[190] Deus NÃO ordenou genocídios — Parte 4: Conclusões

A Estrela da Redenção
5 min readApr 1, 2022

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Nos últimos 3 textos do blog, tenho buscado desfazer o mal entendido de que Deus teria ordenado extermínios (genocídios) de populações inteiras incluindo mulheres e crianças no “Velho” Testamento (como é vulgarmente conhecida a Bíblia Hebraica).

Já falei tanto especificamente do caso referente aos cananeus como no caso referente aos amalequitas. Agora é a hora de resumir as conclusões gerais dessa investigação em cima de trechos ‘terríveis’ da Bíblia Hebraica.

Primeiro, a impressão inicial de que Deus ordena em algum momento o extermínio/genocídio de populações inteiras na verdade não se sustenta sob uma análise criteriosa dos textos pertinentes. Onde o personagem Deus mais aparece falando (os 4 primeiros livros da Torá), nunca a ideia de extermínio/genocídio de populações inteiras aparece, nem de cananeus nem de amalequitas, e nem algo próximo a isso. Nesses casos, há apenas a garantia de que Deus ajudaria a expulsar os cananeus e apoiar Israel quando Amalek lhe atacasse de geração em geração, tudo isso assentado na injustiça e na opressão tanto de cananeus quanto de amalequitas enquanto entidades sociopolíticas.

Segundo, em termos de Torá, o que pareceria chegar mais próximo do ímpeto de demandar o extermínio/genocídio de populações seria apenas o livro de Deuteronômio, onde Moisés fala na 1ª pessoa, num estilo mais de sua interpretação do que de diretivas divinas diretas. Ainda assim, NÃO ENCONTRAMOS a pretendida ordem de extermínio/genocídio aqui. No caso dos amalequitas, o texto é bastante aberto quanto ao apagamento da memória de Amalek (a entidade sociopolítica amalequita), sem especificar os detalhes disso. No caso dos cananeus, o texto realmente fala em não deixar nada com vida nas cidades caananitas, contudo, é aberto o suficiente para indicar mais a destruição total das cidades caananitas com ausência de captura de escravos do que a necessidade de efetivamente matar cada indivíduo (algo que não é dito expressamente).

Terceiro, o que realmente chega próximo do ímpeto relativo ao extermínio/genocídio de populações seriam 2 livros da História Deuteronomista: o livro de Josué, para o caso dos cananeus, e o livro de [1]Samuel, para o caso dos amalequitas. No caso de Josué, o relato é descritivo (não normativo, enquanto pressupõe uma interpretação normativa em certa direção) e hiperbólico: mesmo que o texto diga que todos foram mortos, isso não necessariamente é o caso. No caso de Samuel, há uma mensagem profética normativa, contudo, não se trata de uma interpretação permanente da regra do Deuteronômio, e sim uma mensagem voltada especificamente para testar a reação do 1º rei judeu Saul, trazendo uma interpretação oponível. Na parte descritiva, também em Samuel vemos o uso da hipérbole. Os autores da História Deuteronomista podem ser criticados por verem essas mortes de mulheres e crianças como aceitáveis, mesmo que só o vejam dessa forma em contextos bem restritos (para os cananeus, a conquista da terra; para os amalequitas, o início da monarquia israelita).

Quarto, o restante da Bíblia Hebraica inteira não pressupõe essas regras do Deuteronômio ou interpretações delas envolvendo matar mulheres e crianças seja dos cananeus seja dos amalequitas. Por exemplo, os livros dos 15 Profetas NUNCA abordam tal suposto mandamento ou permissão, nem em termos normativos nem em termos descritivos.

Quinto, as regras da Torá não são uma legislação caída do céu, mas sim o ponto de partida de uma jurisprudência desenvolvida por meio de raciocínio humano. Quando olhamos para a jurisprudência tradicional em torno desses preceitos, é evidente que eles nunca foram entendidos realmente como ordens obrigando a matar mulheres e crianças dos cananeus e amalequitas, ou obrigando a exterminar por inteiro suas populações. Numa análise mais cuidadosa, observamos que uma série de restrições e limitações (p. ex. ofertas de paz prévias) eram previstas antes que se chegasse à possibilidade de realmente efetuar tais mortes. Portanto, estamos diante mais de um caso de permissão jurídica do que de obrigação jurídica.

Sexto, essa permissão jurídica não implica na legitimidade moral desses atos. Por vezes o Direito permite coisas que são imorais, e o Direito Judaico não é uma exceção a isso. Também podemos criticar que a jurisprudência judaica tenha estabelecido essa permissão (mesmo que hipotética).

Sétimo, a referida permissão jurídica é de caráter puramente hipotético, uma vez que ao tempo de seu primeiro estabelecimento no livro do Deuteronômio durante o reino de Josias em Judá, as nações pertinentes — cananéias ou amalequita — não existiam mais. Portanto, tão logo os preceitos que permitiam em alguma medida tal resultado terrível envolvendo mortes de mulheres e crianças passaram a ‘vigorar’, sua aplicação já era vazia e morta na prática. Por isso a existência desses preceitos no livro do Deuteronômio e sua suposta execução nos livros de Josué e Samuel (também de autoria da Escola Deuteronomista) na verdade tem um uso mais literário ou pedagógico, p. ex. para chamar atenção às causas do exílio babilônico em termos da absorção na cultura caananita ou de uma falha de caráter grave do rei Saul, desqualificando-o ao cargo de rei israelita. Essa parte do corpus jurídico-judaico é primordialmente fictícia.

Oitavo, os trechos em questão não representam ódio gratuito contra outros povos, mas sim reflexos de uma indignação pela injustiça social e pela opressão sociopolítica enfrentada pelos israelitas antigos, que foram por diversas vezes oprimidos por cananeus e amalequitas. Aqui um debate mais válido a ser feito em termos contemporâneos seria a respeito de até que ponto tal indignação justa pode se exceder, sobre os riscos do oprimido virar opressor, sobre os excessos da atividade revolucionária, e outras coisas desse tipo. De todo modo, é preciso ler esses trechos à luz de que os israelitas é que foram as principais vítimas da opressão, não seus perpetradores, nessa relação com cananeus e amalequitas.

“War — Fight” [Guerra — Luta], Vajda Lajos, 1939.

Dessa forma, podemos concluir que sim, existem alguns trechos de uma parte bem específica da Bíblia Hebraica (a História Deuteronomista) que realmente são ‘terríveis’ e gostaríamos que não estivessem escritos lá. Contudo, apesar de chocantes, tais trechos NÃO implicam que Deus teria ordenado o genocídio de cananeus ou de amalequitas — tanto porque Deus nunca aparece falando disso como porque quando isso é abordado por um profeta, na verdade se trata de uma permissão jurídica para algo imoral, não de uma obrigação jurídica que conferisse legitimidade moral a tais atos. Inclusive é curioso como os autores da História Deuteronomista escreveram tanto o Deuteronômio (na Torá) como Josué e Samuel (fora da Torá), mas aquilo que escreveram na Torá sob a boca de Moisés é sempre escrito de forma muito mais aberta à interpretação do que aquilo que escreveram em Josué e Samuel. E o restante da Bíblia Hebraica, inclusive a maior parte da própria Torá, não está comprometida com o teor desses trechos ‘terríveis’ da História Deuteronomista, então mesmo que a História Deuteronomista seja criticável por tais trechos, as demais partes da Bíblia Hebraica não o são.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.