[87] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 34- Diferença entre Conservadores e Ortodoxos Modernos

A Estrela da Redenção
5 min readDec 18, 2020

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Uma questão pode ter intrigado o leitor na minha exposição sobre aqueles ortodoxos que defendem uma postura mais inclusiva aos homossexuais (incluindo o próprio casamento homossexual judaico) e a posição oficial do movimento conservador nesse sentido. Qual é exatamente a diferença entre eles se ambos visam uma perspectiva de Halacha (Jurisprudência Judaica)?

Em primeiro lugar, é preciso entender que os ortodoxos a que me referi são parte de um movimento ortodoxo específico, a chamada “Ortodoxia Moderna”, que visa adaptar a vida observante judaica com base na Halacha clássica de costume askhenazi para a vida contemporânea integrada à sociedade mais ampla não-judaica, que hoje em dia é uma sociedade secular (apesar de claramente ainda ter traços cristãos como outrora teve com maior intensidade).

Note que, desse ponto de vista, todos os judeus sefarditas são próximos dos ‘ortodoxos modernos’, porque a tradição sefardita de Halacha clássica se desenvolveu num cenário onde os judeus eram integrados à sociedade mais ampla, por viverem em terras islâmicas.

Já o movimento conservador visa uma atualização explícita da Halacha, continuando a tradição dos decisores clássicos em tempos contemporâneos. Ou seja, a questão pro conservador não é a de adaptar a Halacha clássica aos desafios da integração contemporânea, mas dar continuidade ao procedimento rabínico que a gerou e que pode modificá-la.

Assim o movimento conservador/masorti gera uma Halacha ‘neoclássica’ que é composta da Halacha clássica + atualizações/modificações halachicas introduzidas por um procedimento formal de discussão dos precedentes rabínicos.

Em segundo lugar, nem todos os ortodoxos modernos defendem tal posição mais inclusiva sobre a questão da homossexualidade. De fato, a maioria deles não a defende, mas adere ainda ao posicionamento clássico (mesmo que com maior sensibilidade e evitando preconceitos). Isso difere dos conservadores, uma vez que sua posição oficial é uma posição mais inclusiva sobre a questão da homossexualidade (enquanto comunidades locais possam aderir à posição ortodoxa convencional).

Em terceiro lugar, uma das diferenças salta à vista quando comparamos o post sobre casamento homossexual judaico por ortodoxos modernos e a Responsa do Comitê de Leis e Padrões Judaicos pelos conservadores/masorti. Aquilo que a Responsa chamou de ‘a questão da viabilidade’ é a maneira com que muitos ortodoxos modernos lidam com a questão da homossexualidade.

Então, para um ortodoxo moderno inclusivo, a opção é defender que, em tal e tal caso que eu como rabino acompanhei, era inviável que essas pessoas tivessem uma vida sexual não-homossexual para o resto de suas vidas. Desse modo, a obrigação da Halacha clássica de se abster de relações homossexuais fica suspensa nesse caso específico.

Já a posição conservadora se pauta no princípio da dignidade humana, o que possibilitou uma reestruturação da Lei Judaica de modo a modificar o quadro de humilhação e exclusão sociais a que os membros LGBT da comunidade judaica estavam submetidos pelo regramento clássico.

Curiosamente a posição que vimos do R. Greenberg, um ortodoxo moderno, consegue ser mais inclusiva que a do movimento conservador. Mas o caso dele é uma exceção, motivada por uma releitura do próprio sentido literal do texto bíblico que a maioria (seja ortodoxa moderna ou conservadora) rejeita.

Quarto, uma diferença ainda mais profunda existe entre ambos os movimentos halachicos. A pesquisadora Ronit Irshai apresenta isso em seu artigo “Homosexuality and the “Aqedah Theology”: A comparison of modern orthodoxy and the conservative movement” (2018) no Journal of Jewish Ethics.

Segundo Irshai, a diferença reside no fato de que, apesar das fronteiras entre algumas posições da Ortodoxia Moderna e dos conservadores não serem tão claras, existe uma diferença clara na relação dos valores morais com a Halacha:

  1. Para o ortodoxo moderno, se Deus ordena certas coisas que parecem afrontar conceitos morais contemporâneos, espera-se que os indivíduos sacrifiquem ou ‘restrinjam’ suas inclinações, incluindo seus valores morais, para cumprir com o preceito divino.
  2. Para o conservador, isso não é o caso: não é esperado do indivíduo que sacrifique seus valores morais e sua consciência individual em prol da Halacha (que é uma jurisprudência comunitária).

A questão, assim, diz respeito à maior ou menor proximidade desses movimentos com a chamada “Teologia da Akedá” formulada pelo rabino Joseph Dov Soloveitchik e pelo acadêmico Yeshayahu Leibowitz: a moralidade tem uma posição autônoma em relação aos preceitos sagrados da Torá, mas, mesmo se fica claro que algum mandamento divino não é moral, nós ainda somos obrigados a obedecer tal mandamento (mas tentando minimizar o conflito entre o mandamento e a moralidade individual). Ou seja, algumas normas religiosas podem violar padrões morais independentes.

“L’Ange du foyer ou Le Triomphe du surréalisme” [O Anjo do Lar, ou o Triunfo do Surrealismo], Max Ernst, 1937.

A Teologia da Akedá é disseminada entre muitos dos ortodoxos modernos, enquanto o movimento conservador a rejeita expressamente, incluindo os conservadores mais tradicionalistas (que expressam convicções mais similares à ortodoxia).

A meu ver, isso ajuda a explicar porque os Ortodoxos Modernos inclusivos ainda são uma minoria na Ortodoxia Moderna, enquanto o movimento Conservador de fato conseguiu dar o passo de revisar o entendimento da Halacha na questão da homossexualidade.

Irshai chega a citar um livro do Rabino Dorff (um dos que escreveram as Responsum que analisei nos posts anteriores) chamado “For the Love of God and People” (2007), no qual ele rejeita decisivamente a Teologia da Akedá.

Para R. Dorff, a Halacha é uma expressão de demandas morais. Como seres humanos e especialmente como judeus, somos chamados a imitar os atributos morais de Deus. Dessa forma, a base teológica da Halacha reside em tal emulação, que se torna possível quando implementamos a Halacha através do prisma de parâmetros morais. A Lei Judaica deve ser interpretada e moldada por considerações morais, ao invés de sacrificá-las em caso de conflito.

Assim, nessa visão mais comum entre os conservadores, o mandamento divino não conflita com o imperativo moral, é apenas que nem sempre a Halacha alcançou o imperativo moral em questão. Por exemplo, no caso da homossexualidade, um dos motivos para isso é que os rabinos do passado não tinham conhecimento de certos fatos empíricos relativos à orientação sexual homoafetiva e às consequências de tentar suprimir sua expressão.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.