[143] Fundamentos de Pesquisa do Novo Testamento Cristão

A Estrela da Redenção
10 min readAug 5, 2021

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Pretendo fazer um texto aqui relativo à “primeira” teoria acerca da messianidade de Jesus que surgiu na comunidade apostólica original judeu-cristã de fala aramaica na Judéia/Galiléia após a crucificação de Jesus pelo procurador romano Pôncio Pilatos.

Contudo, percebi que seria útil antes fazer um post sobre o básico que qualquer um precisa saber antes de se engajar com a pesquisa histórico-literária em relação ao Novo Testamento cristão.

Como parte da proposta do presente blog, procuro me manter sempre bem ajustado com a pesquisa acadêmica a respeito dos temas que me proponho debater aqui.

Portanto, o objetivo do presente texto é fazer referência ao que é bem aceito no campo dos estudos históricos e literários sobre o Novo Testamento Cristão, de modo a subsidiar os textos futuros que eu escreva a respeito desse tema.

Para começar, temos de falar do material dos evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João. O consenso majoritário na pesquisa acerca do Jesus Histórico é que, para investigar a respeito do que Jesus disse e fez, a fonte primordial são os Evangelhos Sinóticos, a saber, Mateus, Marcos e Lucas. O Evangelho de João geralmente não é uma boa fonte para uma investigação histórica sobre Jesus, e seu uso nesse sentido é muito menor, para coisas bem específicas (e note: apesar de pontuais, podem ser importantes). Alguns estudiosos usam o Evangelho de Tomé (apócrifo), mas outros não o utilizam como fonte. Entre os evangelhos não-canônicos, Tomé é o mais provável de conservar tradições antigas e autônomas (em relação às dos canônicos). Em todo caso, o Evangelho de Tomé (apócrifo) enquanto uma possível fonte para o Jesus histórico se aproxima mais do Evangelho de João do que dos Evangelhos Sinóticos (que, em todo caso, são as fontes centrais).

Um detalhe importante aqui é que o peso maior é dado aos ditos e atos PÚBLICOS de Jesus apresentados nos Evangelhos Sinóticos. Para os estudiosos do Novo Testamento, várias das declarações em privado nos Evangelhos refletem muito mais ideias posteriores à morte de Jesus.

Eu pessoalmente no blog evitarei de tentar discriminar exatamente quais são os ditos públicos de Jesus que seriam autênticos ou não, porque é muito complexo definir isso com qualquer grau de precisão. Em geral quando eu falar do Jesus histórico estarei me baseando no teor geral dos feitos e ditos públicos de Jesus como apresentados nos Sinóticos — utilizando aspectos de João ou dos ditos/feitos privados de Jesus dos Sinóticos de forma pontual apenas, quando existe um motivo forte para fazê-lo.

Outro consenso majoritário na pesquisa sobre o Novo Testamento cristão é que os evangelhos não foram escritos por testemunhas oculares logo após os acontecimentos ali narrados. Ao contrário, existe toda uma tradição oral de ditos e feitos de Jesus, incluindo narrativas de sua morte e de “visões de aparição pós-morte”. Essa última categoria diz respeito a testemunhos onde algumas pessoas (entre apóstolos, mulheres seguidoras de Jesus, etc.) tinham uma visão/sonho na qual o Jesus ressuscitado apareceria diante delas.

Para a pesquisa histórica, obviamente a ressurreição de Jesus não é considerada fato histórico, mas apenas uma questão de fé. O que pode ser estabelecido historicamente é que pessoas vieram a crer que Jesus havia ressuscitado e mesmo vieram a crer que o Jesus ressuscitado tinha aparecido diante delas. Provavelmente esses relatos de aparição do Jesus ressuscitado estão numa categoria de visões em transes/sonhos/meditações/etc. como modelado na maneira como Paulo teria avistado o Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Ou seja, em termos históricos, provavelmente aqueles que assim afirmaram ter avistado Jesus após sua morte não relatam algo que viram com olhos físicos, mas sim com os “olhos da mente”. Ressalto novamente: aceitar que Jesus ressuscitou é uma questão de fé, não de história.

