[195] Como ‘ser bíblico’ é o OPOSTO de ‘ser religioso’
“Os hebreus foram o povo mais intoxicado por Deus que o mundo já conheceu, mas nunca foram um povo religioso no nosso sentido da palavra. É difícil encontrar no Velho Testamento um hebreu piedoso voltado para o ‘além-mundo’. […] vivemos em um período da história na qual pessoas modernas, irreligiosas e secularizadas, estão profundamente preocupadas com as questões bíblicas por excelência: viver a vida em sua inteireza, andar abertamente dentro do mundo, transformar o futuro, encontrar um significado transcendente no aqui e agora.” (John Shelby Spong)
A atitude judaica encontrada na Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento) encontra-se em franco contraste com muito do que passa por ‘ser religioso’ dentro da nossa cultura mais geral.
A Bíblia Hebraica fala de dramas humanos e de questões sociopolíticas, todas desse mundo, no aqui e agora de nossas vidas. Em nenhum momento a questão da salvação da alma jamais é sequer considerada.
E, ao entrarmos no cristianismo, se lermos o Novo Testamento à luz da Bíblia Hebraica (ao invés do contrário como é mais comum), podemos nos surpreender em quanto daquela atitude judaica ainda pode ser encontrada nas páginas dessa coletânea acerca de Jesus e seus seguidores.
Esses pontos são muito bem ilustrados pelo livro do bispo anglicano John Shelby Spong, ‘This Hebrew Lord’ (1975). Abaixo trago algumas citações do segundo e terceiro capítulo dessa obra, em tradução livre.
“A palavra ‘religião’ e as conotações da palavra ‘religioso’ se encontram estranhamente ausentes da história bíblica. Em nenhum lugar do Evangelho eu encontro que o objetivo da missão cristã seja de tornar alguém num religioso; ao invés, seu objetivo é para fazer livre, chamar à vida, convidar a amar. Tenho ficado cada vez mais impressionado com o contraste que as palavras ‘bíblico’ e ‘religioso’ se tornaram para mim não sinônimos, mas antônimos. Repetidas vezes tenho descoberto que o significado religioso tradicional de muitas dessas palavras na herança cristã se moveu para muito longe do significado bíblico que essas palavras tinham quando primeiro entraram no vocabulário teológico, ao ponto que é impossível de evitar mal entendidos. Penso aqui em palavras tais como espírito, fé e salvação, por exemplo.”
“[…] ‘espiritual’ como nossa linguagem religiosa tradicional o tem definido [significa]: piedoso, destacado, dado à contemplação, negador da vida e extra-mundano [orientado ao ‘outro mundo’, ao ‘além’].”
“Contudo, as conotações que atribuímos a essas palavras não chegam nem perto do que espírito ou espiritual significam na narrativa bíblica. Nossas palavras em inglês ‘alma’ ou ‘espírito’ são nossas tentativas de traduzir a palavra grega ‘psiquê’ para o inglês. Em grego psiquê significa a mente ou o espírito, isto é, o aspecto não-físico do nosso ser. É a palavra da qual obtemos psicologia, psicopatia, psiquiatra, etc. Entretanto, […] por trás da palavra grega para psiquê, nós encontramos duas palavras hebraicas, nephesh e ruach; e essas palavras hebraicas não significam de forma alguma um aspecto não-físico de nosso ser. Se tentássemos traduzi-las diretamente para o inglês, seria muito óbvio que nossas palavras ‘alma’ ou ‘espírito’ são veículos muito inadequados para portar seus significados. Somente a estação intermediária da linguagem grega tem nela as conotações tradicionais que lemos dentro daquelas palavras.”
“Nephesh significa literalmente ‘fôlego’ [de respiração] — mais particularmente, o fôlego de Deus. Ruach significa literalmente ‘vento’ — o ‘vento de Deus’. O propósito primário do fôlego e do vento foi animar, fazer vital, trazer a pessoa à vida por inteiro, mente e corpo. No contexto hebreu, num contexto bíblico, ser espiritual significa ser animado, vital, vivo fisicamente, tudo isso sendo muito diferente de seu significado religioso tradicional’.
