[189] Deus NÃO ordenou genocídios — Parte 3: Amalequitas
Nos últimos dois textos do blog, tenho buscado desfazer o mal entendido de que Deus teria ordenado extermínios (genocídios) de populações inteiras incluindo mulheres e crianças no “Velho” Testamento (como é vulgarmente conhecida a Bíblia Hebraica).
No texto anterior, abordei exaustivamente o caso dos cananeus. Agora é hora de abordar o caso dos amalequitas.
Ao contrário do caso dos cananeus que (como já demonstrado) tinha mais relação com a expulsão territorial e/ou revolução de estruturas sociopolíticas opressivas, o caso dos amalequitas de fato apresenta (o que há de mais perto a)o ímpeto de destruir outro grupo por completo. Contudo, tal como feito no caso dos cananeus, veremos como mesmo o caso extremo dos amalequitas não é tão preto no branco nessa direção.
Os amalequitas são um povo importante na narrativa da Torá. Trata-se de um povo fortemente aparentado ao povo de Israel, uma vez que, para a narrativa do livro do Gênesis, o povo de Israel e o povo de Edom eram irmãos-gêmeos (dado que Jacó e Esaú, os respectivos ancestrais, teriam sido irmãos-gêmeos), e o povo amalequita seria uma parte que se destacou em relação ao povo de Edom (isto é, os amalequitas também eram ancestrais diretos de Esaú, nos termos bíblicos).
Também dentro da narrativa do Gênesis, é digno de nota que Jacó e Esaú, apesar de irmãos gêmeos, tiveram uma forte desavença entre si, o que seria paralelo às diversas desavenças entre os povos de Israel e Edom. Apesar disso, a reconciliação (mesmo que parcial) entre Jacó e Esaú ao fim do arco narrativo da briga entre os 2 gêmeos também faria paralelo às tréguas ou reconciliações entre Israel e Edom.
Contudo — e aqui vamos chegando no que há de distintivo no caso amalequita — a Torá vai chegar na conclusão de que, apesar da reconciliação entre Israel e Edom ser possível e desejável, a reconciliação de Israel com um dos descendentes de Esaú — Amalek — seria impossível. Enquanto ambos existissem, a guerra seria inevitável, infelizmente — e a Torá tentará apresentar que o motivo dessa trágica inevitabilidade reside no ódio gratuito dos amalequitas contra os israelitas, em que pese seu parentesco íntimo.
Tudo começa no livro de Gênesis, onde, ao se relatar a genealogia dos descendentes de Esaú e o surgimento do povo de Edom, Amalek é citado de forma destacada entre seus irmãos:
“E os filhos de Elifaz foram: Temã, Omar, Zefô, Gaetã e Quenaz.
E Timna era concubina de Elifaz, filho de Esaú, e teve de Elifaz a Amaleque. Estes são os filhos de Ada, mulher de Esaú.” (Gênesis 36:11,12)
Elifaz era um dos filhos de Esaú, e Amalek era filho de Elifaz, portanto, Amalek seria neto de Esaú. Enquanto os demais filhos de Esaú são meramente listados, faz-se uma interrupção no texto especificamente para falar do nascimento de Amalek, inclusive mencionando nominalmente o nome de sua mãe, Timna. Então, vemos que esse personagem vai ter algum destaque na narrativa subsequente.
Passando para o livro do Êxodo, vemos que os israelitas, recém-saídos da opressão que sofreram no Egito, sofreram um ataque covarde dos amalequitas. Enquanto todos os demais povos da região deixaram os israelitas em paz, esse povo em específico (que lembrando: seria parente muito próximo dos israelitas) resolve atacá-lo a troco de nada, quando estavam vulneráveis pela escassez de água no deserto.
“Então veio Amaleque, e pelejou contra Israel em Refidim [onde anteriormente o povo havia reclamado da falta de água e esta lhes fora suprida].
Por isso disse Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai, peleja contra Amaleque; amanhã eu estarei sobre o cume do outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão.
E fez Josué como Moisés lhe dissera, pelejando contra Amaleque; mas Moisés, Arão, e Hur subiram ao cume do outeiro.
E acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão, Israel prevalecia; mas quando ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia.
Porém as mãos de Moisés eram pesadas, por isso tomaram uma pedra, e a puseram debaixo dele, para assentar-se sobre ela; e Arão e Hur sustentaram as suas mãos, um de um lado e o outro do outro; assim ficaram as suas mãos firmes até que o sol se pôs.
E assim Josué desfez a Amaleque e a seu povo, ao fio da espada.
Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e relata-o aos ouvidos de Josué; que eu totalmente hei de riscar a memória de Amaleque de debaixo dos céus.
E Moisés edificou um altar, ao qual chamou: O SENHOR É MINHA BANDEIRA.
