsistir existindo desde que satisfaça certas condições. (Sobre as diferentes maneiras de articular axiomas para uma mereologia, consulte o clássico “Parts: a study in Ontology” de Peter Simons)

Então, uma maneira bem interessante de formular o panenteísmo seria a seguinte:

Necessariamente há o ‘Fundamento de Todo Ser’ ou ‘A Totalidade da Existência’ (isto é, Deus, ou como irei chamar a partir de agora, ‘A Totalidade Divina’). A Totalidade Divina assim definida têm existência concreta necessária (ou seja, ela não deve ser confundida com as Totalidades de Fatos Contingentes que farão parte dela, pois em si mesma a Totalidade Divina não é contingente).

Só que como Deus (Necessário) só existe se seu Corpo (Contingente) existe (panenteísmo), a Totalidade Divina depende genericamente de que ‘alguma coisa contingente exista’, o que significa que a Totalidade Divina depende genericamente de que ‘alguma Totalidade de Fatos Contingentes exista’, p. ex. seja a Totalidade de Fatos Contingentes ‘A’ seja a Totalidade dos Fatos Contingentes ‘B’.

É como se Deus fosse uma Totalidade definida não-mereologicamente (ou não classicamente), que necessariamente existe, mas Ele pode contingentemente ser qualquer Totalidade de Fatos Contingentes (definidas mereologicamente ou clássico-mereologicamente) que seja possível.

Agora note: se a Totalidade Divina têm existência necessária, quer dizer que cada Totalidade de Fatos Contingentes dependerá rigidamente da ‘Totalidade Divina’, pois tanto a Totalidade dos Fatos Contingentes ‘A’ como a Totalidade dos Fatos Contingentes ‘B’ (e todas as demais que sejam possíveis) só existem se a Totalidade Divina’ existe.

Agora, supondo que a Totalidade dos Fatos Contingentes que realmente aconteceu foi a ‘A’, isso significa que cada fato contingente de ‘A’ não só faz parte da Totalidade Divina, como depende rigidamente da Totalidade Divina, pois só existe se a Totalidade Divina existe.

Portanto: cada fato contingente do mundo (e todas as suas entidades) depende rigidamente de Deus para existir, enquanto Deus depende genericamente de que algum fato contingente exista (mas de nenhum em específico, de tal maneira que nenhum fato contingente específico necessita ocorrer — assim tais fatos contingentes continuam sendo contingentes).

Deus existe em todos os mundos possíveis — existência necessária — enquanto cada fato contingente existe em alguns mundos possíveis — existência contingente — . Mas Deus só existe se algum fato contingente existe (dependência genérica), e cada fato contingente só existe se Deus existe (dependência rígida).

“Metamorphosis II”, M. C. Escher, 1939–1940.

Tudo isso ocorre em função da essência dos seres contingentes (enquanto ‘contingentes’) e da essência divina, algo que pode ser articulado tecnicamente de diferentes maneiras.

Por exemplo em um capítulo de livro de minha autoria (BRITO JR., no prelo), proponho analisar a dependência ontológica envolvida no argumento cosmológico da contingência em termos da dependência essencial de identidade de Kit Fine, mais especificamente aludindo à noção de ‘essência coletiva’. Ali não abordei o panenteísmo especificamente, mas o que valer para o argumento cosmológico da contingência em si pode ser usado na hora de formular isso para o panenteísmo. Entretanto, essa não é a única forma possível de elaborar essa dependência essencial, e eu mesmo ainda pretendo, em minha pesquisa acadêmica profissional, examinar outras possibilidades de como articular isso de forma técnica.

Agora, para finalizar, como o naturalismo entra na jogada aqui? Existem duas maneiras de analisar a questão:

  1. Todas as Totalidades de Fatos Contingentes possíveis se estruturam internamente em cadeias de dependência ontológica de maneira tal que todas as entidades são físicas ou necessariamente se realizam fisicamente;
  2. A Totalidade de Fatos Contingentes que realmente ocorre se estrutura internamente em cadeias de dependência ontológica tais que todas as entidades são físicas ou necessariamente se realizam fisicamente.

A diferença entre ‘1’ e ‘2’ é que, em ‘1’, é necessário que todas as entidades contingentes sejam físicas ou necessariamente se realizem fisicamente, enquanto, em ‘2’, todas as entidades contingentes que de fato existem são físicas ou necessariamente se realizam fisicamente (mas seria possível existir entidades — não as do nosso mundo — que não seguissem essa restrição metafísica).