Voltando à escrita dos evangelhos, a tradição oral a respeito dos feitos e ditos de Jesus é chamada de tradição sinótica, onde tais ensinamentos e histórias eram transmitidas oralmente de comunidade a comunidade, com “formas” típicas (objeto de estudo da história das formas). Parte dessas histórias e ditos acabaram chegando nos Evangelhos Sinóticos, primeiro Marcos, depois Mateus e por último Lucas. Mateus e Lucas conheciam o evangelho de Marcos, e usam histórias dele. Já para dar conta do material em comum de Mateus e Lucas que não está em Marcos, os estudiosos hipotetizam que existiu uma Fonte Q, contendo apenas ditos de Jesus.

Quando essas histórias da tradição sinótica foram postas por escrito, mesmo quando elas tenham sido pegas diretamente dessas tradições orais, uma nova camada foi acrescidas a elas: a camada redacional. Então os evangelistas não apenas colocaram o que havia na tradição oral “ctrl c ctrl v”, mas reorganizaram o material em certa moldura redacional. Para um exemplo disso, veja o seguinte trecho de Marcos:

“E ajuntaram-se a ele os fariseus, e alguns dos escribas que tinham vindo de Jerusalém.
E, vendo que alguns dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar, os repreendiam.
Porque os fariseus, e todos os judeus, conservando a tradição dos antigos, não comem sem lavar as mãos muitas vezes;
E, quando voltam do mercado, se não se lavarem, não comem. E muitas outras coisas há que receberam para observar, como lavar os copos, e os jarros, e os vasos de metal e as camas.” (Marcos 7:1–4)

Aqui encontramos tanto o nível da tradição oral quanto o nível da redação escrita. Da tradição oral, já vinha esse episódio de que houve uma disputa entre Jesus e os fariseus a respeito de levar as mãos antes das refeições. O redator acrescenta uma explicação: “porque os fariseus, e todos os judeus, etc.” Ou seja, o redator fornece uma explicação para o contexto da disputa, ou tenta indicar onde e quando certa coisa aconteceu etc. às vezes mesmo impondo uma cronologia aos acontecimentos que não necessariamente corresponde à realidade. É muito importante saber distinguir entre o que é um dito de Jesus ou a simples descrição de algo feito por ele (ex. uma cura) daquilo que é a voz do redator.

Outro ponto relevante para entender em relação aos Evangelhos Sinóticos é que, apesar de Jesus ter falado em aramaico, tais evangelhos (e todos os escritos do Novo Testamento cristão) estão escritos em grego. Isso significa que ninguém tem acesso direto a nada que Jesus tenha falado, pois não temos nenhuma versão aramaica original dos ditos de Jesus. Original no sentido de que tenha sido posta por escrito em aramaico sem ser uma tradução de um texto em grego.

Portanto, os ditos de Jesus encontrados nos Evangelhos, mesmo quando/se autênticos, são no máximo TRADUÇÕES dos ditos originais, do aramaico para o grego.

Como o cristianismo é uma religião muito pautada em fé, devo esclarecer que o fato de reconstruirmos a provável história sobre Jesus e as origens da Igreja cristã não significa que estaríamos provando ou refutando o cristianismo. Isso vale mesmo para considerações como a de que Jesus provavelmente não se visse como o Messias. Isso é reconhecido por INÚMEROS estudiosos cristãos. Aqui cabe citar o teólogo Bultmann em sua obra-prima “Teologia do Novo Testamento”:

“a eventual constatação do fato de que Jesus se considerou o Messias ou o ‘Filho do Homem’ confirmaria um fato histórico, mas não demonstraria nenhum artigo de fé. Antes, o reconhecimento de Jesus como aquele no qual a palavra de Deus se nos depara de modo decisivo, quer se lhe atribua o título de ‘Messias’, ou o de ‘Filho do Homem’, que se o denomine de ‘Senhor’, é um mero ato de fé que independe da resposta à pergunta histórica, se Jesus se considerou o Messias. Essa pergunta somente pode ser respondida pelo historiador — na medida em que for possível respondê-la; e a fé como decisão pessoal não pode depender de seu trabalho.” (BULTMANN, edição em português de 2008, p. 65–66)