E [Moisés] disse: Porquanto jurou o Senhor, haverá guerra do Senhor contra Amaleque de geração em geração. (Êxodo 17:8–16)
Assim, o livro de Êxodo dentro da Torá caracteriza o quadro geral da seguinte forma: 1) o povo de Amalek atacou o povo de Israel gratuitamente, logo que este ainda malmente começara a dar os primeiros passos como povo; 2) então, Amalek poderia ter destruído o povo israelita antes mesmo deles terem feito sua aliança com Deus no Sinai e antes de chegarem na terra prometida, dando um fim prematuro à jornada dos israelitas pelo mundo; 3) logo, como poderia haver paz com Amalek? Guerrear contra um inimigo assim seria legítimo, de fato ocorreria sempre até que o povo de Amalek deixasse de existir.
Note que, para o livro de Êxodo, a incumbência por fazer os amalequitas deixarem de existir seria divina. Seria uma obra da própria história das coisas que um dia a memória de Amalek seria apagada de alguma forma. Não se trata de uma ordem a que os israelitas façam isso — enquanto se antecipe que haveria um estado de guerra constante entre uns e outros.
Outro exemplo que reforça essa conclusão encontra-se no livro de Números, na profecia de Balaão:
“E vendo os amalequitas, proferiu a sua parábola, e disse: Amaleque é a primeira das nações; porém o seu fim será a destruição.” (Números 24:20)
Portanto, de Gênesis a Números (ou seja, nos 4 primeiros livros da Torá), não existe uma ordem para destruir por completo os amalequitas. O máximo que há é uma antevisão de que sua destruição chegaria algum dia.
Agora, a situação muda de figura no livro de Deuteronômio, e aqui precisamos chamar atenção à diferença entre o livro do Deuteronômio e os demais livros da Torá. Nos livros anteriores, às vezes vemos Deus aparecer falando na narrativa, ou que Moisés fala “assim diz o Senhor” parecendo estar citando algo que Deus dissera previamente (na verdade é mais complexo que isso, mas por enquanto não vamos nos preocupar com isso). Já no livro de Deuteronômio, Moisés aparece fazendo discursos na primeira pessoa.
Portanto, o livro de Deuteronômio nunca representa a voz divina seja direta ou indiretamente, mas representa a voz de Moisés interpretando o que seriam as demandas da aliança para os israelitas. Alguns sábios da tradição judaica oral milenar chegaram a dizer que aqui vemos o início da Torá Oral (já por escrito!), o processo dos sábios elaborarem e refletirem sobre as normas da Torá já postas, inferindo suas próprias conclusões acerca de sua aplicação. (Sobre o tratamento dos sábios a respeito da distintividade do livro do Deuteronômio, uma brilhante revisão é feita por R. Abraham Joschua Heschel em “The Heavenly Torah: as refracted through the Generations”)
Outro ponto a ser salientado antes de prosseguirmos é que o livro do Deuteronômio é o ponto de partida da chamada História Deuteronomista, os livros seguintes na ordem canônica hebraica que dão início aos Neviim: Josué, Juízes, [1–2]Samuel, [1–2]Reis. A História Deuteronomista contará a primeira história do povo de Israel na terra prometida, desde a chegada na terra em Josué até seu exílio nos livros dos Reis. Os autores por trás da composição desses outros livros também estiveram por trás da escrita do Deuteronômio, diferente dos outros livros da Torá cuja composição teve outras mãos envolvidas. (O que significa que há diferenças de posição e opinião entre os 4 primeiros livros da Torá e o livro do Deuteronômio)
O livro de Deuteronômio traz agora sim uma ordem a respeito dos amalequitas, que teria sido dada por Moisés em um de seus discursos finais:
“Lembra-te do que te fez Amaleque no caminho, quando saías do Egito;
Como te saiu ao encontro no caminho, e feriu na tua retaguarda todos os fracos que iam atrás de ti, estando tu cansado e afadigado; e não temeu a Deus.
Será, pois, que, quando o Senhor teu Deus te tiver dado repouso de todos os teus inimigos em redor, na terra que o Senhor teu Deus te dá por herança, para possuí-la, então apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu; não te esqueças.” (Deuteronômio 25:17–19)
Então, o livro de Deuteronômio traz consigo 2 preceitos a respeito do povo de Amalek: 1) lembrar do que Amalek fez; 2) vingar-se do que Amalek fez por apagar sua memória. Curiosamente trata-se de uma conjunção de preceitos um tanto quanto paradoxal, uma vez que se ordena lembrar e ao mesmo tempo esquecer de Amalek.
A questão aqui se abre à interpretação: o que significa exatamente apagar a memória de Amalek de debaixo do céu? Aqui estaríamos diante da suposta ordem para o extermínio/genocídio de um povo inteiro, mas o próprio texto em si não é explícito a respeito disso, nem sequer mencionando se seria autorizado matar também mulheres e crianças, ou civis não-combatentes de modo geral. Em razão disso, a jurisprudência judaica oral irá entender que, por exemplo, era possível aos amalequitas se tornarem judeus e inclusive que descendentes dos antigos amalequitas tinham se tornado rabinos! (Talmude, Gittin 57b; Sanhedrin 96b)
Voltaremos à questão da jurisprudência judaica mais tarde. Por enquanto nos resta dizer que, dentro do parâmetro textual estrito da Torá (nesse caso, do livro do Deuteronômio), o texto é suficientemente aberto para não implicar em uma ordem de genocídio. A questão primária aqui é desfazer a ameaça que Amalek representou e representaria de geração em geração ao povo de Israel. Amalek precisaria ser vencido de uma forma que só sua destruição enquanto entidade sociopolítica daria fim à essa guerra — o outro resultado possível para finalizar a guerra seria se o povo de Israel fosse destruído pelo de Amalek…. Agora, como fazer isso exatamente? O texto deixa em aberto.
