[183] Variantes de Ateísmo e Agnosticismo
No post anterior eu discuti o que é o neo-ateísmo que critico aqui no blog. Ali afirmei que existem outras variantes de ateísmo e agnosticismo, ou seja, que existem diferentes formas de ser ateu/agnóstico. O objetivo do presente post é comentar de forma sucinta a respeito disso, e dar sugestões de boas leituras (e um filme) nesse âmbito.
O ateísmo e o agnosticismo no sentido mais básico da coisa são posições muito específicas. Dizem respeito à existência ou inexistência de Deus:
- não encontrar razões para achar que Deus existe e, em razão disso, negar sua existência (ateísmo fraco);
- encontrar razões para achar que Deus não existe e, em razão disso, negar sua existência (ateísmo forte);
- não encontrar razões para seja afirmar ou negar que Deus existe e, em razão disso, nem afirmar nem negar sua existência, simplesmente suspendendo o juízo a respeito (agnosticismo padrão);
- encontrar razões para entender que afirmar ou negar a existência de Deus é uma não-questão e, em razão disso, nem afirmar nem negar sua existência, mas também não se suspende o juízo, pois simplesmente não haveria um juízo válido a ser feito (agnosticismo não-padrão).
Agora, a grande questão é como se chega nessas posições e como se articulam consequências de aderir às mesmas. Nesses âmbitos há muita variedade do que se pode defender de maneira mais específica.
Então, num primeiro momento, uma pessoa pode por exemplo ser ateia, e com isso negar a existência de Deus. Mas em termos lógicos, isso nada implica a respeito de se essa pessoa vai acreditar ou não que existem coisas tais como fadas, pé-grande, abduções por alienígenas, anjos, espíritos desencarnados, vida após a morte, etc. Então, da simples proposição “Deus não existe”, não se segue muita coisa. É apenas porque geralmente essa proposição está acompanhada de outras que a coisa toda se torna mais substantiva em termos de seus impactos intelectuais.
Portanto, é logicamente possível para um ateu acreditar em fadas, pé-grande, abduções por alienígenas, anjos, espíritos desencarnados, vida após a morte, etc. mesmo sem acreditar em Deus, e essa combinação é mais comum entre auto-proclamados agnósticos.
Isso significa que o ateísmo e o agnosticismo podem vir acompanhados ou não de um ‘ceticismo racional’ ou ‘ceticismo científico’: aqui se agrupariam vários tipos de ‘céticos racionais’ ou ‘céticos científicos’, seja em relação a seres folclóricos e criptozoólogicos, seja em relação a seres e fenômenos ufológicos, seja em relação a fenômenos parapsicológicos, etc.
Desses outros ceticismos pode ou não resultar um ceticismo em relação à Divindade, mas isso tampouco é necessário, pois muitas pessoas que acreditam na existência de Deus desacreditam dessas outras coisas aí, e, portanto, também contam como ‘céticos racionais’ ou ‘céticos científicos’. Também é possível ser cético sobre X, mas não sobre Y, em várias combinações diferentes.
Indo para uma segunda etapa, teríamos de examinar diretamente qual a fonte da conclusão pelo ateísmo/agnosticismo. Aqui existem duas vertentes principais: 1) há aqueles que são ateus/agnósticos motivados primariamente por considerações de Humanidades, com especial destaque à filosofia; 2) há aqueles que são ateus/agnósticos motivados primariamente por considerações de Ciências, com especial destaque à cosmologia e à biologia evolutiva.
Historicamente falando, o ateísmo/agnosticismo baseado em Humanidades foi mais comum, mas atualmente especialmente na internet é mais comum que se ouça falar do ateísmo/agnosticismo baseado em Ciências.
Lembrando: Humanidades são aqueles saberes acadêmicos que refletem sobre os símbolos e conceitos da cultura humana, com um approach eminentemente interpretativo. Aqui entram a Filosofia, a História, as Letras, as Artes, etc. Já as Ciências são aqueles saberes acadêmicos que tentam explicar causalmente e empiricamente como funciona o mundo, inclusive o mundo social. Aqui entram a Física, a Química, a Biologia, a Psicologia, a Sociologia etc. Transversalmente a tudo isso (Humanidades e Ciências), temos a Matemática. Além disso, deve-se destacar que áreas dessas diferentes disciplinas podem se aproximar ora mais das Humanidades ora mais das Ciências: por exemplo, na filosofia contemporânea, as escolas da Filosofia Continental são mais próximas das Humanidades, enquanto a Filosofia Analítica é mais próxima da Matemática e das Ciências. Outro exemplo é que algumas vertentes da antropologia são mais empíricas, enquanto outras são mais interpretativas (o mesmo ocorre na sociologia e na psicologia).
