[186] Alfabetização Religiosa: a solução para o mal-estar da religião em nosso tempo
“O homem sagaz encobre o conhecimento, mas o coração dos tolos proclama aos berros a tolice.” (Provérbios 12:23)
“Um homem sagaz esconde o que sabe até surgir o momento de revelá-lo. Um tolo, no entanto, berra tolices assim que elas entram em sua mente. Daí a expressão ‘o coração dos tolos berra’, pois o coração deles é sua boca.” (Ibn Nachmiash para Provérbios 12:23)
Somos testemunhas de um grande mal-estar da religião em nosso tempo. O fundamentalismo religioso cresce a olhos vistos. Não somente em números de adeptos, mas pela maneira como conquistou nosso imaginário da religião, inclusive o de pessoas que são abertamente hostis ao crescimento desses movimentos, por mais irônico que isso possa parecer.
De fato, nossa cultura entregou de bandeja a religião para os fundamentalistas e fanáticos, na medida em que se torna cada vez mais comum tratar tais elementos como se fossem “entendidos” a respeito da tradição religiosa a que pertencem ou dos textos sagrados que utilizam. Inclusive muitos dos críticos do fundamentalismo religioso compram a versão fundamentalista como se fosse a leitura correta da tradição religiosa ou texto sagrado respectivo!
Em um dos primeiros posts desse blog, o “[12] Razões TRADICIONAIS para pautas PROGRESSISTAS?”, comentei como na verdade a leitura fundamentalista da religião passa longe do que era realmente tradicional. A leitura fundamentalista se pretende tradicionalista e literalista, mas comumente vai na contramão do que realmente era tradicional ou escriturístico. Por outro lado, grande parte da crítica racional contra o fanatismo religioso foi longe demais ao abandonar e mesmo desprezar as tradições religiosas. Subestimaram a inteligência da fé e seu poder.
Com isso, a fuga dos cérebros no terreno religioso tornou o mundo num lugar pior do que ele poderia ser: deixou o pensamento religioso para fundamentalistas e charlatões, que berram sua tolice veementemente. Tolice esta tomada como uma representação acurada da religião inclusive pelos próprios críticos racionais do fanatismo que, assim, demonstram também sua ignorância. Então, tanto os fundamentalistas como muitos de seus críticos são exemplos de uma ignorância que se pretende saber do que está falando.
Qual a solução para esse estado de coisas? Bem, provavelmente o leitor atento daquele meu texto, e mesmo de qualquer outro texto do meu blog, provavelmente pode deduzir qual seja, uma vez que se trata do próprio fio da meada que perpassa minha escrita aqui. Mas chegou a hora de eu mesmo torná-la explícita.
Obviamente que para qualquer problema social complexo não existe uma única solução e longe de mim pensar que tenho a última palavra nesse assunto. Mas eu penso que se grande parte do problema está na ignorância a respeito do que as tradições religiosas e textos sagrados realmente estabeleceram ao longo do tempo, então uma grande parte da solução está na promoção da Alfabetização Religiosa, o que em língua inglesa é conhecido como Religious Literacy.
Basicamente, precisamos devolver — ao nível da cultura geral — o status de “entendido em religião” para as mãos de quem realmente entende e estuda os textos sagrados e as tradições religiosas de forma séria, o que no contexto do mundo moderno passa pelo rigor acadêmico. Ou seja, legitimar o verdadeiro conhecimento religioso, aquele produzido por quem realmente entende do assunto, tanto em fontes tradicionais (realmente tradicionais) como em fontes acadêmicas (estas últimas inclusive muito úteis para esclarecer quais são as primeiras).
A todo momento e sempre que possível, precisamos enfatizar que a leitura fundamentalista se trata de uma versão pobre, cheia de erros, ignorante etc. da própria tradição religiosa que tal fundamentalismo pretende representar. Precisamos repetir à exaustão que os promotores desse tipo de leitura são IGNORANTES. E mais do que isso: IGNORANTES DA PERSPECTIVA DA PRÓPRIA RELIGIÃO EM QUE ESTÃO INSERIDOS.
Para que sejamos capazes de fazê-lo, temos de ser realmente LITERATOS em matéria de religião, isto é, propriamente alfabetizados e instruídos a respeito da religião em geral ou de tradições religiosas específicas.
E tal conhecimento — muitas vezes escondido nas prateleiras de algumas livrarias, inclusive de livrarias confessionais (católicas, luteranas, judias, etc.) — precisa ser trazido à luz do dia para o grande público.
Meu blog é um exemplo de iniciativa nesse sentido, focado na Bíblia Hebraica. O que eu faço aqui nada mais é do que promover a alfabetização religiosa — iniciante, intermediária e avançada — de você, você mesmo que está aí do outro lado, o meu leitor. E espero que você passe isso adiante quando puder, de modo a contribuir para essa causa, de pensar as tradições religiosas e os textos sagrados de forma séria: academicamente rigorosa, com toda a honestidade intelectual e raciocínio crítico que isso requer, mas também ‘reverente’ na medida certa, por reconhecer o peso e o valor dessas tradições e textos em nossas vidas.
E note: nada disso depende de você ter uma religião específica ou de não seguir nenhuma. A questão não é você crer ou descrer, mas sim você ENTENDER e COMPREENDER o que está falando, caso queira realmente entrar nesse tipo de tópico. Até porque o maior problema nem é simplesmente não saber de algo — não temos como nos aprofundar em tudo — mas sim não saber de algo e ainda assim pretender que se sabe, ou não saber de algo e ainda assim querer contradizer quem realmente se especializou naquele saber.
“Até o tolo, quando se cala, é reputado por sábio; e o que cerra os seus lábios é tido por entendido.” (Provérbios 17:28)
Portanto, uma grande parte do problema da religião em nosso tempo é uma questão educacional e cultural. Educacional, na medida em que o saber religioso efetivo precisa ser tornado mais acessível para a população em geral. Cultural, na medida em que é necessário disputar o que é um ‘entendido em religião’ dentro do atual imaginário cultural.
Muitas pessoas dispersas já estão fazendo esse tipo de trabalho (ou algo nessa direção) no contexto de discussões específicas, incluindo uma iniciativa da Universidade de Harvard dedicada a essa empreitada. Talvez no futuro esses esforços poderiam ser representados de forma pública mais ostensiva em algum tipo de organização, algo como uma “Sociedade para a Promoção da Alfabetização Religiosa” ou “Instituto Instrução Religiosa”, cujo objetivo fosse promover uma compreensão mais refinada das mais diversas tradições religiosas e de seus textos sagrados, mas como bem sabemos esse tipo de colaboração organizacional em larga escala é algo difícil de gerenciar.
Fora isso, penso que o engajamento pessoal com alguma tradição religiosa já existente por parte de pessoas ‘alfabetizadas’ (no sentido de alfabetização religiosa) também é de grande valor, mas esse é um passo extra que é de natureza muito pessoal. Aqui no blog não escondo meu engajamento com o judaísmo (minha tradição religiosa específica), mas em nenhum momento busco ‘converter’ ninguém ao judaísmo. Meu objetivo não é apologético nem proselitista, mas sim de esclarecimento e conscientização. Só que quando você realmente entende religião a sério, é bem possível que você acabe (re)descobrindo seu valor prático e peso existencial em todo o seu fascínio.
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