Passando para a História Deuteronomista, vemos que os amalequitas serão retratados como uma constante ameaça aos israelitas, participando da opressão contra Israel em vários momentos:
“E [Eglom, rei dos moabitas] reuniu consigo os filhos de Amom e os amalequitas, e foi, e feriu a Israel, e tomaram a cidade das palmeiras.
E os filhos de Israel serviram a Eglom, rei dos moabitas, dezoito anos.” (Juízes 3:12–14)
“Porém os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do SENHOR; e o SENHOR os deu nas mãos dos midianitas por sete anos.
E, prevalecendo a mão dos midianitas sobre Israel, fizeram os filhos de Israel para si, por causa dos midianitas, as covas que estão nos montes, as cavernas e as fortificações.
Porque sucedia que, semeando Israel, os midianitas e os amalequitas, e também os do oriente, contra ele subiam.
E punham-se contra ele em campo, e destruíam os frutos da terra, até chegarem a Gaza; e não deixavam mantimento em Israel, nem ovelhas, nem bois, nem jumentos.
Porque subiam com os seus gados e tendas; vinham como gafanhotos, em grande multidão que não se podia contar, nem a eles nem aos seus camelos; e entravam na terra, para a destruir.” (Juízes 6:1–5)
Note que nesses 2 casos do livro dos Juízes, os Amalequitas não são o opressor primordial de Israel. Mas eles se aliaram a outros (Moab, Midiã) para esse objetivo de opressão. Pode-se dizer que, para a narrativa, enquanto esses outros povos como Moab e Midiã fossem opressores de ocasião, Amalek seria um opressor ‘com gosto’, interessado em oprimir e destruir Israel, mesmo que nem fosse ficar com o despojo principal. O ódio gratuito de Amalek já manifestado no episódio retratado em Êxodo continuara.
Outros exemplos de menção aos amalequitas no livro dos Juízes, entre os opressores de Israel:
“De Efraim saiu a sua raiz contra Amaleque.” (Juízes 5:14)
“Porém o Senhor disse aos filhos de Israel: Porventura dos egípcios, e dos amorreus, e dos filhos de Amom, e dos filisteus,
E dos sidônios, e dos amalequitas, e dos maonitas, que vos oprimiam, quando a mim clamastes, não vos livrei das suas mãos?” (Juízes 10:11,12)
A menção de cima encontra-se no Cântico de Débora, no contexto da opressão perpetrada por um assim chamado Rei de Canaã, isto é, cananeus. (Note que, no livro de Números dentro da Torá, também já fora relatado como os amalequitas auxiliaram os cananeus a impedir os israelitas de entrar na terra prometida; veja Números 14) Já a menção de baixo é uma lembrança de vários opressores pelos quais os israelitas passaram. Em todo caso, o quadro geral dos amalequitas como partícipes perenes da opressão israelita é reforçado nesses 2 trechos também.
No próximo livro [1]Samuel, a mesma questão persevera:
“Então tomou Saul o reino sobre Israel; e pelejou contra todos os seus inimigos em redor; contra Moabe, e contra os filhos de Amom, e contra Edom, e contra os reis de Zobá, e contra os filisteus, e para onde quer que se tornava executava castigo.
E houve-se valorosamente, e feriu aos amalequitas, e liberou a Israel da mão dos que o saqueavam.” (1 Samuel 14:47,48)
Aqui o 1º rei israelita, Saul, infligiu severas baixas contra uma série de opressores e inimigos, incluindo os amalequitas, que são citados de forma separada dos demais. Deve-se destacar ainda que o principal motor para a formação da monarquia israelita foi a opressão de Israel por parte dos filisteus, que representavam a maior ameaça de retorno à estrutura sociopolítica fortemente hierárquica contra a qual Israel havia se insurgido no passado (como já falado no post anterior a respeito dos cananeus).
Em que pese os filisteus na ocasião serem os opressores primários, outros povos também se aproveitavam para oprimir Israel, e Saul (antes mesmo de ser sagrado rei) já se destacara como um ícone da solidariedade entre todos os israelitas em prol da libertação da opressão que sofriam, como fica bem claro na história a seguir, relatando um caso de opressão cruel pelos amonitas:
“Então subiu Naás, amonita, e sitiou a Jabes-Gileade; e disseram todos os homens de Jabes a Naás: Faze aliança conosco, e te serviremos.
Porém Naás, amonita, lhes disse: Com esta condição farei aliança convosco: que a todos vos arranque o olho direito, e assim ponha esta afronta sobre todo o Israel.
