[109] Quando os sacerdotes apostavam corrida no Templo (lição de Economia e Psicologia)
O tratado Yoma do Talmude traz uma curiosidade muito interessante: durante uma época, a execução de certo serviço sacerdotal dentro do Templo Sagrado em Jerusalém era realizada pelo sacerdote que ganhasse uma corrida até o Altar do Templo! Vamos entender melhor o que uma disputa de corrida entre os sacerdotes pode nos ensinar, inclusive sobre Economia e Psicologia…
O povo judeu teve um Templo Sagrado em Jerusalém por duas vezes em sua história. Uma parte significativa da Torá é devotada ao sacerdócio do Templo (ali discutido como “tabernáculo”, por ser originalmente portátil). Executar os serviços do sacerdócio no Templo era um privilégio adquirido pelo nascimento das famílias sacerdotais, os cohanim. Até hoje existem cohanim, mas, como o Templo não mais existe desde o ano 70 EC, eles não exercem mais a função sacerdotal (restaram apenas algumas funções litúrgicas simbólicas no serviço religioso da Sinagoga). O sobrenome “cohen” indica essa origem e descobriu-se que há mesmo um ‘gene cohanim’, um marcador genético encontrado entre esses descendentes dos antigos sacerdotes judeus, o que demonstra a antiguidade e distintividade dessa linhagem.
O Templo possuia um Altar externo, o Mizbeach, no qual eram queimadas (partes d)as oferendas, de animais ou de farinha, trazidas ao Templo. O Altar ficava elevado, sendo acessado por intermédio de uma rampa.
Como a atividade realizada no Altar envolvia queima contínua, isso significava que sempre sobravam cinzas em cima do Mizbeach. Portanto, alguém precisava tirar as cinzas, no todo ou em parte.
Uma primeira lição encontra-se aqui: ao invés de mandar algum israelita comum fazer essa função mais “humilde” e menos requintada, eram os próprios sacerdotes que deviam fazer a retirada das cinzas do Altar.
De tempos em tempos as cinzas eram inteiramente removidas do Altar. Mas diariamente, uma “pazada” cheia de cinzas deveria ser retirada do Altar. Essa é uma Mistvá, isto é, um preceito da Torá, os quais ligam o judeu (ou um praticante não-judeu) a Deus, realizando assim o divino no mundo. Mesmo um ato simples como esse — retirar uma pazada de cinzas — era capaz de ligar a pessoa que o executava ao Eterno Criador de todas as coisas (um exemplo ainda mais extremo de ato simples que conecta o judeu com Deus na Torá é o de ir ao banheiro fora do acampamento quando de uma campanha militar, como comentei no post [15]!).
Neste caso, trata-se de uma Mistvá exclusiva para os cohanim em serviço no Templo, o preceito de Terumat HaDéshen. Ou seja, apenas os sacerdotes judeus podiam realizar esse preceito. Uma das porções semanais de Leitura da Torá, a parashá Tsav do livro de Vayicrá (Levítico), abre com essa Mistvá.
“Dá ordem [Tsav] a Arão e a seus filhos, dizendo: Esta é a lei do holocausto; o holocausto será queimado sobre o altar toda a noite até pela manhã, e o fogo do altar arderá nele.
E o sacerdote vestirá a sua veste de linho, e vestirá as calças de linho, sobre a sua carne, e levantará a cinza, quando o fogo houver consumido o holocausto sobre o altar, e a porá junto ao altar.
Depois despirá as suas vestes, e vestirá outras vestes; e levará a cinza fora do arraial para um lugar limpo.” (Levítico 6:9–11)
Assim, o primeiro ato de culto a Deus realizado no Santuário/Templo era a Terumat HaDéshen, quando um dos cohen tirava a pazada de cinzas e a colocava no chão próximo à rampa bem cedo pela manhã. A mistvá era cumprida com as próprias vestes sacerdotais, ensinando humildade aos cohanim.
Geralmente qual sacerdote fazia qual serviço no Templo era decidido por sorteio, mas, segundo a tradição judaica oral, inicialmente a seleção do sacerdote que recolheria as cinzas logo cedo pela manhã era feita por meio de uma corrida!
Em Yoma 22, o processo é descrito: aquele sacerdote que chegasse ao topo da rampa primeiro (dentro dos quatro cúbitos adjacentes ao Altar) ganhava o direito de tirar as cinzas. E chegar ao Altar significava subir pela rampa anexa, nesse caso correndo até seu topo. Nessa seção do Talmude discutem-se mesmo as regras para o caso de empate, e também qual seria o marco exato de chegada “ao topo da rampa” (mas os sábios não conseguiram uma resposta conclusiva nisso). Como se vê, a ideia era ser uma competição justa, com regras claras.
Infelizmente, como já seria de esperar, sair correndo em disparada numa rampa não é exatamente muito seguro. Um dia, uma tragédia aconteceu: dois cohanim chegaram ao mesmo tempo, mas um deles empurrou o outro, que despencou lá de cima e quebrou a perna! Por conta disso o sistema mudou: os sábios resolveram fazer essa seleção por sorteio também. Tudo isso está na Mishná, a primeira “camada” do Talmude a ser escrita.