Agora note: como Humanidades e Ciências são campos muito vastos de investigação, existem muitas diferentes maneiras de motivar o ateísmo/agnosticismo a partir deles.
Você pode, por exemplo, se engajar com os argumentos clássicos da teologia natural, em termos contemporâneos discutidos principalmente dentro da filosofia analítica da religião. Ou você pode se engajar com o existencialismo ateu ao estilo de Sartre. Ou você pode utilizar a teoria da evolução por seleção natural para rejeitar Deus como explicação empírica para a vida e utilizar hipóteses da cosmologia para rejeitar Deus como explicação empírica para a origem do Universo. Ou você pode entender que não tem como afirmar que Deus existe porque, antropologicamente falando, os seres humanos construíram muitas versões diferentes do divino.
Note que alguém que acredita na existência de Deus também pode se engajar com tudo isso, seja filosofia existencialista, filosofia analítica, cosmologia, darwinismo, antropologia, etc. de forma muito similar aos ateus e agnósticos, inclusive aceitando as mesmas hipóteses ou posições de uma maneira geral (mas interpretando seu impacto teórico na questão religiosa de forma diferente).
No fundo, esse debate sempre depende de várias premissas teóricas, devendo assim ser discutido de forma teórica ou filosófica. Nenhuma evidência científica empírica por si mesma consegue “contradizer” ou “comprovar” a existência de Deus a menos que algumas premissas teóricas bem específicas sejam acrescentadas ao quadro geral.
Isso não é de se surpreender considerando o quanto de premissas teóricas estão incorporadas na ciência como feita cotidianamente, para questões muito mais ordinárias (com resolução empírica direta). Em razão disso, muitos panoramas teóricos diferentes são igualmente compatíveis com o todo da evidência empírica quando ascendemos a questões muito mais abstratas, inquirindo por noções tais como causação, dependência ontológica, leis da natureza, número etc. cujo debate é feito na disciplina filosófica chamada Metafísica (assim chamada não por ter a ver com algo ‘espiritual’, mas sim no sentido de que lida com noções teóricas e abstratas muito gerais, pressupostas pelas ciências, pelo senso comum, pelas humanidades etc. ao invés de serem empregadas apenas em domínios ou hipóteses específicas). Portanto, não é surpresa que a questão sobre Deus seja uma questão PESO-PESADO em termos teóricos puros.
Agora, indo para as consequências de ser ateu/agnóstico, também aqui existem muitas diferentes atitudes a respeito de como se posicionar diante da religião. São posições possíveis: 1) ignorar a religião, tendo uma postura basicamente neutra; 2) ativamente atacar as religiões (e mesmo fazer proselitismo/evangelização em prol da descrença religiosa); 3) ter uma postura simpática à religião, mesmo sem seguir nenhuma em específico, e talvez reconhecendo os laços culturais com uma religião específica; 4) praticar uma religião específica mesmo sendo ateu/agnóstico.
Hoje em dia é muito comum vermos a posição de hostilidade aberta em relação às religiões na internet, e a posição neutra diria que é muito comum, mas menos visível, porque geralmente sente menos necessidade de entrar em polêmicas, deixando cada um seguir sua vida como queira.
As outras posições — de postura simpática à religião ou de praticar uma religião específica — são menos conhecidas, mas o argumento em seu favor é a meu ver muito forte (e faz parte de uma das motivações para o presente blog ter sido fundado).
Um exemplo excelente de ateísmo simpático em relação à religião é o ‘ateísmo fiel’ de André Comte-Spomville, um pensador ateu que se entende como fiel à herança cultural do ocidente em face das tradições cristã e judaica (mas estendendo a mesma possibilidade para ateísmos em diferentes partes do mundo serem fiéis às suas respectivas tradições culturais maiores).