Então os anciãos de Jabes lhe disseram: Deixa-nos por sete dias, para que enviemos mensageiros por todos os termos de Israel, e, não havendo ninguém que nos livre, então viremos a ti.
E, vindo os mensageiros a Gibeá de Saul, falaram estas palavras aos ouvidos do povo. Então todo o povo levantou a sua voz, e chorou.
E eis que Saul vinha do campo, atrás dos bois; e disse Saul: Que tem o povo, que chora? E contaram-lhe as palavras dos homens de Jabes.
Então o Espírito de Deus se apoderou de Saul, ouvindo estas palavras; e acendeu-se em grande maneira a sua ira.
E tomou uma junta de bois, e cortou-os em pedaços, e os enviou a todos os termos de Israel pelas mãos dos mensageiros, dizendo: Qualquer que não seguir a Saul e a Samuel, assim se fará aos seus bois. Então caiu o temor do Senhor sobre o povo, e saíram como um só homem.
E contou-os em Bezeque; e houve dos filhos de Israel trezentos mil, e dos homens de Judá trinta mil.” (1 Samuel 11:1–8)
É contra esse background de crueldades cometidas contra os israelitas por outros povos da região (estando os amalequitas como partícipes constantes disso, sempre se aliando a outros contra Israel) que devemos tentar entender a passagem terrível encontrada em [1]Samuel 15:
“Então disse Samuel a Saul: Enviou-me o SENHOR a ungir-te rei sobre o seu povo, sobre Israel; ouve, pois, agora a voz das palavras do SENHOR.
Assim diz o Senhor dos Exércitos: Eu me recordei do que fez Amaleque a Israel; como se lhe opôs no caminho, quando subia do Egito.
Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos.” (1 Samuel 15:1–3)
O profeta Samuel, que sagrara Saul como rei, agora diz para Saul que Deus ordenara a destruição de Amalek. E dessa vez se especifica como fazê-lo: matar a tudo de Amalek, inclusive mulheres e crianças!
Certamente essa passagem é chocante e retrata algo muito errado de ser feito, isso é inegável. O que tentarei mostrar é que a passagem em questão NÃO NEGA isso. Sim, pode parecer paradoxal, mas continue lendo e você entenderá como há algumas ‘pegadinhas’ envolvidas aqui na leitura desse trecho (justamente pelas peculiaridades literárias da narrativa hebraica-antiga).
Em primeiro lugar, Deus como personagem não afirma ou ordena a respeito de matar mulheres e crianças amalequitas. Em nenhum momento da Bíblia Hebraica, Deus fala diretamente nada envolvendo uma ordem ou permissão para matar mulheres e crianças (seja amalequitas, cananéias ou quaisquer outras).
Em segundo lugar, o trecho em questão retrata a mensagem de um profeta ‘em nome de Deus’. Mas, ao contrário do que muitos pensam, o fato de ser uma mensagem profética não implica narrativamente que Deus tenha dito isso dessa forma ao profeta. Como alguns sábios da tradição judaica oral destacaram, existem duas expressões usadas para ‘disse’ no hebraico quando se fala esse ‘assim diz YHWH’ (YHWH o sagrado nome divino é vertido como ‘Senhor’ ou ‘Eterno’ nas traduções). Um desses usos — o majoritário e que também é o presente neste caso — não implica que o profeta repete mecanicamente as mesmas palavras ouvidas, mas sim descreve o teor da mensagem em suas próprias palavras (e aqui eu destacaria: da maneira que a entendeu). Sobre o tratamento dos sábios a respeito desses usos do ‘disse’, uma brilhante revisão é feita por R. Abraham Joschua Heschel em “The Heavenly Torah: as refracted through the Generations”. Além disso, nos livros autorais dos Profetas Literários (com exceção de Jonas), vemos mais claramente como os profetas, apesar de usarem a expressão ‘assim diz YHWH’, acrescentam elaborações e discursos poéticos de sua própria lavra, uma característica muito bem reconhecida acerca do profetismo israelita clássico (na literatura acadêmica especializada).
Talvez aqui o leitor fique com a pulga atrás da orelha: mas mesmo admitido que há ruído no processo de comunicação entre Deus e o profeta, em caso do profeta ter entendido a coisa toda de forma mais violenta do que Deus pretendera, Deus não poderia simplesmente corrigir o profeta? A questão não é tão simples assim, pois como já falei em outras ocasiões, a Bíblia Hebraica não pressupõe que Deus possa fazer tudo. Existem limitações na atuação divina. E mais do que isso: Deus delegou muito do trabalho interpretativo para os humanos, para bem ou para mal. Então, nem mesmo Deus tem a palavra final sobre a interpretação de seus preceitos! Algo que a jurisprudência judaica oral vai frisar em histórias como a de que nem mesmo uma ‘voz divina vinda do céu’ pode cancelar a interpretação que os sábios tenham dado, por maioria, a certo preceito da Torá, uma vez que a própria Torá delegou essa interpretação à decisão HUMANA sob critério majoritário-epistocrático (Talmude, Bavah Metzia 59b).
