[193] Resumo do Plot da Torá: trama dramática, da criação aos 40 anos no deserto

A Estrela da Redenção
10 min readApr 2, 2022

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Se lermos os 5 primeiros livros da Bíblia, chamados de Torá ou Pentateuco, vemos uma narrativa que percorre desde a criação do mundo até os israelitas passando 40 anos no deserto antes de se preparar para entrar na terra prometida.

A maioria de vocês provavelmente tem uma ideia em linhas gerais dessa narrativa. Nomes como Adão, Eva, Noé, Abraão, Moisés… Agora, será que você realmente conseguiu compreender qual o Plot dessa história toda? Qual é exatamente a trama que interliga todas essas narrativas que percorrem séculos e mesmo milênios?

O objetivo desse post será trazer para vocês um resumão de qual o plot/trama/enredo da Torá, como o compreendo a partir de uma leitura ‘natural’ do texto bíblico (isto é, sem pressupor dogmas), enquanto uma OBRA LITERÁRIA.

Nesse sentido, é importante destacar que Deus, ou YHWH (seu nome próprio), é Ele mesmo um personagem literário que faz parte dessa narrativa. Os motivos divinos na maior parte do tempo não são explorados diretamente, mas não é tão difícil inferir o que está se passando na figura divina quando você junta todos os pontos.

Por questões de brevidade, não irei tentar justificar toda a linha de raciocínio que permite fundamentar cada ponto explorado abaixo, posso fazê-lo em outro texto futuro.

Antes de iniciarmos, assuma os seguintes pressupostos textuais:

  1. Nessa obra literária, não existe nenhuma ideia de vida após a morte. Nunca se especula ou se fala dos personagens irem para algum lugar após a morte para serem punidos, recompensados, etc. Portanto, na narrativa que veremos a seguir, essa vida aqui e agora é TUDO o que temos.
  2. Nessa obra literária, Deus NÃO é capaz de fazer tudo nem sabe tudo de antemão. Ele na verdade se surpreende com as decisões humanas e reage a estas em tempo real. De forma similar, Ele pode mudar de ideia, ou ser convencido por argumentos humanos. Quando Ele precisa fazer algo no mundo, Ele precisa de fenômenos da natureza ou da cooperação de seres humanos.

Agora podemos começar:

Deus resolve criar o mundo. Ele o organiza, criando um lar para os humanos e os animais. Ao fazê-lo, Deus cria um lar para si mesmo. No jardim do Éden, Deus passa a conviver com humanos e animais, numa presença direta.

Os humanos são o ser mais próximo de Deus, e Deus dá algumas incumbências para o ser humano: cuidem do jardim, façam sexo e tenham filhos, comam de todas as árvores exceto pela do conhecimento do bem e do mal (e, implicitamente, não comam outros animais).

Simplesmente por não comerem o fruto de uma única árvore, os humanos teriam acesso a uma vida extremamente boa e tranquila, na presença imediata de Deus, e acesso ao fruto da árvore da vida, que permitia um prolongamento indefinido da vida humana. Contudo, os humanos da época preferem comer do fruto, assim optando por um caminho de vida que eles mesmos escolhessem, com as consequências que isso teria.

Curiosamente, apesar de Deus ter dito ‘no dia em que dele [o fruto proibido] comeres, morrerás’, na verdade Adão mesmo viveu durante 9 séculos após isso… (Presumivelmente, Eva também)

Deus então permite aos seres humanos fazerem tudo quanto queiram, e trilharem seu próprio caminho. A presença divina imediata sai do mundo.

Só que as coisas degringolam: em alguns séculos o mundo já está tomado por uma contínua violência: agressão física, roubo, rapto, estupro, e assim por diante.

Deus checa a situação e isso tudo pesou em seu coração, ver que sua criação tinha resultado nisso. Ele então se arrepende de ter criado o ser humano, e resolve ‘resetar’ a criação, o que implicará num dilúvio matando todos os humanos e todos os animais terrestres! “Talvez criar tudo do zero seja a melhor solução”, pensou Ele.

Mas Noé e sua família acham graça aos olhos de Deus, que resolve não mais destruir por completo os seres terrestres. Noé é instruído a construir um barco, e nele colocar exemplares de todos os animais terrestres, para que, após o reset, a terra seja novamente habitada. Agora, haverá um backup, e a criação não precisará ser refeita do zero.

Passado o dilúvio, Deus olha para os poucos humanos remanescentes (um total de 8 pessoas) e para os poucos animais terrestres de cada espécie remanescente, e provavelmente pensando também na quantidade de vidas humanas e animais perdidas no grande reset… Ele toma uma decisão marcante.

“Humanos e animais terrestres, vamos fazer uma aliança!”. Ocorre que um dos traços primordiais de Deus é que, sempre que Ele promete algo numa aliança, Ele não volta atrás mais. Então, “se é para nunca mais um reset desses ocorrer, é melhor que Eu (Deus) me comprometa por juramento com os humanos e os animais para nunca mais fazer isso com eles”.

