[96] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 43- Malakoi seriam homossexuais? (Paulo)

A Estrela da Redenção
9 min readMar 11, 2021

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Como vimos nos últimos posts, a referência mais significativa que Paulo fez à questão homossexual (do que hoje entenderíamos por essa categoria) encontra-se em duas listas, uma em 1Coríntios e a outra em 1Timóteo:

“Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos [pornoi], nem os idólatras, nem os adúlteros [moichoi], nem malakoi, nem arsenokoitai, nem ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.” (1 Coríntios 6:9,10)

“Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os devassos [pornoi], para arsenokoitai, para os roubadores de homem [andrapodistai], para os mentirosos, para os perjuradores, e para o que for contrário à sã doutrina.” (1 Timóteo 1:9,10)

Dessa vez, deixei as palavras gregas referentes sem tradução de propósito. São “arsenokoitai” (ἀρσενοκοῑται ; usada em ambos os trechos) e “malakoi” (μαλακοὶ; usada apenas em 1Coríntios).

Desde as primeiras traduções do Novo Testamento para o vernáculo no tempo da Reforma Protestante (antes ele era lido em grego — língua original — e em latim), essas duas palavrinhas receberam traduções muito diferentes.

Uma forma de traduzir muito usada atualmente é a de ‘sodomitas’ ou até ‘homossexuais’ (especialmente usada para Arsenokoitai), mas isso na verdade reflete um entendimento muito posterior, do século passado apenas! Já a palavra ‘Malakoi’ tende a ser traduzida como ‘efeminado’, uma tradução que se consagrou há alguns séculos mas não é nem a única nem a mais antiga das formas de traduzir esse trecho pro vernáculo (enquanto, a depender da conotação dada à palavra, não está tão longe do sentido original). Então, fazemos melhor em conversar diretamente no grego.

“Ambiguous Figures (1 copper plate, 1 zinc plate, 1 rubber cloth…)” [Figuras Ambíguas (1 placa de cobre, 1 placa de zinco, 1 placa de borracha…)], Max Ernst, 1919.

Então, o que significam ‘arsenokoitai’ e ‘malakoi’? Vamos ter de analisar cada um separadamente. Isso porque ‘malakoi’ tem um significado e referência mais claro, enquanto ‘arsenokoitai’ é mais disputado quanto ao significado e à referência.

Vamos começar com ‘malakoi’. Malakoi é o plural de ‘malakos’, uma palavra grega cujo uso é bem conhecido e atestado em diversos documentos da antiguidade clássica, inclusive pré-cristãos e não-cristãos. Então, aqui temos muita evidência linguística disponível.

O termo ‘malakos’ é usado para designar um homem ‘fraco’, ‘delicado’, ‘frágil’, ‘covarde’, ‘auto-indulgente’. Ele é parecido com xingar uma pessoa qualquer de ‘fresca’ hoje em dia. Outra conotação que ele incorpora é de alguém que se cerca de luxos, prazeres, mundanidades, e vive em função dessas coisas.

Famosamente Aristóteles usa ‘malakos’ em sua Ética a Nicômaco exatamente nesse sentido. Para ele, são formas de malakia: a fuga deliberada da dor; baixa resistência a dores; amor pelo luxo. Exemplo de um trecho:

“Ora, o homem deficiente no tocante às coisas a que a maioria resiste, e o faz com êxito, é mole [malakos] e efeminado; pois a efeminação também é uma espécie de moleza [malakia]. Um tal homem deixa arrastar o seu manto para evitar o esforço de erguê-lo e simula doença sem se considerar infeliz, ao passo que o homem a quem ele imita é realmente infeliz.” (Aristóteles, p. 155)

Nas outras duas vezes que essa palavra é usada no Novo Testamento, o sentido aludido é claramente esse do luxo:

“Ou, o que foram ver? Um homem vestido de roupas finas [malakoi]? Ora, os que usam roupas finas [malaka] estão nos palácios reais.” (Mateus 11:8)

“Mas que saístes a ver? um homem trajado de vestes delicadas [malakoi]? Eis que os que andam com preciosas vestiduras, e em delícias, estão nos paços reais.” (Lucas 7:25)

Aqui os dois evangelistas atribuem a Jesus o uso de ‘malakoi’ para descrever vestes luxuosas, provavelmente da corte de Herodes e de seus aliados romanos, que contrastavam com as vestes simples e humildes de João Batista. Obviamente Jesus nunca usou esse termo em sua vida, pois ele não falava grego, mas os evangelhos ‘traduzem’ o que Jesus teria falado em aramaico sobre a luxuosidade e delicadeza das vestes da elite da Judeia usando o termo ‘malakoi’.