Em terceiro lugar — e aqui é que começaremos a chegar na real compreensão dessa passagem terrível— o fato do profeta estar falando isso para o rei Saul não implica que essa interpretação era uma espécie de ‘interpretação permanente’ da ordem dada em Deuteronômio (a de apagar a memória dos amalequitas), mas sim está voltada especificamente para o rei Saul naquele contexto específico. Por algum motivo — logo veremos qual — essa interpretação (terrível!) foi colocada nos ombros de Saul especificamente, e isso indica que a narrativa quer chamar atenção a algum traço específico de Saul.
O andar da narrativa vai mostrar como a reação de Saul nesse episódio e em um episódio posterior vai revelar algo de muito grave a respeito do caráter de Saul e dos motivos para que este não mais fosse qualificado a ser o rei israelita. Então, vamos resumir o que acontece depois aqui, e o que vai acontecer mais pra frente que se conecta com esse episódio aqui numa necessária leitura intertextual ‘de trás pra frente’.
O texto de [1]Samuel 15 continua relatando como Saul de fato atacará os amalequitas e (aparentemente) destruirá todos, homens, mulheres e crianças. Na verdade, isso é aparentemente apenas, porque apesar da narrativa dizer isso aqui, veremos em trechos posteriores que os amalequitas ainda existiam. Há um caráter hiperbólico nesse tipo de narrativa, como já vimos no post anterior que ocorria também no caso dos cananeus.
Contudo, a narrativa prossegue dizendo que Saul poupou uma pessoa: o próprio Rei amalequita. Além disso, Saul poupou o gado. Para poupar o gado, Saul usa o motivo de que poderia agradar mais a Deus oferecer o gado como sacrifício. O relato não nos diz qual motivo Saul usara para poupar o rei amalequita. O profeta Samuel ao descobrir isso fica muito irritado:
“E tomou vivo a Agague, rei dos amalequitas; porém a todo o povo destruiu ao fio da espada.
E Saul e o povo pouparam a Agague, e ao melhor das ovelhas e das vacas, e as da segunda ordem, e aos cordeiros e ao melhor que havia, e não os quiseram destruir totalmente; porém a toda a coisa vil e desprezível destruíram totalmente.
Então veio a palavra do Senhor a Samuel, dizendo:
Arrependo-me de haver posto a Saul como rei; porquanto deixou de me seguir, e não cumpriu as minhas palavras. Então Samuel se contristou, e toda a noite clamou ao Senhor.” (1 Samuel 15:8–11)
“Veio, pois, Samuel a Saul; e Saul lhe disse: Bendito sejas tu do Senhor; cumpri a palavra do Senhor.
Então disse Samuel: Que balido, pois, de ovelhas é este aos meus ouvidos, e o mugido de vacas que ouço?
E disse Saul: De Amaleque as trouxeram; porque o povo poupou ao melhor das ovelhas, e das vacas, para as oferecer ao Senhor teu Deus; o resto, porém, temos destruído totalmente.
Então disse Samuel a Saul: Espera, e te declararei o que o Senhor me disse esta noite. E ele disse-lhe: Fala.
E disse Samuel: Porventura, sendo tu pequeno aos teus olhos, não foste por cabeça das tribos de Israel? E o Senhor te ungiu rei sobre Israel.
E enviou-te o Senhor a este caminho, e disse: Vai, e destrói totalmente a estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até que os aniquiles.
Por que, pois, não deste ouvidos à voz do Senhor, antes te lançaste ao despojo, e fizeste o que parecia mau aos olhos do Senhor?
Então disse Saul a Samuel: Antes dei ouvidos à voz do Senhor, e caminhei no caminho pelo qual o Senhor me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas destruí totalmente;
Mas o povo tomou do despojo ovelhas e vacas, o melhor do interdito, para oferecer ao Senhor teu Deus em Gilgal.
Porém Samuel disse: Tem porventura o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios, como em que se ouça a palavra do Senhor? Eis que o ouvir é melhor do que o sacrificar; e o atender melhor é do que a gordura de carneiros.
Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniqüidade e idolatria. Porquanto tu rejeitaste a palavra do Senhor, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.” (1 Samuel 15:13–23)
Ao fim disso tudo, o profeta Samuel ele mesmo mata o rei amalequita, e dá um motivo para fazê-lo:
“Então disse Samuel: Trazei-me aqui a Agague, rei dos amalequitas. E Agague veio a ele animosamente; e disse Agague: Na verdade já passou a amargura da morte.
Disse, porém, Samuel: Assim como a tua espada desfilhou as mulheres, assim ficará desfilhada a tua mãe entre as mulheres. Então Samuel despedaçou a Agague perante o Senhor em Gilgal.” (1 Samuel 15:32,33)
Ok, vamos analisar o que você acabou de ler aqui… Por qual motivo Deus se arrepende de ter colocado Saul como rei? Porque Saul não ouviu sua palavra, isto é, não cumpriu com o que Samuel havia repassado para Saul. E como Saul não cumpriu essa palavra? Porque além de poupar o gado com um pretenso propósito de sacrifício (esquecendo que o que Deus mais deseja não são os sacrifícios, mas sim uma atitude correta), Saul poupa o rei amalequita mesmo quando não teve o menor receio de matar todos os demais (seja.homens, mulheres e crianças).