Deus então promete nunca mais tomar uma atitude tão drástica assim. O mundo continuará indefinidamente. E para os humanos, Ele informa algumas regras básicas, como a proibição do assassinato, de modo que os humanos a partir delas possam construir seus próprios sistemas de regras mais específicos em cada sociedade.

Só que agora Deus tem um problema: “o que garante que a humanidade nunca mais vai cruzar os limites de injustiça que me fizeram anteriormente achar melhor destrui-la? Se isso acontecer de novo, será que vou conseguir honrar a aliança? Mas Eu preciso honrá-la, eu jurei!”

Algumas soluções parciais foram adotadas: reduzir a longevidade humana e espalhar os humanos pelo mundo. Seria menos arriscado acontecer aquilo novamente se tivessem mais humanos no mundo, as gerações se renovassem mais rapidamente, e as pessoas fossem mais diferentes umas das outras em diferentes regiões geográficas, inclusive falando diferentes línguas.

Mas eventualmente Deus pensa numa solução mais ousada: separar para si um povo específico e dar a esse povo um conjunto mais detalhado de instruções a respeito da vida, garantindo assim que, mesmo se todos os demais povos saíssem demais do eixo, pelo menos um povo ainda estaria nos conformes, e, assim, nunca mais haveria nenhum fundamento plausível para destruir a humanidade como um todo. “Quem sabe eu até poderia voltar a morar na terra junto com a humanidade?”, Ele pensou.

“I Saw Three Cities” [Eu Vi Três Cidades], Kay Sage, 1944.

Certo dia Deus olha para um casal sem filhos, Abraão e Sara, e simplesmente se apaixona por ambos. “Achei! Quero gerar um povo pra mim com esses dois! E por meio dessa família todas as demais famílias da terra serão abençoadas!” A partir daí começará a jornada dos patriarcas e matriarcas do povo judeu, com 3 gerações de casais escolhidos: Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Jacó e Leia e Raquel (nesse caso um trisal).

Quais são suas histórias? Basicamente, histórias de dramas humanos e de conflitos sociopolíticos. Vários casos de mulheres que querem engravidar mas não conseguem, conflitos com vizinhos por conta do acesso a poços, rivalidade entre irmãos, o medo de ser sequestrado ou morto por um tirano estrangeiro, migração por conta de fome numa região, e assim por diante.

A partir de Jacó, Leia e Raquel (e as concubinas Zilpa e Bila), finalmente teremos os contornos do povo que Deus estava querendo construir. Dos 12 filhos de Jacó virão as 12 tribos de Israel, o povo eleito.

Contudo, o caminho para isso não seria tão fácil. Ao invés de estarem na terra prometida como os Patriarcas e as Matriarcas, essa transformação dos 12 filhos de Jacó em 12 tribos ocorreu longe dela, no Egito. E ali esse povo foi forçado à servidão sob o jugo do Faraó, que via a si mesmo como um deus.

Moisés é escolhido para tirar o povo de Israel do Egito, assessorado por seus irmãos, Arão e Miriã. Após uma série de acontecimentos espetaculares, o Faraó finalmente concorda em libertar o povo e, mesmo depois mudando de ideia, o povo consegue escapar em definitivo para o deserto.

No deserto do Sinai, Deus e Moisés preparam a cena para o evento mais aguardado de todos: o dia em que Deus e o povo de Israel se casarão! Finalmente toda aquela paixão que Deus sentiu por Abraão e Sara poderá se consumar, no povo que deles se originou.

A presença divina imediata desce até o Monte Sinai e de lá Deus fala diretamente com o povo inteiro. Ele começa se apresentando “Eu sou YHWH teu deus que te tirou da terra do egito, da casa da servidão” e apresenta as primeiras linhas do pacto (os dez mandamentos). A experiência foi tão intensa que era difícil para o povo aguentá-la. Mas naquele momento algo havia mudado para sempre…

Inicialmente Deus ia apresentar o pacto todo viva voz para os israelitas, mas estes pedem que apenas Moisés suba ao monte e pegue as instruções. Moisés faz isso, e não somente Deus traz várias instruções sobre como os israelitas poderão montar sua nova sociedade dentro da terra prometida, uma sociedade baseada em preceitos de justiça social e correção individual, como também Deus está tão empolgado que apresenta a Moisés um protótipo de uma ‘tenda’ na qual o próprio Deus iria poder morar junto ao povo de Israel, já ali no deserto e para onde que quer os israelitas fossem. “Eu me casei com vocês, então precisamos morar junto, minha Tenda estará bem perto de todos!”