Já no campo de ateísmo/agnosticismo que segue uma religião específica, se trata de uma atitude prática mais frequente do que se pensa, inclusive sendo muito comum a um nível de populações nacionais inteiras dentro dos países nórdicos, onde a maior parte da população se mantém nos ritos das respectivas Igrejas Luteranas Nacionais, mas muitos não acreditam em Deus tampouco. Uma justificação teórica para essa postura é encontrada na ideia de ‘religião para naturalistas’, como articulada pelo expressivismo e ficcionalismo acerca da linguagem religiosa dentro da filosofia analítica da religião.
Subjacente a essas posturas, há também o debate sobre a aceitabilidade racional ou racionalidade de aceitar a existência de Deus. Aqui a diferença encontra-se entre os ateus/agnósticos que consideram irracional que alguém aceite a existência de Deus (sob qualquer forma), e os ateus/agnósticos que consideram racional que alguém aceite a existência de Deus (ao menos dentro de certos parâmetros), mesmo que seja também racional rejeitar a existência de Deus.
Em termos de filosofia analítica da religião, um de seus resultados emergentes mais claro é que é aceitável racionalmente tanto aceitar quanto rejeitar a existência de Deus (bem como suspender o juízo sobre isso ou entender como uma não-questão). Então, penso que o debate mais tecnicamente sofisticado a respeito favorece os ateus/agnósticos que consideram racional aceitar a existência de Deus (ao menos dentro de certos parâmetros).
Como uma última distinção bem relevante, também cabe destacar a diferença entre ateísmo local e ateísmo global: o ateísmo global seria uma rejeição a qualquer forma de Divindade, enquanto o ateísmo local seria uma rejeição focada em uma forma específica de Divindade (exemplo, o teísmo clássico). Também aqui existe uma versão do agnosticismo local versus global.
Para finalizar, a lista com sugestões de leituras excelentes no campo do ateísmo e agnosticismo (a grande maioria por autores ateus/agnósticos):
“O Espírito do Ateísmo”, André Comte-Sponville.
“A Vida Humana”, André Comte-Sponville.
“Para quem não tem fé, resta a fidelidade. Não existe Ocidente sem valores cristãos”, André Comte-Sponville.
“Religião para Ateus”, Allain de Botoin.
Coleção “Contra-História da Filosofia”, Michel Onfray (note que recomendo esse como a interpretação de Omfray sobre a tendência materialista-atéia ao longo da história da filosofia, não necessariamente como a melhor exegese de cada pensador revisado): “Volume 1: As Sabedorias Antigas”, “Volume 2: O Cristianismo Hedonista”, “Volume 3: Libertinos Barrocos”, “Volume 4: Os Ultras das Luzes”, “Volume 5: Eudemonismo Social”, “Volume 6: As Radicalidades Existenciais”.
“Global and local atheisms”, Jeanine Diller.
“The Metaphilosophy of Naturalism”, Quentin Smith.
“Religion for naturalists”, Natalja Deng.
“Friendly Atheism Revisited”, William Rowe.
“Theism and Explanation”, Gregory Dawes.
“On the Nature and Existence of God”, Richard Gale.
“The Best Argument Against God”, Graham Oppy.
“Logic and Theism: arguments for and against beliefs in God”, Jordan Howard Sobel.
“Religion without God (and without turning East): a new Western alternative to traditional theistic faith”, J. L. Schellenberg.
“Evolutionary Religion”, J. L. Schellenberg.
“Honest to God”, John A. T. Robinson. (obra importante para entender o existencialismo religioso — nesse caso, o cristão — , que pode ser adotado por alguém agnóstico ou ateu, como já explicado no post [2])
“The Evolution of Religion: How Cognitive By-Products, Adaptive Learning Heuristics, Ritual Displays, and Group Competition Generate Deep Commitments to Prosocial Religions”, Scott Atran & Joseph Henrich.
“The Adaptationist-Byproduct Debate on the Evolution of Religion: Five Misunderstandings of the Adaptationist Program”, Richard Sosis.
“Religion in Human Evolution: From the Paleolithic to the Axial Age”, Robert Bellah.
“The cultural evolution of prosocial religions”, Ara Norenzayan , Azim F. Shariff , Will M. Gervais , Aiyana K. Willard , Rita A. McNamara , Edward Slingerland, Joseph Henrich.
“Society without God: What the Least Religious Nations Can Tell Us About Contentment”, Phil Zuckerman.
“Nonbelievers in the Church: A Study of Cultural Religion in Sweden”, Isabella Kasselstrand.
Filme “Luz de Inverno” [Nattvardsgästerna], Ingmar Bergman.
Boa leitura!
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