No campo sexual, sim, um malakos poderia ser o sujeito passivo do sexo anal entre homens (em especial aqueles jovens que se vendessem em prostituição para um parceiro mais velho, o efeminado ‘call-boy’ discutido por Scroggs, 1983, p. 38 e 40, mencionado em Kea, 2020, p. 2, conduta esta que era muito ostracizada pela cultura greco-romana da época). Mas também pode ser um homem muito dado ao sexo com mulheres, que se ‘efeminiza’ no processo de tentar atrair a atenção das mulheres.

Tanto isso é verdade que nas discussões gregas sobre se o melhor é o sexo com mulheres ou com rapazes (Plato’s Symposium, Plutarch’s Dialogue on Love, Pseudo-Lucianic Affairs of the Heart; citados e discutidos em Martin, 1996, p. 6), ambos os lados da disputa acusam o outro de ‘malakia’, então fazer sexo com mulheres também pode ser ‘coisa de malakoi’. De fato:

“A palavra [malakos] nunca é usada em grego para designar homens gays como um grupo ou mesmo em referência a atos homossexuais genéricos, e ela frequentemente ocorre em escritos contemporâneos às epístolas paulinas fazendo referência a atividades ou pessoas heterossexuais” (Boswell, 1980, p. 107, tradução livre)

Um ponto curioso também é que a Igreja antiga usou ‘malakos’ para ‘masturbação’ de uma forma tão consistente que, no grego moderno, ‘malakia’ significa ‘masturbação’. Por exemplo, é usado nesse sentido no Penitencial de João o Jejuador (transcrito em Kea, 2020, p. 22–23), o 33º Patriarca de Constantinopla, durante os anos de 582–595 da nossa era, e venerado como santo pela Igreja Ortodoxa Oriental.

Vocês acharão pela internet gente dizendo que ‘malakoi’ é homossexual passivo fazendo dupla a ‘arsenokoitai’ como homossexual ativo citando algum Léxico bíblico grego-português específico que diga isso. Considero esse um péssimo argumento porque, primeiro, você encontra nos léxicos o sentido que explorei aqui para ‘malakoi’ (veja por exemplo o Léxico Strong), e segundo, ainda mais importante, referência a Léxicos bíblicos NÃO decidem esse tipo de debate!

Os léxicos bíblicos (que geralmente funcionam como ou são associados às concordâncias bíblicas) seguem o pensamento de uma pessoa ou grupo específico, e estes podem supor que nós ‘saibamos’ que Paulo nesse trecho pretendia condenar a homossexualidade. Ou seja, se você já assumir que a referência de Paulo é aos homossexuais, faz sentido você traduzir com algum termo que implique isso, contudo, é justamente se isso é ou não o caso que estamos investigando!

E quando olhamos para os dados históricos (a metodologia correta para esse tipo de questão), de como a palavra era usada na mesma época no mundo greco-romano, vemos que não é correto assumir que Paulo quer se referir a homossexuais passivos ao usar a palavra ‘malakoi’, porque essa palavra não era usada para isso. Ela poderia ser usada para alguém que seja o sujeito passivo do sexo anal entre homens sim. Mas seu significado primário não é sexual como já vimos acima, e o rol de comportamentos sexuais pelos quais um homem recai em ‘malakia’ pode ser perfeitamente heterossexual ou envolver masturbação.

Ou dito de outra forma: se alguém fosse munido de um aprendizado do grego antigo baseado em um dicionário/léxico de grego antigo que NÃO seja um desses léxicos bíblicos, e a pessoa fosse ler o Novo Testamento, ela NUNCA assumiria que ‘malakoi’ aí teria um significado desviante do mais usual.

Alguns objetariam aqui afirmando que, se arsenokoitai refere a homossexuais ativos, então malakoi tem de se referir a homossexuais passivos, porque as duas palavras são usadas juntas em 1Coríntios e formariam uma dupla. Mas esse argumento também é problemático:

  1. ele só valeria se arsenokoitai realmente significar ‘homossexuais ativos’, o que discutiremos no próximo post;
  2. afirmar que tais palavras são pretendidas como uma dupla também é, no máximo, um palpite. Afinal, em 1Timóteo Paulo (ou seus discípulos que escreveram esta carta) usa arsenokoitai sem mencionar malakoi junto. Se o argumento da ‘dupla’ fosse consistente, você teria de assumir que Paulo desistiu de considerar o homossexual passivo um pecador condenado, e agora acha que apenas o ativo que seria! Mas o fato mais provável que podemos tirar da ausência de sua repetição em 1Timóteo é que essas duas palavras não eram pretendidas como uma dupla em nenhum sentido especial.
  3. Para que pudéssemos extrair ou acrescentar um significado a uma palavra que ocorre ao lado de outra nessa lista, nós precisaríamos ter razões independentes para assumir que cada uma delas se refere a algo sexual, para aí ver como referidas condutas sexuais se relacionariam, ou seja, não podemos simplesmente assumir que, se uma palavra é sexual, a outra só por estar do lado também seria;
  4. continuando o ponto 3, note que no trecho de 1Coríntios os termos sexuais explícitos vem intercalados com termos não-sexuais, então após pornoi, sexual, vem ‘idólatras’, não sexual, depois do qual vem moichoi, sexual, aí vem ‘malakoi’ (vamos suspender por enquanto o juízo, se sexual ou não), depois do qual vem arsenokoitai, que o argumento do objetor assume ser sexual, depois do qual vem ‘ladrões’, que não é sexual, e os próximos quatro termos que vem a seguir não são sexuais. Pelo padrão de alternância entre sexual e não-sexual na primeira parte da lista (de pornoi até ladrões), faria mais sentido inferir que malakoi não seja um pecado sexual e sim um pecado não-sexual JUSTAMENTE porque está do lado de arsenokoitai que é sexual! Então aqui o argumento do objetor é virado de ponta-cabeça.

Agora o que acontece se concedêssemos para o objetor que de fato a palavra ‘malakoi’ aqui, apesar de não haver evidência forte nesse sentido, fosse de fato uma menção especificamente aqueles homens que são sujeitos passivos de uma relação homossexual? Será que então o objetor sairia triunfante em seu entendimento de que aqui Paulo de fato condena todos os sujeitos passivos de relações homossexuais?

O curioso é que a resposta para essa segunda pergunta é um sonoro: NÃO!

Porque ainda fica o seguinte questionamento: o que seria essa ‘relação homossexual’ da qual o malakos seria o sujeito passivo no argumento do objetor? Bem, a linguagem já entrega: estamos falando do sexo anal entre homens, do qual um é o passivo (por ser penetrado) e o outro o ativo (por ser o penetrador). E como já discuti no post [72], esse tipo de relação entre ativo e passivo era objeto de muita discussão na cultura greco-romana como um todo.

Mas perceba: isso não leva a concluir nada sobre outras formas de expressão homoerótica, sejam as homoeróticas não penetrativas entre homens ou sejam quaisquer formas homoeróticas entre mulheres. MESMO se o texto realmente estivesse falando do sujeito passivo do sexo anal entre homens (o que não é de fato o caso, mas estamos assumindo isso para fins desse argumento), isso não implica absolutamente nada para outros tipos de relação homoerótica mesmo entre homens que não sejam o próprio sexo anal.

E isso parece o mais natural considerando que, na Bíblia Hebraica, o objeto da proibição de Levítico era apenas e exclusivamente o sexo anal entre homens. A extensão de uma proibição para outros atos sexuais entre homens ocorreu apenas via expansão rabínica para que se evitasse a prática do ato realmente proibido (o sexo anal), pondo uma cerca ao redor dessa proibição bíblica, e dentro da tradição rabínica é um ato bem menos grave que o sexo anal entre homens.

Se ‘malakoi’ significasse o sujeito passivo do sexo anal entre homens nesse trecho, isso significa que Paulo explicitamente estaria validando a proibição de Levítico — mas não nos indica se ele aceitava a proibição expandida oriunda da tradição rabínica* (até porque nem sequer sabemos se naquele período referida expansão já era unânime na tradição judaica!), ou sob que status a aceitaria (se como uma nova proibição de cunho bíblico ou como uma proibição equivalente à rabínica mas agora em termos de cercas eclesiásticas, etc.), ou qual gravidade ele daria para esses outros atos seja sob qual status fossem entendidos como proibidos. Nessa parte ficaríamos apenas com interrogações, nada como um banimento cabal e explícito como os teólogos fundamentalistas tendem a pensar.

Agora que entendemos que ‘malakoi’ não possui a conotação homossexual que as traduções sugerem, no próximo post analisarei o significado de ‘arsenokoitai’, para ver se esta tem de fato a conotação homossexual que as traduções sugerem ou não nesse outro caso.

*Àquele tempo tradição ‘proto-rabínica’, isto é, farisaica, sob a qual Paulo teria estudado conforme ele afirma em Galátas 1:14 ao falar das ‘tradições dos pais’ e o livro de Atos dos Apóstolos explicitamente o identifica como fariseu. Não vou entrar no mérito se de fato Paulo era fariseu, porque o objetor que tenho em mente aceita essa identificação tradicional de Paulo como fariseu anteriormente à sua conversão para a Igreja.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.