Um dos requisitos do pacto era uma obrigação de exclusividade. O povo de Israel se comprometeu a seguir apenas a YHWH como seu deus. Os outros povos poderiam cultuar outros deuses se quisessem, mas os israelitas deveriam cultuar apenas e tão somente YHWH (para que recebessem instruções apenas deste, e não de outros), e sem tentar representá-lo (pois a representação facilmente poderia tomar o lugar daquilo que pretendia representar).

É por conta desse ciúme de YHWH em relação ao povo de Israel que o primeiro conflito dos recém-casados ocorre. O povo pensando que Moisés tivesse morrido por estar demorando a voltar, achou por bem que Arão construísse um bezerro de ouro para ser o representante de Deus perante o povo como Moisés fora.

Se sentindo traído tão prematuramente, Deus afirma para Moisés (ainda no monte Sinai) que iria destruir o povo inteiro, e fazer de Moisés um povo novo, assim dando reset em toda aquela ideia de povo eleito. Mas ao contrário de Noé que na ocasião do reset da humanidade, não protestara contra Deus, aqui Moisés protesta e questiona Deus: “Espere, por acaso esquecestes da promessa que fizeste a Abraão, Isaque e Jacó? E qual a lógica em destruir o povo que acabastes de libertar do egito??? Por isso arrepende-te do mal que pensas em fazer!”, retorquiu Moisés.

E Deus se arrependeu do mal que pensara em fazer.

Depois que Moisés desfaz toda a confusão lá embaixo junto ao povo, destruindo a imagem do Bezerro de Ouro, sobe no Sinai novamente e ali questiona Deus novamente. “Perdoa o adultério do povo! E caso não o faças, então pode me apagar também do livro que estás escrevendo. Só quero participar se o povo estiver junto!”, afirmou Moisés. E com esse argumento Deus resolve perdoar o povo.

Contudo, Deus ainda estava na dúvida se poderia morar com o povo numa Tenda, afinal, havia o risco de Ele perder a cabeça em algum momento e destruir o povo. Talvez Moisés não estivesse por perto para segurá-lo.

Mas o povo insistiu e Moisés também, para que Deus voltasse ao plano de morar junto ao povo. A reconciliação completa entre Deus e o povo ocorre quando Moisés pede “deixe-me ver-te”, e Deus passa perante Moisés “de costas” (“porque nenhum humano suportaria me ver de frente e continuar vivo”). O que Moisés viu? Uma radiante glória que proclamava atributos de misericórdia.

Após isso Deus aceita voltar a ideia de morar com o povo, e a construção da Tenda para Deus começa a todo vapor. Quando Moisés termina de montar a Tenda, a presença imediata de Deus vem até ela, ao ponto que ninguém consegue se aproximar. Mas da Tenda, Deus chama Moisés e explica agora todas as regras que governarão aquele recinto, sob o sacerdócio de Arão e o trabalho acessório dos levitas, com regras para as oferendas, para as purificações rituais etc. Uma série de regras de saúde e segurança para se aproximar sem perigo da presença imediata de Deus. Assim, protegendo o povo dos aspectos mais complicados e perigosos do divino. O próprio Deus nunca sairia para além do quarto mais reservado da Tenda, o chamado Lugar Santíssimo onde se assentaria no espaço vazio acima da Arca da Aliança. E somente uma vez por ano, no Dia do Perdão, apenas o Sumo-Sacerdote ali poderia adentrar.

Chegando aqui, o objetivo divino pensado lá atrás já fora cumprido: 1) criar um povo específico com instruções divinas mais diretas, cujo centro estaria a justiça social, de maneira a garantir que nunca ocorreria da humanidade inteira passar demais dos limites em termos de injustiças; 2) voltar a morar junto da humanidade na terra, tendo uma Tenda para si junto ao povo eleito com quem se casara.

Mas o povo ainda precisava ser melhor preparado para o objetivo de formar essa nova sociedade autônoma. A geração que havia se tornado adulta ainda no Egito tinha muitos dos vícios da servidão. Daí os 40 anos do deserto, onde tanto houve um treinamento ostensivo no sentido de viver os preceitos dessa nova sociedade que seria inaugurada na terra prometida, como também para que a geração anterior fosse sucedida por uma nova geração que, tendo vivido já livre no deserto e nunca tendo conhecido o jugo de um tirano, teria a disposição física e mental para enfrentar todos os desafios envolvidos na inauguração de uma nova sociedade.

A Torá conclui sem que o povo tenha entrado ainda na terra prometida, mas às vésperas de nela entrar, sob uma nova liderança, a de Josué.

Enquanto isso, Moisés sobe no alto de um monte, e de lá olha para a terra prometida. Ali mesmo Moisés, já no limite da velhice, morre, sem nunca ter entrado na terra prometida. Mas ele morre satisfeito, porque em razão de sua ação o mundo havia mudado e o povo de Israel poderia enfim habitar na terra prometida. A história de amor entre Deus e Israel estava apenas começando…

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.