Um panenteísmo naturalista pode ser formulado desses 2 modos a meu ver. Deus seria físico (ou fisicamente realizado) e natural, porque a Totalidade Divina: 1) necessariamente corresponde a alguma Totalidade dos Fatos Contingentes cujas entidades necessariamente são físicas ou fisicamente realizadas; ou 2) realmente corresponde à Totalidade dos Fatos Contingentes cujas entidades necessariamente são físicas ou fisicamente realizadas, mas era possível que Ele correspondesse a uma Totalidade dos Fatos Contingentes cujas entidades não fossem necessariamente físicas ou fisicamente realizadas.

Em ambos esses casos, Deus é realmente fisicamente realizado e natural, mas Ele transcende qualquer entidade física/natural específica e também transcende a Totalidade das Entidades Físicas/Naturais (incluindo aqui as entidades fisicamente realizadas e as físicas em sentido estrito).

Então, em termos de categoria (type), Deus não é uma noção física, mas sim uma noção lógico-formal (e fenomenológica) que, em si mesma (ou seja, falando em termos estritamentes lógico-formais e fenomenológicos), não seria física. Mas em termos de sua instanciação concreta (token), Deus se realiza fisicamente no mundo, seja porque necessariamente Ele tem de se realizar fisicamente, seja porque realmente Ele se realizou fisicamente mesmo que fosse possível que Ele tivesse se realizado de outra forma.

Quem leu o texto [178] deve ter lembrado que, ali, mostrei que tentar identificar o Ser Concreto Necessariamente Existente com alguma entidade física ou mecanismo físico é algo fadado ao fracasso retumbante, porque existem problemas estruturais seríssimos que militam contra qualquer proposta desse tipo.

Contudo, sob o panenteísmo, não é problemático entender o Ser Concreto Necessariamente Existente como físico no sentido exposto acima, mesmo que Ele necessariamente tenha de ser físico em termos de instanciação concreta (token)!

O motivo é que aqui NÃO identificamos o Ser Concreto Necessariamente Existente com nenhuma entidade física em particular (o que sofreria dos problemas teóricos gravíssimos que eu apontei naquele texto anterior), mas sim o identificamos com a Totalidade das entidades físicas em termos que ainda permitem a Transcendência do Ser Concreto Necessariamente Existente em relação tanto a qualquer entidade física particular como a qualquer Totalidade de Fatos Contingentes possíveis.

Outra maneira de entender como Deus pode ser divino e natural/fisicamente realizado ao mesmo tempo é apelar para a noção técnica de ‘constituição’ proposta por Lynner Rudder Baker em ‘The Metaphysics of Everyday Life’ (2009), ou pelo menos alguma noção desse tipo que empregue a ideia de 2 entidades em certas relações de dependência compartilharem propriedades, mas sob modos diferentes (básico versus derivativo).

Bakker usa o exemplo da relação entre o mármore e a estátua de Davi. Para ela, o mármore têm como propriedade básica ter certo peso. A Estátua de Davi, constituída por esse mármore, ‘herda’ esse peso, que passa a ser uma propriedade derivativa da Estátua de Davi. Por outro lado, a Estátua de Davi tem como propriedade básica ter certo valor estético para os seres humanos. O mármore, que constitui a Estátua de Davi, ‘herda’ esse valor estético, que passa a ser uma propriedade derivativa do mármore (na medida em que o mármore esteja efetivamente constituindo a Estátua de Davi).

Poderíamos aplicar isso para Deus e a Totalidade dos Fatos Contingentes cujas entidades todas são físicas ou fisicamente realizadas. Deus ‘herda’ a propriedade de ser físico/fisicamente realizado, a qual é uma propriedade básica da Totalidade de Fatos Contingentes que é parte dele.*

(E quanto ao lado inverso, a Totalidade dos Fatos Contingentes ‘herdaria’ propriedades básicas divinas, que passariam a ser propriedades derivativas dessa Totalidade dos Fatos Contingentes que efetivamente ocorreu? Aqui é possível ir desde o ‘sim’ ao ‘não’ ao ‘depende’, mas não desenvolverei essa parte)

Dessa forma, podemos concluir que o panenteísmo pode ser formulado de forma tecnicamente muito consistente, onde Deus pode ser tanto natural e físico (ou fisicamente realizado), como divino e transcendente, simultaneamente.

*Note que o fato de Deus ter de forma derivativa certas propriedades de entidades contingentes ajuda a entender melhor alguns aspectos da Bíblia Hebraica (e do Talmude), como a antropopatia divina (sentimentos divinos), no sentido discutido pelo existencialista judaico R. Abraham Joschua Heschel, abordado nos posts [33]-[34]-[35]-[36].

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.