[198] NÃO EXISTE inferno no ‘Velho’ Testamento [Bíblia Hebraica]

A Estrela da Redenção
5 min readMay 2, 2022

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A Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento, não fala de inferno. Sim, é isso mesmo que você leu. Esse conceito NÃO APARECE na Bíblia Hebraica.

De uma perspectiva judaica, mas também de uma perspectiva acadêmica puramente imparcial (e de algumas cristãs minoritárias, como a dos adventistas do sétimo dia), isso É SIMPLESMENTE TÃO ÓBVIO que nem precisaria dizer. Na verdade, qualquer um que lesse os textos originais sem pressupor essa ideia chegaria na mesma conclusão.

Mas aí lembrei que, infelizmente, a esmagadora maioria das pessoas no Ocidente acha que existe essa ideia do inferno na Bíblia Hebraica… Um dos maiores hoaxes da história da literatura humana.

“Night” [Noite], Max Beckmann, 1918.

Eu já comentei um pouco sobre isso neste blog no post [27] (ver também [28] e [29]). Em todo caso, isso não é controverso. É UM FATO bem conhecido no estudo acadêmico da Bíblia e que, bem, sempre foi conhecido pelos judeus ao longo desses mais de 3.000 anos de história.

Repito: essa inexistência do inferno na Bíblia Hebraica NÃO é uma opinião moderna. É a opinião TRADICIONAL sobre o assunto. A mais antiga de todas em se tratando de Bíblia. E isso vale para judeus de quaisquer ramos e tendências.

A preocupação da Bíblia Hebraica é com ESTA VIDA, o aqui e agora. O que acontece depois é irrelevante. De fato, do ponto de vista original do “Velho” Testamento, todos teriam o mesmo destino após a morte: repousarão na ‘sepultura’, entendida como parte do ‘sheol’, o subterrâneo terrestre no qual os cadáveres são enterrados e onde apenas meras sombras subsistem até a decomposição corporal completa (completando assim nosso retorno ao ‘pó’ do qual fomos criados). Todos estarão como que ‘dormindo’, nessa concepção hebraica mais antiga…

Agora, isso não impediu a Tradição Judaica de discutir possibilidades mais substantivas para o que acontece após a morte. A concepção mais comum é a ideia da ‘porção no mundo vindouro’, com a ressurreição dos mortos. Algumas pessoas não terão porção no mundo vindouro, porque nem ressuscitarão (e essa seria sua punição).

Outra concepção é a ideia de elevação da alma após a morte, seja passando por uma purificação no guehinom (uma espécie de purgatório) seja aguardando o mundo vindouro no Gan Éden (o jardim do Éden celestial), metáforas da volta da alma para Deus que a deu. Sendo que a purificação no guehinom pode ter 2 resultados: a aniquilação da alma ou sua elevação para o Gan Éden. Por óbvio, no caso da aniquilação, a pessoa não receberá uma porção no mundo vindouro; no caso da elevação, a pessoa receberá uma porção no mundo vindouro.

E como terceira concepção, temos também a ideia de reencarnação dentro da Kaballah, que, por conta de suas complexidades, não irei entrar aqui. Essa concepção não mudaria o ponto que farei agora de qualquer forma.

Então, do ponto de vista dessas outras perspectivas sobre vida após a morte na Tradição Judaica, a questão sobre os ‘pecadores’ poderia ser algo como: talvez a alma da pessoa em questão tivesse de passar por um tempo no Guehinom (no máximo 12 meses) antes de ser elevada para o Gan Éden e aí ficaria esperando até que a pessoa receba a sua porção no mundo vindouro (com a ressurreição corporal). Na pior das hipóteses, a alma da referida pessoa seria destruída no processo de purificação no Guehinom e aí a pessoa não teria uma porção no mundo vindouro. Mas nada disso tem a ver com algum tipo de inferno eterno.

Agora, essa questão não é muito relevante para o judaísmo e não é naturalmente formulada no contexto judaico, mesmo na perspectiva da própria Tradição que eu expus. A perspectiva judaica herda da Bíblia Hebraica uma ênfase nesta vida aqui. O que acontece depois não é muito relevante, é uma questão que cabe a Deus. A nós cabe determinar como viver aqui, não o que ocorre além.

Além disso, a Tradição Judaica, quando endossou essa ideia de ressurreição, pretendia enfatizar seu aspecto positivo, não negativo: “Todo Israel tem seu quinhão no Mundo Vindouro, como foi dito: Seu povo é todo justo; eles herdarão a terra para sempre; eles são os ramos do meu plantio.” (Pirkei Avot 2) A perda dessa porção é a exceção, não a regra.

Isso me lembra outro ponto que você precisa ter em mente ao ler a Bíblia Hebraica. Quando nela aparecem ‘punições’ divinas, isso NÃO SIGNIFICA CONDENAÇÃO NUM SENTIDO TEOLÓGICO. As punições que aparecem ali têm caráter mundano e de maneira geral se voltam para comunidades inteiras. Infelizmente, percebo ser um erro comum as pessoas lerem aquelas punições entendendo-as de uma forma exagerada, porque elas leem como se fosse uma ‘condenação metafísica’ junto.

Então, dialogando novamente com a Tradição Judaica, é tranquilo da perspectiva judaica considerar que mesmo pessoas punidas ou puníveis inclusive com a morte na Torá terão acesso ao mundo vindouro.

Para usar um exemplo do livro de Números: a geração inteira do deserto que não pôde entrar na terra prometida terá uma porção no mundo vindouro. Os 10 espias, que foram culpados pelo resto do povo não poder entrar na terra prometida, também terão. Nadabi e Abihu, os 2 sacerdotes que trouxeram fogo estranho ao santuário divino, também. Apenas o deliberada e maliciosamente rebelde Corach não terá.

Esses ‘pecadores’ poderão ter uma porção no mundo vindouro porque seus pecados não foram feitos maliciosamente, mas por fraqueza, ou erro de julgamento, etc.

Isso sem contar a possibilidade de expiação dos pecados por meio da teshuvá (arrependimento com reparação do mal feito), da tefilá (reza meditativa) e da tzedaká (‘caridade’/justiça social/justiça distributiva). E expiação via as próprias aflições sofridas nesta vida (o extremo da qual sendo a própria morte, ‘fora de hora’).

Além disso, Deus é bondoso e misericordioso. Por sua graça, adia a punição (muitas vezes por dezenas ou centenas de anos), a minora, deixa de aplicá-la, transforma a punição em bênção e assim por diante. E por sua justiça, Ele pesa na balança o caráter da pessoa, suas motivações, o que a levou a ter certo comportamento, circunstâncias atenuantes, o ‘conjunto da obra’ de seus atos e assim por diante.

Sim, tudo isso é ‘Velho’ Testamento!

Sim, ‘Velho’ Testamento, que é tão erroneamente julgado como retratando um Deus ‘cruel’ e ‘punitivo’. Esse julgamento é uma leitura totalmente enviesada dos textos (e mesmo reprodutora de antissemitismo).

E isso é judaísmo!

Sim, judaísmo, que é tão erroneamente julgado como uma religião legalista e focada no rigor da punição divina… Novamente, nada mais longe da verdade.

Portanto, da perspectiva da Bíblia Hebraica e do judaísmo, essa questão de alguém ir para o inferno NÃO FAZ SENTIDO. Simples assim.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.