Pense um pouco: se Saul tivesse objetado matar as mulheres e crianças, Deus o rejeitaria como rei mesmo assim? A narrativa deixa isso em aberto. Nós podemos dizer no mínimo que Saul teria um ótimo argumento de justiça, misericórdia e humanidade em prol de deixar as mulheres e crianças vivas (como, bem, é claramente o argumento mais sensato e racional). E como na Bíblia Hebraica admite-se que o ser humano pode vencer Deus no argumento quando há boas razões para isso, seria de se esperar que aqui Deus aceitaria esse argumento humano (e mesmo o estivesse esperando!). Isso aconteceu com Moisés e Abraão, como já discuti em outros posts do blog. E na tradição judaica oral, diz-se que, caso Noé tivesse clamado por misericórdia em favor de sua geração, o próprio dilúvio teria sido evitado.
Então aqui o caráter de Saul já começou a ser testado dentro do fato de que ele nunca questionou a legitimidade de matar mulheres e crianças. E ele poupa justamente quem? O rei dos amalequitas, isto é, aquele que tanto oprimiu Israel e foi responsável pela morte de tantas pessoas (como depois o profeta Samuel indica), ou seja, aquela pessoa para a qual mais razões havia para matar nesse episódio!
A misericórdia de Saul era seletiva, voltada para aqueles que estavam no poder ou que tinham um status social elevado. O problema é que isso contrasta com o caráter divino: Deus julga mais pesadamente aqueles que estão no poder, especialmente quando cometem atos de opressão, enquanto julga mais favoravelmente o povo comum, especialmente os oprimidos e vulneráveis (como os órfãos, as viúvas, os pobres etc.). Então o rei israelita, como um braço direito de Deus entre os israelitas, tinha a disposição de atitude diretamente contrária à de Deus, logo, não poderia servir como rei.
Portanto, uma boa chave de leitura aqui é ver que há um aspecto de ‘pegadinha’ na mensagem profética. Tal como outras falas divinas ou mensagens proféticas, essa poderia ter sido desafiada e discutida dado parecer absurda em algum sentido. Mas Saul simplesmente a desafiou unilateralmente da maneira mais errada possível, uma vez que claramente demonstrava não entender qual era o ponto do rei israelita lutar contra Amalek. Essa luta tinha no seu centro a questão da opressão sociopolítica e do ódio gratuito — então não haveria nenhuma justificativa para poupar o rei amalequita, mesmo que houvesse para poupar parte dos amalequitas (especialmente mulheres e crianças).
E essa narrativa faz paralelo com outra narrativa mais à frente, nesse caso, quando Saul, por paranóia, estava querendo matar a Davi, por pensar que Davi estava conspirando para dar um golpe de Estado contra Saul. Nessa ocasião, Saul matará novamente mulheres e crianças, agora mulheres e crianças israelitas, com base em uma paranóia de que os sacerdotes do local estariam auxiliando Davi a dar o tal golpe de Estado (na verdade os sacerdotes haviam ajudado Davi entregando alimento e armamento sem saber que Davi estava fugindo de Saul). Dessa vez, Saul não poupará ninguém, o que, em conexão ao trecho anterior sobre os amalequitas, comprova o que havia de errado na atitude de Saul. Veja o trecho relevante:
“E disse o rei aos da sua guarda que estavam com ele: Virai-vos, e matai os sacerdotes do Senhor, porque também a sua mão é com Davi, e porque souberam que fugiu e não mo fizeram saber. Porém os criados do rei não quiseram estender as suas mãos para arremeter contra os sacerdotes do Senhor.
Então disse o rei a Doegue: Vira-te, e arremete contra os sacerdotes. Então se virou Doegue, o edomeu, e arremeteu contra os sacerdotes, e matou naquele dia oitenta e cinco homens que vestiam éfode de linho.
Também a Nobe, cidade destes sacerdotes, passou a fio de espada, desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, e até os bois, jumentos e ovelhas passou a fio de espada.
Porém escapou um dos filhos de Aimeleque, filho de Aitube, cujo nome era Abiatar, o qual fugiu para Davi.
E Abiatar anunciou a Davi que Saul tinha matado os sacerdotes do Senhor.” (1 Samuel 22:17–21)
Perceba o paralelismo muito claro entre esse trecho e o dos amalequitas. Enquanto em 1Samuel 15, Saul fora instruído a matar todos os amalequitas, seja homens, mulheres e crianças, bem como seus animais, mas Saul não matara a todos por poupar o rei amalequita e o gado, aqui em 1Samuel 22, Saul por uma decisão própria decide matar todos os moradores de Nobe, seja homens, mulheres e crianças, bem como todos os animais também, mesmo sendo pessoas de seu próprio povo!
Portanto, incorre em erro ler 1Samuel 15 sem conectá-lo a 1Samuel 22. Ambos os episódios convergem para a revelação de uma disposição muito errada por parte de Saul. Saul foi testado e achado extremamente em falta.