Quanto ao Evangelho de João, já afirmei que ele não é uma boa fonte histórica para os ditos e feitos de Jesus, nem para o pensamento da comunidade apostólica mais antiga na Judéia/Galiléia. O motivo é que o Evangelho de João é uma reinterpretação do discurso e dos feitos de Jesus sob uma ótica helenizada. Por isso, no Evangelho de João, encontramos um Jesus muito diferente daquele que encontramos nos Evangelhos Sinóticos. É como se, em João, fosse o Jesus já ressuscitado que estivesse falando antes mesmo de morrer. Aquilo que a tradição sinótica clara e expressamente entende que Jesus NUNCA falou explicitamente em vida e especialmente nunca nem chegou perto de falar algo assim em público, o evangelho de João coloca na boca de Jesus em discursos públicos e longos.

Agora falando do que aconteceu após a morte de Jesus, uma das grandes questões de pesquisa é como se passou da pregação DE Jesus (antes da crucificação) para uma pregação SOBRE Jesus (após sua crucificação). “A fé na Páscoa reformulou de tal modo a tradição pré-pascal, que a veneração pós-pascal e a recordação histórica aparecem inseparavelmente mescladas.” (THEISSEN & MERZ, p. 119)

Isso é muito importante para entender as origens da igreja apostólica original de fala aramaica, congregando os apóstolos e seguidoras de Jesus que o conheceram em vida. Essa comunidade original estava em continuidade àquela que Jesus em vida fundara, e era totalmente judaica-palestina, com residentes pela Judéia e Galiléia.

Após a morte de Jesus por volta de 30 EC, a comunidade em Jerusalém se tornou a mais importante, por congregar os apóstolos originais, as mulheres seguidoras de Jesus e a figura de Tiago o irmão de Jesus, que se tornou o cabeça da Igreja em Jerusalém. As comunidades cristãs à época (inclusive as que viriam a ser supervisionadas por Paulo) frequentavam as sinagogas, e frequentavam o Templo em Jerusalém.

Falando em Paulo, que não conheceu Jesus em vida e apenas tornou-se seguidor de Jesus muitos anos depois da morte de Jesus, Paulo terá um impacto decisivo na história cristã. Ele foi o maior missionário das primeiras décadas da igreja. Visitando as sinagogas dos judeus helenistas (de fala grega) espalhadas pelo Império Romano, ele converteu muitas pessoas à fé de que Jesus ressuscitara. Nisso se incluíam tanto judeus helenistas como gentios (não-judeus) que já tinham interesse no mundo judaico.

Como Paulo tinha de se comunicar com comunidades cristãs bem distantes, ele escreveu cartas. Isso cria um viés bem significativo nas fontes do Novo Testamento: todas as fontes mais antigas para o estudo do cristianismo antigo são compostas por cartas de Paulo, mais especificamente, as cartas autênticas. As cartas autênticas foram escritas todas antes da destruição do Templo em Jerusalém em 70 EC (que é um marcador temporal muito relevante para dividir os escritos neotestamentários) e inclusive décadas antes disso, nos anos por volta de 50 e 60 EC.

Para se ter uma ideia, o Evangelho de Marcos foi escrito alguns anos antes ou alguns anos depois de 70 EC, e os evangelhos de Mateus e Lucas são posteriores a Marco. Na prática, é apenas em torno ou após 70 EC que provavelmente foram escritos todos os demais escritos neotestamentários (incluindo as deuteropaulinas, cartas que são assinadas por Paulo, mas que a pesquisa histórica atual pensam ser cartas escritas por discípulos de Paulo após a morte deste).

Abaixo segue um esquema feito pelo professor Jonathan Matthies em seu canal do youtube acerca dessa datação provável dos escritos bíblicos:

Data provável de todos os escritos neotestamentários, por Jonathan Matthies, no vídeo “A ORIGEM DO NOVO TESTAMENTO — Professor Responde 49”.