“Ser cheio do espírito, do fôlego divino, não era ser piedoso, mas sim ser vivo, ser vital. O sinal da presença do espírito foi a presença da vida. A função do espírito é trazer à vida. […] Quando o povo de Judá respondeu ao espírito de Deus [ na profecia de Ezequiel do vale dos ossos secos], o resultado não foi eles se tornarem piedosos ou religiosos, mas sim torna-los vivos. Por toda a parte onde se encontra ‘espírito’ em sentido bíblico, isso é anunciado pela presença da vida [física/material/orgânica]. Assim, biblicamente a função do espírito é fazer vital, chamar a ‘ser’, libertar, tornar-se inteiro, estabelecer comunidade com base na vida. Ser espiritual significa ser vivo. Ser cheio de espírito significa ser livre para viver. Isso não tem nada a ver com se dirigir ao não-físico, ser piedoso ou cultivar as assim chamadas ‘virtudes da alma’. Contudo, essas coisas se tornaram seu significado religioso. Eu aspiro a ser um homem espiritual no sentido bíblico. Não tenho a menor vontade de ser um homem espiritual no sentido religioso.”
“A segunda palavra que podemos considerar é a palavra ‘fé’. Fé tem um valor imenso no vocabulário da religião. Quando reverendos não conseguem pensar em mais nada para dizer em situações críticas, eles se retraem para trás da palavra fé: ‘Você apenas precisa ter fé’, eles dizem. Ter fé é acreditar mesmo quando não há evidência para apoiar essa crença. Sem ajuda da razão ou da evidência, há uma lacuna sobre a qual pulamos com essa palavrinha ‘fé’. Em nosso jargão religioso, a fé essencialmente é uma atividade da mente que tem a ver com o ato de acreditar como oposto ao de duvidar.”
“Mas a fé bíblica não é um ato da mente ou do intelecto. Se os hebreus tivessem localizado a fé em um órgão do corpo, teria sido no coração. A fé para o hebreu não era uma questão de crença, mas sim uma questão de atitude em relação à vida. Biblicamente, o homem de fé foi uma pessoa de coragem que ousou se aventurar para dentro da vida. Para a mente bíblica, Deus sempre era revelado na vida, na história. Ele sempre estava chamando o homem ao amanhã. Se uma pessoa queria encontrar Deus, ela se voltava para a vida, ela caminhava ousadamente em direção ao futuro. A capacidade de se engajar com a vida, confrontar o desconhecido, se aventurar para frente, encontrar a afirmação do seu próprio ser: isso era ter fé. Então o autor da Epístola aos Hebreus [no Novo Testamento] poderia dizer, ‘pela fé Abraão saiu de Ur dos Caldeus para formar um novo povo’. Pela fé Moisés deixou a segurança do Egito pela insegurança do deserto, confiante somente que Deus estava no deserto e que ali revelaria a si mesmo. A fé para os hebreus significava estar aberto ao Deus que atua nesse mundo e ousadamente caminhar em direção à vida para encontra-lo.”
“De novo vemos as sementes da distorção na tradução do hebraico para o grego para o inglês. Nossa palavra ‘fé’ traduz a palavra grega ‘pistis’, da qual obtemos ‘epistemologia’ (o estudo do conhecimento). Em grego isso claramente foi uma propriedade e função da mente. Foi fácil interpreter isso como ‘crença piedosa’ ou ‘opinião religiosa’. Mas por trás da palavra grega ‘pistis’ havia uma palavra hebraica, ‘emunah’, que significa a capacidade de confiar, a coragem de agir, a disposição de se comprometer. A mente bíblica acreditava que Deus fez conhecido a si mesmo na história. Isso foi chamado de ‘revelação’. Fé era a abertura corajosa para a vida, que capacitou os hebreus a discernirem a presença de Deus na história. A fé hebraica tinha espaço para a dúvida intelectual […], pois a fé não era uma atividade da mente, ao invés sendo uma atividade do ser humano por inteiro. A fé tinha mais a ver com ser do que com fazer. Uma pessoa de fé, biblicamente falando, poderia levantar da sua cama pela manhã, se preparar para engajar com a vida, abrir-se à percepção das dimensões profundas da vida, e viver na expectativa corajosa de que Deus estava presente nessa vida, chamando-o a viver e a ser. Essa fé acompanhou os hebreus através do deserto até sua terra prometida. Ela os tornou capazes de sobreviver, como uma nação, ao exílio babilônico. Ela os trouxe de volta gerações depois para reconstruir sua terra natal. Ela os capacitou a viverem sem um lar por 2.000 anos e ainda assim não perderem sua identidade. Para esse povo Deus estava na vida; para encontra-lo, é preciso viver.”