Agora, para finalizar a questão da narrativa bíblica a respeito dos amalequitas, antes de adentrarmos na jurisprudência da tradição judaica oral sobre esses preceitos contra os amalequitas, já destaquei acima que os amalequitas na verdade não deixaram de existir em 1Samuel 15. Nós ouviremos falar deles outras vezes, na verdade o texto de 1Samuel 15 é hiperbólico, não literal. É apenas no livro de [1–2]Crônicas dentro dos Ketuvim, um livro posterior escrito já tendo em mãos a Torá e os Neviim (aqui com destaque para Samuel e Reis), que veremos a Bíblia Hebraica dar seu último relato à respeito dos amalequitas:
“Estes, pois, que estão descritos por seus nomes, vieram nos dias de Ezequias, rei de Judá, e derrubaram as tendas e habitações dos que se acharam ali, e as destruíram totalmente até o dia de hoje, e habitaram em seu lugar; porque ali havia pasto para os seus rebanhos.
Também deles, dos filhos de Simeão, quinhentos homens foram às montanhas de Seir; levaram por cabeças a Pelatias, e a Nearias, e a Refaías, e a Uziel, filhos de Isi.
E feriram o restante dos que escaparam dos amalequitas, e habitaram ali até o dia de hoje.” (1 Crônicas 4:41–43)
Aqui Crônicas diz que pelo menos até o tempo do Rei Ezequias havia ainda alguns amalequitas remanescentes, vários séculos depois dos eventos envolvendo Saul. E a tradição judaica oral suplementará isso com a informação de que, após o Império Assírio ter dominado a região com exceção do reino de Judá (justamente na época de Ezequias), os assírios ‘misturaram’ os povos, de tal maneira que não era mais possível traçar quem fosse ou não amalequitas, fazendo assim cair a regra (literal) a respeito dos amalequitas. Na prática, os amalequitas tiveram sua memória apagada, não pelos israelitas, mas pelos assírios (um opressor mais cruel ainda).
Fora isso, a tradição judaica oral também associará a figura de Haman (no livro de Ester) a Amalek. Esse é um ponto muito interessante, porque o livro de Ester ocorre durante o período de dominação persa, após o exílio babilônico (que veio depois da época da dominação assíria acima mencionada). Sem entrar em maiores detalhes, o livro de Ester (uma judia tornada rainha persa) relata como Haman, por ódio ao tio dela Mordecai (um judeu), conspira de maneira a fazer o imperador persa a proclamar um edito permitindo matar todos os judeus, seja homens, mulheres ou crianças.
Então, quando os rabinos leram essa história, viram aqui a ‘semente de Amalek’, o mesmo ódio gratuito que inspirava Amalek a guerrear contra Israel outrora. A luta contra Amalek, portanto, tem uma dimensão de luta contra o antissemitismo, de uma resistência contra o genocídio judaico (e não uma apologia aos judeus cometerem um genocídio!). Enquanto o livro de Ester não diga que Haman fosse descendente de amalequitas, essa associação imaginativa faz sentido como mais uma chave para entender o que está por trás de toda essa questão envolvendo Amalek: o ódio gratuito, o antissemitismo, a vontade de oprimir outrem — e ainda mais, de matá-lo — pelo simples ódio contra essas pessoas (ao invés de algum ganho material, como seria o mais comum). Nós vimos isso acontecer no genocídio que os judeus sofreram na Shoá (mais conhecida como Holocausto) durante a Segunda Guerra Mundial. Há um fio narrativo que permite conectar Amalek, Agague, Haman e Hitler. Você imaginaria um rei israelita poupando Hitler? Creio que assim fique mais claro a natureza do teste de Saul em 1Samuel 15…
Agora, para finalizar esse texto, passemos à jurisprudência judaica oral. Aqui ocorre a mesma ideia de que falei no texto anterior a respeito dos cananeus: uma permissão jurídica para matar mesmo as mulheres e crianças amalequitas. Não era uma obrigação matá-las, uma vez que, como já falei anteriormente, era reconhecida a possibilidade inclusive dos amalequitas se tornarem judeus, e que alguns rabinos da tradição oral descendiam de amalequitas convertidos. Inclusive uma lenda da tradição oral também alertava que o surgimento de Amalek se devera a um erro por parte dos patriarcas bíblicos, em terem recusado a conversão ao judaísmo por parte de Timna (Sanhedrin 99b). Então, havia uma alternativa à morte física dos amalequitas. Sua incorporação, como os irmãos que originalmente eram, na comunidade de Israel. A reconciliação última de Esaú e Jacó!
Além disso, rabinos como o Rambam entendem que, tal como no caso dos caananitas, é necessário primeiro fazer uma oferta de paz para os amalequitas, onde estes se comprometam a cumprir com as 7 leis de Noé (preceitos universais de toda a humanidade). Assim, apesar da memória de Amalek dever ser destruída, isso só se aplicaria àqueles amalequitas que insistissem em sua inimizade e injustiça (Mishnê Torah, Hilkhot Melakhim 6:4).
