[197] Deus NÃO pode perdoar a maldade de uma pessoa contra outra

A Estrela da Redenção
7 min readMay 1, 2022

--

Um princípio importante encontrado na Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como “Velho” Testamento) e na tradição judaica é a de que Deus NÃO pode perdoar a maldade que uma pessoa comete contra outra.

Algumas pessoas podem ficar perplexas diante dessa constatação (especialmente se oriundas de uma formação cristã), mas se pararmos para refletir com calma na questão, por que Deus poderia perdoar tais coisas?

Vamos supor que, você, o leitor saiba que a pessoa X cometeu uma maldade contra a pessoa Y. Talvez um ato de violência, de expropriação, de roubo, de difamação, de engano… Agora, você poderia perdoar a pessoa X pelo que ela cometeu contra a pessoa Y? Não né? Nós pensaríamos que, se a pessoa X quer obter desculpas, ela deveria pedir desculpas à pessoa Y, e mais do que isso, reparar de alguma forma o mal feito, por exemplo, indenizando-a ou sujeitando-se a uma punição pelo ato cometido. Apenas assim uma reconciliação completa poderia ocorrer entre os 2 indivíduos. Você, ou qualquer outra pessoa fora os envolvidos, não poderiam ‘consertar’ aquilo que foi quebrado quando a maldade em questão foi cometida por X contra Y.

Agora, a grande questão é que Deus, enquanto um personagem do texto bíblico e da tradição oral judaica, também é nesse sentido um ‘terceiro’ em relação às pessoas X e Y. Se você não pode perdoar o que X fez contra Y, Deus também não pode perdoar! Porque o motivo de você não poder perdoar X é justamente que você NÃO é Y, a pessoa prejudicada. E nesse sentido Deus também não é Y, logo, não pode perdoar X.*

Isso leva a algumas consequências interessantes.

A primeira é que, para as Escrituras Hebraicas e a tradição judaica, as transgressões de um ser humano contra outro são mais graves que as transgressões cometidas contra Deus.

O motivo é que Deus é comparável a uma pessoa que perdoa facilmente as ofensas cometidas contra si. A disposição divina é muito mais voltada ao perdão do que ao castigo. Segundo o texto bíblico, Deus demora a irar-se, mas é rápido em arrepender-se do mal (da ‘punição’ pretendida). Ou seja, lento em trazer retaliação, mas rápido em fazê-la cessar.

“Mas isso desagradou extremamente a Jonas, e ele ficou irado.
E orou ao Senhor, e disse: Ah! Senhor! Não foi esta minha palavra, estando ainda na minha terra? Por isso é que me preveni, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus compassivo e misericordioso, longânimo e grande em benignidade, e que te arrependes do mal.” (Jonas 4:1,2)

“O Senhor é tardio em irar-se, mas grande em poder, e ao culpado não tem por inocente” (Naum 1:3)

“O Senhor é compassivo e misericordioso, mui paciente e cheio de amor.
Não acusa sem cessar nem fica ressentido para sempre;
não nos trata conforme os nossos pecados nem nos retribui conforme as nossas iniqüidades.” (Salmos 103:8–10)

Por outro lado, os textos bíblicos também enfatizam o quanto Deus se importa com o sofrimento dos injustiçados, e como Ele (mesmo que demore) trará retaliação se os humanos eles mesmos não conseguirem resolver tais injustiças e mal feitos.

“O Senhor faz justiça e defende a causa dos oprimidos.” (Salmos 103:6)

Uma aplicação interessante disso está no contraste entre as histórias do dilúvio de Noé e da Torre de Babel. Na história de Noé, os humanos estavam cometendo maldades uns contra os outros (roubo, rapto, violência, estupro), e por isso Deus chega a se arrepender da criação dos seres humanos, trazendo uma quase extinção da espécie humana. Por outro lado, na história da Torre de Babel, os humanos estavam apenas desafiando Deus a princípio. Então, a punição foi muito mais branda: confundir as línguas para espalhá-los ao longo da terra, fazendo assim encerrar a construção da Torre.

Em segundo lugar, a incumbência primária de corrigir os males de um humano contra outra está nas mãos dos próprios seres humanos, de seus sistemas sociais de reconciliação, de suas inclinações pessoais no que diz respeito ao perdão. Para o bem ou para o mal, isso está em nossas mãos.

Daí a necessidade de criar mecanismos e práticas de reparação, de repreensão, de retaliação, e assim por diante. Só que isso significa também que há um grau considerável de relatividade antropológica a respeito de como promover a dita reconciliação a nível individual e social. Não existe uma fórmula única válida para todos os tempos e lugares.

“Anarchic Energy” [Energia Anárquica], Conroy Maddox, 1939.