“Religiosamente ter fé é acreditar propriamente, sem dúvida. Biblicamente, ter fé é se engajar na vida com a expectativa corajosa de que quanto mais profundamente se vive, mais profundamente se experiencia o Deus revelado no viver. Isso é muito diferente. Podemos nos maravilhar pensando como muitos daqueles que acreditam serem pessoas sem fé no sentido religioso poderiam descobrir que são gigantes em fé no sentido bíblico!”
“Finalmente, nós examinamos a palavra ‘salvação’. Religiosamente, essa palavra veio a significar ‘ser levado para fora dessa vida’. […] Salvação foi definida na Idade Média como a ‘visão beatífica’; isto é, o objetivo da vida cristã era ser levado para fora e além do mundo. […] Salvação era ser liberto do mundo.”
“Quando pessoas tradicionalmente religiosas, frequentemente politicamente reacionárias, urgem seus reverendos a ‘fique com a Bíblia’ [no sentido de não entrar em questões sociopolíticas, mas se manter apenas em assuntos religiosos], torna-se óbvio para mim que elas nunca leram a Bíblia, ou pelo menos nunca entenderam o que estavam lendo, pois elas estão de fato urgindo seus reverendos a se alinhar com o livro mais revolucionário conhecido pelo homem. É curioso para pessoas bem diferentes disso como eu mesmo assistir uma congregação conservadora, tradicional assistir uma peça tradicional de Natal que sempre pensaram ser tão bonita e tão meiga. O anjo anuncia para Maria que ela conceberá o Cristo, e então Maria — usualmente uma loira amável com uma voz cadenciada — entoa o cântico de Maria, chamado ‘O Magnificat’. Ela canta acerca desse Cristo que ela gerará e de sua missão. Ele ‘derrubará os poderosos dos seus assentos’, ela canta; é uma linha que soa como um chamado à revolução! Ele ‘exaltará os humildes e os fracos’, ela continua; palavras que soam como uma sociedade sem classes. ‘Ele encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos’. Essas palavras parecem conter nada menos que uma proposta para redistribuir a riqueza.”
“Platitudes piedosas acerca do ‘outro mundo’ não são encontradas em nenhum lugar nem no teor nem na atitude da Bíblia! Esse livro, com suas páginas finas folheadas a ouro, que as pessoas acham ser uma história a respeito de salvação no outro mundo, na verdade é uma história sobre poder — poder terreno real — poder que pode mudar vidas, confrontar tradições, revolucionar os costumes. […] Salvação, biblicamente falando, não é um escape da vida, mas sim encher-se inteiramente de vida.”
“A Bíblia é um livro que ataca a idolatria em cada página, mas que define idolatria como qualquer culto que não é relativo à vida. É um livro que proclama que se você professa amar a Deus, mas não ama a seu vizinho, você é um mentiroso. Isso é uma coisa pesada bem específica! É um livro que insiste, em uma paráfrase das palavras de Amós [profeta da Bíblia Hebraica] que o verdadeiro culto é somente a justiça entre os homens sendo oferecida a Deus, e a justiça humana nada mais é do que cultuar a Deus. Para ser mais específico, nas palavras de Jesus, o teste da vida cristã que seria aplicado no momento do julgamento não é quão religioso você terá sido ou quão envolvido você tem sido em atividades da igreja, mas quão sensível você foi à necessidade humana. ‘Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver. Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.’ A Bíblia é um livro mundano, desconfortável, perturbador, não-complacente que de alguma forma as pessoas vieram a ouvir como se fosse um volume religioso, confortável, a respeito do ‘outro mundo’. A Bíblia é centrada na vida, não centrada no céu. Começa com a criação, e essa criação — incluindo a realidade física, matéria, corpos, esse mundo — é pronunciada ‘boa’. A Bíblia é orientada em direção à vida, não para distante dela. Subjacente às Escrituras, há uma atitude inescapável de alegria em relação à criação, bem como apreciação e amor pela vida.”
“A mesma atitude aparece muito claramente na história da morte de Moisés, como registrada no Livro do Deuteronômio. Moisés fora um homem de proeminência sobrepjujante na vida dessa nação hebraica. Suas realizações foram muito numerosas para exaurir. Ele tinha estabelecido esse povo, os libertado da escravidão, através do Mar Vermelho, em direção ao deserto. Ele protagonizou a formulação de um relacionamento de aliança com seu Deus. Ele foi visto como aquele que entregou a Lei e os Dez Mandamentos. Ele trouxe os hebreus para o limiar de sua terra prometida com seus sonhos de leite e mel. Mas aqui ele morre. O povo hebreu queria homenagear Moisés, por assim dizer escrever em pedra palavras apropriadas para louvá-lo. De todas as suas realizações, o que eles escolheram para dizer? Na versão King James se lê: ‘e Moisés tinha 120 anos quando ele morreu; seu olho nunca escureceu, nem sua força natural foi abatida.’ Mas isso não é exatamente o que o hebraico diz. Os hebreus amantes e apaixonados pela vida revisaram as realizações de Moisés e então destacaram o maior de todos os louvores que poderiam dizer de seu herói. Eles disseram, ‘Moisés morreu com 120 anos, e mesmo nessa idade ele foi um homem potente e viril.’ Para os hebreus, isso foi admirável para além de qualquer outra coisa.”