Em todo caso, essa permissão legal de forma excepcional à morte de mulheres e crianças do inimigo em certas circunstâncias ainda é moralmente problemática, mas, se levarmos em conta a narrativa bíblica concreta, ela se aplicou basicamente ao início da monarquia israelita na interpretação da História Deuteronomista. Fora da História Deuteronomista, em nenhum lugar encontramos nada mais a respeito disso (com exceção de Crônicas que já se baseia na própria História Deuteronomista). Assim como a permissão (terrível) a respeito dos cananeus, a permissão (terrível) a respeito dos amalequitas, é uma coisa da História Deuteronomista, não da Bíblia Hebraica como um todo. A jurisprudência judaica oral nesse sentido entendeu o preceito a respeito de apagar a memória de Amalek como incumbente à nação israelita como um todo sob a direção do rei judeu (Talmude, Sanhedrin 20b).. Portanto, israelitas individuais não teriam nenhum direito a matar amalequitas, à parte de uma guerra contra eles comandada por um rei legítimo (enquanto seja possível encontrar rabinos na tradição judaica pós-talmúdica interpretando isso de forma diferente).
Aqui podemos (e devemos) criticar o autor da História Deuteronomista (ou o autor do Livro de Samuel) por achar que realmente podemos considerar um caso de sucesso uma situação envolvendo a morte de mulheres e crianças, ou por interpretar o mandamento da Torá a respeito de Amalek como permitindo isso. Nada nos obriga a concordar com o narrador desse livro nesse sentido! Também podemos criticar a Jurisprudência Judaica por não ter efetivamente excluído esse tipo de cenário. Aqui podemos nos aliar àqueles rabinos que efetivamente defenderam que nunca poderia ter sido a vontade divina nem mesmo permitir legalmente tais mortes (enquanto, como já ficou claro, é basicamente consensual que a vontade divina nunca fora de obrigar legalmente tais mortes dado que havia alternativas).
Mas a meu ver tanto os textos como a discussão jurisprudencial deixam claro que matar mulheres e crianças não deixou de ser errado naquele cenário excepcional, mesmo da perspectiva dos próprios textos e da discussão tradicional a respeito. Me parece que o que havia ali era, em termos jurídico-modernos, uma isenção de punibilidade ou reprovabilidade num caso muito excepcional (um momento onde a nação israelita ainda era muito jovem, e poderia ela mesma ser exterminada totalmente pelos amalequitas), mas isso em nenhum momento retirava a ilicitude ou imoralidade do ato em si.
E se formos para o restante da Bíblia Hebraica, seja nos 15 Profetas Literários dos Neviim, seja nos vários livros dos Ketuvim (talvez com exceção dos livros do Cronista — Crônicas e Esdras-Neemias — apesar de que nem esses são claros a respeito), em nenhum momento encontramos algum estímulo a matar amalequitas, muito menos de suas mulheres ou crianças. Ao que tudo indica, esses outros livros não pressupõem uma regra permitindo tal coisa ou incentivando algo que pudesse levar a esse cenário. Nesse sentido, os demais livros dos Neviim e do Ketuvim seguem mais de perto os 4 primeiros livros da Torá, que não pressupunham esse tipo de coisa.
Portanto, podemos concluir que Deus não ordenou o extermínio de todos os cananeus, incluindo mulheres e crianças. O que ocorre é que os autores da História Deuteronomista interpretou que isso seria possível, e num trecho do livro de Samuel voltado a testar o caráter de Saul é narrado como se isso tivesse acontecido, resguardada a retórica hiperbólica desse livro. A Jurisprudência Judaica tentou compatibilizar todo esse corpo de escritos que puxavam em direções diferentes, admitindo algum tipo de permissão legal nesse caso muito excepcional, onde o outro lado tinha como objetivo constante o de exterminar os israelitas, mas ainda colocando limitações à essa permissão.
Em todo caso, a permissão legal aqui envolvida seria uma questão de quando a Lei permite algo imoral, não implicando em uma validação moral do ato. Obviamente podemos e devemos aperfeiçoar a Lei para que um ato imoral muito grave não mais seja legalmente permitido — no caso da Lei Judaica, acaba que, quando o preceito a respeito dos israelitas apagarem a memória de Amalek veio à tona, a situação à qual seria aplicável não mais existia, tanto porque os inícios da monarquia já havia passado quanto porque o exílio assírio já havia misturado os povos. O livro de Deuteronômio só começou a ser aplicado no Reino de Josias, que é posterior a esses eventos todos (seja porque foi escrito por volta dessa época, como pensa a crítica bíblica moderna, seja porque foi redescoberto nessa época, como a narrativa do livro dos Reis coloca). Então, a regra em questão nunca teve uso prático. Daí a História Deuteronomista usá-la num sentido pedagógico e literário, para ensinar como o caráter de Saul foi testado por esse preceito — ao estabelecer uma consequência severa excepcional contra os amalequitas em termos hipotéticos no livro de Samuel (fazendo a ponte com o preceito do Deuteronômio).
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