Um exemplo particularmente cru que o texto bíblico oferece no sentido dessa relatividade antropológica encontra-se em 2Samuel 21, onde a execução dos descendentes do Rei Saul (com exceção de Mefibosete) foi o preço cobrado pelos Gibeonitas para serem apaziguados por Saul (que já havia morrido) ter matado vários dos Gibeonitas. Então, o Rei Davi aceita entregar os descendentes de Saul (com exceção de Mefibosete) para que os Gibeonitas tenham sua vingança e assim ‘perdoem’ os israelitas pelo mal que Saul havia feito durante seu reinado. Para a tradição judaica oral, Davi teria tentado negociar uma indenização monetária, uma vez que a Lei Judaica proíbe que os filhos e netos de alguém sejam punidos pelos crimes de seus pais, contudo, os Gibeonitas não teriam aceitado uma resolução ‘pacífica’. Obviamente não devemos tomar esse texto como uma recomendação prática do que fazer em situações assim, mas ele chama nossa atenção de como esses critérios variam ao longo do tempo e do lugar (sem negar que, sim, existam formas melhores e piores de resolver tais questões).

Um terceiro aspecto é que a Bíblia Hebraica assume que talvez nem tudo possa ser reparado ou consertado. O que se pode buscar é que haja mais conserto do que quebra, que haja mais reparação do que mal feito, contudo, não há uma equação exata onde todo o mal que acontece é reparado ou que todos saíam reconciliados.

Na tradição judaica oral posterior, existiram tentativas de trazer tal equação por intermédio da visão de que toda aflição pressupõe algum pecado ou trazendo noções relativas ao mundo vindouro (com a ressurreição dos mortos) e ao gehinom (uma espécie de aflição transitória pós-morte, para seja purificar ou aniquilar o transgressor). Contudo, a Bíblia Hebraica em si é mais circunspecta porque nela não há um pós-morte, tudo ocorre aqui, e é no decurso de uma história puramente mundana que as coisas são quebradas e consertadas num ciclo contínuo (veja posts [27]-[28]-[29]-[92]). É em razão disso que, para o judaísmo, a questão do pós-morte (enquanto não seja uma discussão inexistente, como já comentado) não tem a centralidade que possui para outras tradições religiosas.

Além disso, em outro braço da tradição oral judaica, há a noção de que Deus sofre junto com a humanidade, que o mal decorre de uma incapacidade divina em pôr fim ao mesmo, e que a humanidade (com especial destaque ao povo judeu) colabora com a divindade para trazer um fim ao mal no decurso da história, de maneira a alcançar a redenção dos seres humanos em relação a todos os males (como pobreza, crime, violência, guerra, etc.), o que significa também a redenção do próprio Deus!

(Sobre esses aspectos da tradição judaica, consulte a brilhante revisão feita por R. Abraham Joschua Heschel em “The Heavenly Torah: as refracted through the Generations”)

Um quarto ponto é que, sem nem Deus pode perdoar o mal que uma pessoa comete contra outra, então nós também não devemos nos sentir obrigados a perdoar tais males. Aqui me refiro ao ‘perdoar’ no sentido de ficarmos ok com algo que uma pessoa fez contra outra. Por exemplo, se alguém faz mal a um amigo seu, há um sentido em que é possível dizer que você ‘perdoa’ o que esse alguém fez, no sentido de não se indignar com isso. Sendo condizente com o texto bíblico, o fato da pessoa ter se arrependido do que fez contra outra (ou ter modificado seu comportamento) não é base suficiente para que a perdoemos ou que dela não exijamos reparação ou punição. Se foi um ato contra Deus, sim, há base, uma vez que pelo simples fato da pessoa modificar seu comportamento (ou se arrepender), Deus já a perdoou. Esse é um pecado cuja incumbência de perdoar reside em Deus, e Deus é muito perdoador. Contudo, contra outro ser humano, temos de recorrer a critérios humanos (inclusive do que pode ser razoavelmente esperado em termos de sentimentos humanos), e isso envolve reparação, repreensão, etc. isto é, a prática da justiça.

Por fim, note que, para a Bíblia Hebraica e para a tradição judaica oral, a questão a respeito do perdão, da reconciliação, etc. não é uma questão primordialmente a respeito do destino pós-morte, mas sim dessa vida aqui e agora. É por isso que questões como ‘serei eu salvo se Deus não perdoar esse meu pecado?’ não são questões bíblicas nem judaicas. A questão bíblica e judaica a respeito do perdão e da reconciliação diz respeito a como nós podemos consertar um mundo quebrado pela discórdia entre os seres humanos, de como construir uma comunidade humana que corrija esses problemas, de como agir individualmente em face disso tudo.

“Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência.” (Deuteronômio 30:19)

*Aqui deixando de lado questões filosóficas a respeito do panenteísmo, pois não afetam o ponto em questão. Mesmo que dentro da concepção panenteísta (ou panteísta) também seja correto afirmar que em certo sentido Deus seja Y (e seja X também!), continua válido que é apenas Y que teria legitimidade de perdoar X. Além disso, também nessa concepção ainda se mantém que em certo sentido Deus não seja Y, na medida em que a Divindade é/transcende/funda a Totalidade das coisas, e Y é apenas uma parte dessa Totalidade. Para mais detalhes sobre o panenteísmo, veja os posts [108]-[177]-[178]-[179].

Lista com TODOS os posts do blog (links)

Post Anterior [196] Satã é ALIADO de Deus no ‘Velho’ Testamento [Bíblia Hebraica]

--

--

A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.