Por outro lado, é importante perceber que, paralelo a esse fenômeno no mundo helenista fora da palestina gerado pelas cartas de Paulo, na própria palestina e em regiões ali próximas a tradição sinótica estava em pleno andamento. Mas como eu disse, isso ocorreu por via oral, sendo posto por escrito apenas muito tempo depois, e, quando foi escrito, foi posto em grego ao invés de aramaico (talvez já refletindo possíveis traduções ao grego ocorrendo depois dessas décadas de oralidade).

Em relação aos escritos do Novo Testamento cristão, no tocante ao seu relacionamento com o mundo judaico da época, podemos fazer a seguinte divisão:

  1. escritos neotestamentários em continuidade maior ao judaísmo de fala aramaica/na Judéia (e também ao judaísmo rabínico encontrado no Talmude): Evangelho de Mateus, Epístola de Tiago;
  2. escritos neotestamentários com maior influência helenista, seja judaico-helenista ou helenista não-judaica: Epístolas de Paulo, tanto autênticas quanto deuteropaulinas; Evangelho de João e epístolas de João (mesmo autor).
  3. escritos neotestamentários com forte influência de escritos apocalípticos judaicos, especialmente os ligados à tradição enoquita (1Enoque): Epístolas de Pedro; Epístola de Judas; Apocalipse (não foi escrito pelo mesmo autor do evangelho/epístolas de João).
  4. intermediários entre 1 e 2: Evangelho de Marcos; Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos (mesmo autor); Epístola aos Hebreus.

Um ponto importante para entender Jesus e o cristianismo mais antigo é que tais tendências são extensão da apocalíptica judaica, um gênero literário (e o imaginário respectivo) muito influente entre judeus tanto na palestina quanto na diáspora helenista. Na divisão acima, apesar de eu enfatizar a tradição enoquita para os livros finais do Novo Testamento, TODOS os livros do Novo Testamento tem um pé na apocalíptica judaica em grau maior ou menor.

Para alguns livros interessantes discutindo todas essas questões que eu trouxe aqui, recomendo os seguintes:

O Jesus histórico: Um manual”, Gerd Theissen.

A Busca do Jesus Histórico”, Albert Schweitzer.

À Sombra do Templo”, Oskar Skarsaune.

Jesus e o mundo do judaísmo”, Geza Vermes.

História da Tradição Sinótica”, Rudolf Bultmann.

Formas e Exigências do Novo Testamento”, Josef Schreiner e Gerhard Dautzenberg (editores).

Para vídeos, recomendo as exposições feitas pelo professor Jonathan Matthies em seu canal do youtube:

A HISTÓRIA DO CÂNON BÍBLICO — História do Cristianismo 02

A ORIGEM DO NOVO TESTAMENTO — Professor Responde 49

COMO SABEMOS QUE JESUS EXISTIU — Jesus Histórico 01

A HISTÓRIA DOS JUDEU-CRISTÃOS DA ANTIGUIDADE — História do Cristianismo 14

EM BUSCA DO JESUS HISTÓRICO & O CRISTIANISMO PRÉ-NICENO — Professor Responde 08

O NOVO TESTAMENTO FOI ADULTERADO? — História do Cristianismo 05

AS CONTRADIÇÕES DO NOVO TESTAMENTO — História do Cristianismo 07

A ORIGEM DO EVANGELHO DE MARCOS — História do Cristianismo 08

AS ESTRUTURAS DO EVANGELHO DE MARCOS — História do Cristianismo 09

A ORIGEM DO EVANGELHO DE MATEUS — História do Cristianismo 11

JESUS REALMENTE EXISTIU? — Professor Responde 22

O PROBLEMA DO TESTIMONIUM FLAVIANUM — Jesus Histórico 02

A PRIMEIRA IGREJA DO MUNDO | JUDEU-CRISTÃOS — Prosa Crítica 3

GENTIO-CRISTÃOS | PAULO vs ATOS — Prosa Crítica 3 (p4)

Espero que com isso os leitores possam entender um pouco mais a respeito dos fundamentos da pesquisa em Novo Testamento, sob uma perspectiva acadêmica.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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