[194] Conto Judaico e Islâmico sobre Predestinação e Liberdade Humana

A Estrela da Redenção
4 min readApr 6, 2022

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Quando Asrael, o anjo da morte, passou certa vez por Salomão, dirigiu o olhar a um dos seus convivas. Este perguntou:

– “Quem é ele?”

– “O anjo da morte.” — respondeu Salomão.

– “Parece que ele pôs o olho em mim.” — continuou aquele. — “Por que não ordenas que o vento me leve daqui e me largue na Índia?”

Foi o que Salomão fez. Aí o anjo disse:

– “Se o fitei por tanto tempo, é porque ele me causou estranheza, uma vez que eu tinha ordens de buscar sua alma na Índia, ao passo que se encontrava contigo em Canaã.”

“Mask” [Máscara], Jackson Pollock, 1941.

Esta história foi contada por Beidhawi, intérprete do Corão. Rudolf Otto, cientista da religião, comentou assim: “Ali as pessoas podem sim, planejar, optar e recusar, mas seja lá como optarem ou atuarem, a vontade eterna de Alá não deixa de se impor, todos os dias e a toda hora, conforme estava previsto. (…) Por mais livremente que o ser humano planeje, Alá sempre já terá armado a sua contramina.”

O conto narrado acima é islâmico, mas no Talmude, previamente ao surgimento do Corão, também encontramos uma lenda/parábola/conto nesse estilo, no tratado Sukkah, 53a.

Salomão tinha 2 escribas que eram etíopes/cushitas, “Eliorefe e Aías, filhos de Sisa, secretários” (1 Reis 4:3).

Um dia Salomão viu que o Anjo da Morte estava triste e por isso indagou: “por que estás triste?” O Anjo respondeu: “Pediram-me que eu tirasse a vida desses 2 cushitas”.

Salomão então apressou-se em entregar seus escribas aos “demônios” que estavam a seu serviço (forçados por intermédio de magia a servir ao rei Salomão), para que os levassem a salvo até o distrito de Luz. Ocorre que, quando os 2 etíopes chegaram no distrito de Luz, eles faleceram.

No dia seguinte, Salomão viu que o Anjo da Morte estava feliz e por isso indagou: “por que estás feliz?” Ao que o Anjo respondeu: “Você os enviou ao lugar onde me pediram que eu tirasse a vida deles”.

Imediatamente, Salomão disse: “O pé de uma pessoa é por ela responsável; ao lugar onde se demanda sua presença, seus pés a levam.”

Na variante talmúdica mais antiga, vemos que Salomão acaba se confundindo quanto aos sentimentos do Anjo da Morte. Ele pensou que o Anjo estivesse triste por ter de tirar a vida de 2 escribas reais, mas na verdade o motivo da tristeza era que, como os 2 escribas nunca iam até o distrito de Luz (onde estariam destinados a morrer), o Anjo da Morte não conseguia cumprir sua missão. Inadvertidamente Salomão envia os escribas à morte destinada no distrito de Luz. Com isso Salomão consegue o objetivo de deixar o Anjo da Morte feliz, mas não do jeito que Salomão havia pensado.

Um ponto a se destacar é que o conceito de “demônios” aqui utilizado não é o mesmo conceito popularizado dentro do cristianismo. Os demônios representam forças hostis ao ser humano nessa vida aqui e agora, num sentido de males físicos e/ou psicológicos. Eles não ameaçam a ‘salvação’ dos seres humanos, pois isso (a salvação) nem sequer é uma questão para o judaísmo.

Dessa forma, na Agadá judaica (narrativas, lendas, etc. da tradição) não há pudor em afirmar que o rei Salomão tenha obtido controle sobre os ‘shedim’ e isso seja visto como uma atitude legítima (mas perigosa, dado o perigo que essas entidades representariam para os seres humanos) por parte de um fiel seguidor da Aliança entre Deus e Israel. “Os demônios podem ser controlados pelo poder da magia, por mezuzot… e por amuletos, e alguns rabinos alegaram que podiam entender o que diziam.” (Verbete ‘demônios’ do “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições”, Alan Unterman)

No final, Salomão reflete que aonde a pessoa ‘tiver’ de estar, seus próprios pés a levarão para lá. A liberdade humana seria exercida mesmo diante do ‘destino’: o exercício da própria autonomia (representada pelos pés da pessoa, que a locomovem segundo a sua vontade) que conduz ao cumprimento do destino predeterminado.

Também podemos ver isso como uma reflexão a respeito da ‘ironia do destino’: por mais que se tente fugir dele, ele vem ao encontro. Mais que isso, é exatamente por se fugir dele que ele acabaria sendo ocasionado.

Fenomenologicamente falando, esses contos refletem a sensação que muitas vezes sentimos de que algo ‘teve’ que acontecer. Isso não necessariamente corresponde aos mecanismos causais efetivos subjacentes aos acontecimentos (onde entraríamos na sua explicação científica), mas é uma característica presente na subjetividade humana (em muitas dessas subjetividades) ao interpretar suas experiências com o mundo. Muitas vezes nos sentimos ‘aprisionados’ no fluxo de nossa própria existência, e esses contos refletem esse tipo de sentimento. Contudo, é importante destacar que isso não representa o todo da nossa experiência. Contra o fatalismo, temos tantas outras experiências subjetivas que nos apontam um futuro aberto e mutável. E outros contos tradicionais refletirão essa outra parte de nossa fenomenologia.

Para finalizar, deixo um breve apontamento sobre a diferença entre fatalismo e determinismo, uma vez que são conceitos diferentes, mas comumente confundidos: fatalismo é a ideia de que há um resultado final que terá de acontecer de qualquer maneira, então para qualquer configuração de mundo prévio, aquilo acontecerá; já o determinismo é a ideia de que os resultados finais dependem da configuração de mundo prévia, admitindo o contrafactual de que, se a configuração de mundo prévia fosse diferente, o resultado final seria diferente. Nesse sentido, conhecidas as causas determinísticas envolvidas em certo cenário, é possível modificá-lo deterministicamente, portanto, num contexto de análise concreto, o determinismo pode ser colocado em contradição ao fatalismo.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.