[194] Conto Judaico e Islâmico sobre Predestinação e Liberdade Humana
Quando Asrael, o anjo da morte, passou certa vez por Salomão, dirigiu o olhar a um dos seus convivas. Este perguntou:
– “Quem é ele?”
– “O anjo da morte.” — respondeu Salomão.
– “Parece que ele pôs o olho em mim.” — continuou aquele. — “Por que não ordenas que o vento me leve daqui e me largue na Índia?”
Foi o que Salomão fez. Aí o anjo disse:
– “Se o fitei por tanto tempo, é porque ele me causou estranheza, uma vez que eu tinha ordens de buscar sua alma na Índia, ao passo que se encontrava contigo em Canaã.”
Esta história foi contada por Beidhawi, intérprete do Corão. Rudolf Otto, cientista da religião, comentou assim: “Ali as pessoas podem sim, planejar, optar e recusar, mas seja lá como optarem ou atuarem, a vontade eterna de Alá não deixa de se impor, todos os dias e a toda hora, conforme estava previsto. (…) Por mais livremente que o ser humano planeje, Alá sempre já terá armado a sua contramina.”
O conto narrado acima é islâmico, mas no Talmude, previamente ao surgimento do Corão, também encontramos uma lenda/parábola/conto nesse estilo, no tratado Sukkah, 53a.
Salomão tinha 2 escribas que eram etíopes/cushitas, “Eliorefe e Aías, filhos de Sisa, secretários” (1 Reis 4:3).
Um dia Salomão viu que o Anjo da Morte estava triste e por isso indagou: “por que estás triste?” O Anjo respondeu: “Pediram-me que eu tirasse a vida desses 2 cushitas”.
Salomão então apressou-se em entregar seus escribas aos “demônios” que estavam a seu serviço (forçados por intermédio de magia a servir ao rei Salomão), para que os levassem a salvo até o distrito de Luz. Ocorre que, quando os 2 etíopes chegaram no distrito de Luz, eles faleceram.
No dia seguinte, Salomão viu que o Anjo da Morte estava feliz e por isso indagou: “por que estás feliz?” Ao que o Anjo respondeu: “Você os enviou ao lugar onde me pediram que eu tirasse a vida deles”.
Imediatamente, Salomão disse: “O pé de uma pessoa é por ela responsável; ao lugar onde se demanda sua presença, seus pés a levam.”
Na variante talmúdica mais antiga, vemos que Salomão acaba se confundindo quanto aos sentimentos do Anjo da Morte. Ele pensou que o Anjo estivesse triste por ter de tirar a vida de 2 escribas reais, mas na verdade o motivo da tristeza era que, como os 2 escribas nunca iam até o distrito de Luz (onde estariam destinados a morrer), o Anjo da Morte não conseguia cumprir sua missão. Inadvertidamente Salomão envia os escribas à morte destinada no distrito de Luz. Com isso Salomão consegue o objetivo de deixar o Anjo da Morte feliz, mas não do jeito que Salomão havia pensado.
Um ponto a se destacar é que o conceito de “demônios” aqui utilizado não é o mesmo conceito popularizado dentro do cristianismo. Os demônios representam forças hostis ao ser humano nessa vida aqui e agora, num sentido de males físicos e/ou psicológicos. Eles não ameaçam a ‘salvação’ dos seres humanos, pois isso (a salvação) nem sequer é uma questão para o judaísmo.
Dessa forma, na Agadá judaica (narrativas, lendas, etc. da tradição) não há pudor em afirmar que o rei Salomão tenha obtido controle sobre os ‘shedim’ e isso seja visto como uma atitude legítima (mas perigosa, dado o perigo que essas entidades representariam para os seres humanos) por parte de um fiel seguidor da Aliança entre Deus e Israel. “Os demônios podem ser controlados pelo poder da magia, por mezuzot… e por amuletos, e alguns rabinos alegaram que podiam entender o que diziam.” (Verbete ‘demônios’ do “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições”, Alan Unterman)
No final, Salomão reflete que aonde a pessoa ‘tiver’ de estar, seus próprios pés a levarão para lá. A liberdade humana seria exercida mesmo diante do ‘destino’: o exercício da própria autonomia (representada pelos pés da pessoa, que a locomovem segundo a sua vontade) que conduz ao cumprimento do destino predeterminado.
Também podemos ver isso como uma reflexão a respeito da ‘ironia do destino’: por mais que se tente fugir dele, ele vem ao encontro. Mais que isso, é exatamente por se fugir dele que ele acabaria sendo ocasionado.
Fenomenologicamente falando, esses contos refletem a sensação que muitas vezes sentimos de que algo ‘teve’ que acontecer. Isso não necessariamente corresponde aos mecanismos causais efetivos subjacentes aos acontecimentos (onde entraríamos na sua explicação científica), mas é uma característica presente na subjetividade humana (em muitas dessas subjetividades) ao interpretar suas experiências com o mundo. Muitas vezes nos sentimos ‘aprisionados’ no fluxo de nossa própria existência, e esses contos refletem esse tipo de sentimento. Contudo, é importante destacar que isso não representa o todo da nossa experiência. Contra o fatalismo, temos tantas outras experiências subjetivas que nos apontam um futuro aberto e mutável. E outros contos tradicionais refletirão essa outra parte de nossa fenomenologia.
Para finalizar, deixo um breve apontamento sobre a diferença entre fatalismo e determinismo, uma vez que são conceitos diferentes, mas comumente confundidos: fatalismo é a ideia de que há um resultado final que terá de acontecer de qualquer maneira, então para qualquer configuração de mundo prévio, aquilo acontecerá; já o determinismo é a ideia de que os resultados finais dependem da configuração de mundo prévia, admitindo o contrafactual de que, se a configuração de mundo prévia fosse diferente, o resultado final seria diferente. Nesse sentido, conhecidas as causas determinísticas envolvidas em certo cenário, é possível modificá-lo deterministicamente, portanto, num contexto de análise concreto, o determinismo pode ser colocado em contradição ao fatalismo.
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