“A criação divina deve ser amada, o mundo deve ser habitado, a vida deve ser vivida. Salvação é fazer a vida completa e livre, sensível aos eus que nós somos, ao vizinho que amamos e ao Deus que louvamos. Nessa atitude eu encontro uma chave para o entendimento da Bíblia. Ela foca no aqui e agora, ela nos chama a tomar posição firme e abraçar o futuro por afirmar o presente. Ela insiste que Deus é encontrado na vida; mas uma vez que ele seja encontrado ali, força-nos ao reconhecimento de que Ele é mais do que vida, Ele é a Fonte transcendente da vida. Os hebreus tinham um conceito vital da história. Era a história que estava se movendo em direção a um destino eterno e final. A História era a arena na qual, e através da qual, o Deus Yahweh revelou a si mesmo para seu povo e os chamou para a vida. Por conta desse senso de história, os hebreus produziram os profetas. Esses profetas não foram preditores do futuro ou videntes da fortuna. Ao invés, os profetas eram aqueles que interpretavam a revelação divina nos eventos presentes da história. Eles foram preocupados com a vida agora, não com alguma salvação no outro mundo.”
“Salvação, na definição religiosa tradicional, significa ‘ser salvo, garantido o céu, o evento além da vida.’ Mas biblicamente, salvação significa ‘a inteireza de viver agora tanto quanto eternamente’. Eternidade tinha pouca realidade para os hebreus exceto na medida em que ela era recebida no agora de nossas vidas.”
“Os hebreus foram o povo mais intoxicado por Deus que o mundo já conheceu, mas nunca foram um povo religioso no nosso sentido da palavra. É difícil encontrar no Velho Testamento um hebreu piedoso voltado para o ‘além-mundo’. Poucos podem ser localizados na história, a possível exceção sendo os hasidim. Ao invés, os hebreus foram um povo centrado na vida, afirmador da vida, amante da vida, que louvavam o Deus da vida, criação e história. Eles encontraram alegria na vida.”
“De alguma forma em nossa história, a espiritualidade bíblica foi realocada com a espiritualidade religiosa, a fé bíblica pela fé religiosa, a salvação bíblica pela salvação religiosa, a atitude bíblica em relação à vida pela atitude religiosa em direção à vida. Não obstante, vivemos em um período da história na qual pessoas modernas, irreligiosas e secularizadas, estão profundamente preocupadas com as questões bíblicas por excelência: viver a vida em sua inteireza, andar abertamente dentro do mundo, transformar o futuro, encontrar um significado transcendente no aqui e agora.”
“Para compor o paradoxo, é minha contenção que a atitude peculiarmente moderna — mundada, não-religiosa, cientificamente orientada — é muito mais hebraica e bíblica que a mente moderna ousa imaginar.”
“Muitas são as vozes que querem que ressuscitemos o domínio espiritual por meio de respiração artificial. ‘Voltemos à Bíblia’, eles insistem. ‘De volta à religião da velha guarda’. Mas isso seria apenas como fazer cirurgia plástica em um cadáver. Uma abordagem muito mais radical é requerida. Eu acredito que o tempo tem chegado mais uma vez para introduzir os conceitos hebraicos do pensamento bíblico, para levar o establishment religioso em direção a ver seu Senhor, sua vida, sua fé, com novos olhos — olhos hebreus. Os hebreus foram um povo centrado nessa vida, não negadores da vida. Os hebreus tomaram esse mundo aqui e agora seriamente tanto quanto suas contrapartes seculares do século vinte o fazem. Os hebreus apreciaram a realidade material; eles sugeriram que quanto mais profundo e mais abertamente se vive, mais provável de se encontrar esse poder transcendente que chamamos Deus. Sua paixão foi a vida. Seu chamado não foi para fora da vida, mas para dentro dela. Esse também é um apelo moderno familiar.”
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