Agora vejam: uma mudança na organização do serviço religioso foi realizada em função de preocupações com a segurança e saúde dos envolvidos. Mas os sábios da Guemará (a segunda “camada” do Talmude) em Yoma 22a ficaram intrigados: se havia esse risco de queda, por que não foi essa escolha sempre feita por sorteio?
A Guemará passa então a discutir o conteúdo dessa Mishná. Primeira hipótese para explicar a situação descrita: Como esse serviço era realizado muito cedo, ainda estava escuro, então os sábios pensavam que quase nenhum sacerdote viria cumprir essa Mistvá. Como seria feito à noite, não seria tão importante para os sacerdotes. Assim, quem estivesse disponível e disposto, pegaria esse serviço para cumprir. Contudo, acabou que sempre haviam muitos cohanim disponíveis e dispostos a se voluntariar, daí a ideia da corrida!
Mas aí começa a problematização típica feita nas discussões talmúdicas: haviam outros serviços realizados à noite, e sempre foi feito sorteio para essas outras funções. Então, “o fato de ser um serviço feito à noite” não poderia ser a razão para que não fosse adotado um sorteio para a retirada das cinzas. Mas logo em seguida, a Guemará contra-argumenta: esses outros serviços eram finalizações do serviço feito ao longo do dia, por isso não seriam considerados serviços “noturnos”. A questão aqui é que um trabalho que finaliza algo iniciado durante o dia é a conclusão de um trabalho feito de dia, logo, não seria um trabalho feito de noite.
Assim, vemos que, nessa troca de argumentos, a mistvá de Terumat HaDéshen (retirar as cinzas do Altar) seria distinta dos outros trabalhos realizados no Templo por não apenas ser um serviço realizado durante a noite, mas por ser um trabalho de fato começado e terminado enquanto ainda estava escuro (pela manhã). Isso justificaria um procedimento diferente de seleção do sacerdote responsável.
Mas não tão rápido! Não seria o caso então que nem mesmo esse fosse um trabalho noturno, mas sim o início do trabalho feito de dia? Como a retirada das cinzas dava início ao trabalho diário do sacerdócio, parece plausível dizer que é o início do trabalho do dia, e não um trabalho da noite.
E uma evidência é trazida para confirmar esse argumento: uma declaração de Rabbi Yohanan, segundo a qual um sacerdote que já tivesse purificado suas mãos à noite por ocasião da remoção das cinzas, desde que permanecesse no Templo não precisaria purificá-las novamente quando ficasse dia claro, pois ele já as tinha purificado no início do serviço. Assim, essa tradição afirmaria explicitamente que a retirada das cinzas é o início do trabalho feito ao longo do dia.
Mas a Guemará interpreta diferente essa evidência: o fato da purificação das mãos por ocasião da remoção das cinzas continuar valendo depois que o Sol nasce não depende de que a remoção da cinzas seja o início do trabalho feito de dia. Como o sacerdote já havia lavado suas mãos, esse estado de pureza permanecia, não fazendo diferença que agora o Sol tivesse nascido. Podemos dizer que era a simples “inércia” da pureza ritual que explicava essa possibilidade, não sendo necessário entender a remoção das cinzas como o início do trabalho feito de dia.
Agora, talvez o leitor não esteja tão confortável com essa troca de argumentos. Será que não haveria outra explicação? Sim, os sábios logo em seguida discutem outra possibilidade. Talvez a questão fosse que, por ser realizado enquanto estava escuro, havia o risco do sacerdote cair no sono. Por isso os sábios no passado haviam concluído que poucos viriam exercer essa Mistvá.
Note: a primeira hipótese era de que “um serviço noturno” fosse menos importante para os sacerdotes, e por isso os sábios do Talmude precisavam discutir se poderíamos categorizar ou não apenas a retirada das cinzas como um “serviço noturno”, sendo que outros serviços do Templo também eram realizados quando já estava escuro. Agora essa segunda hipótese versa sobre o fato de um serviço ser realizado enquanto está escuro e como isso aumenta a chance de pegar no sono. Para essa segunda hipótese valer, não é necessário decidir se este serviço era tecnicamente noturno ou não: basta que fosse realizado no escuro da noite, o que aumenta a chance de estar sonolento!
Contudo, uma rápida objeção vem à mente: outros serviços eram realizados à noite, no escuro, e também havia chance do sacerdote responsável cair de sono ao executá-los. Então, não pode ser essa a razão pros sábios do passado terem instituído uma corrida ao invés de um sorteio para a retirada das cinzas, afinal, se fosse essa a razão eles teriam feito a seleção para esses outros serviços também por meio da corrida….
A Guemará, entretanto, traz um ótimo contra-argumento: a diferença entre esses outros serviços e o serviço da retirada das cinzas é a diferença entre continuar acordado mesmo cansado e se levantar da cama após já ter dormido. Os outros serviços feitos à noite eram feitos por sacerdotes que passaram o dia acordados e ainda não foram dormir. Já o da retirada das cinzas era realizado por um sacerdote que já fora dormir e agora tinha despertado. É mais difícil acordar muito cedo do que continuar acordado até bem de noite. Por isso o temor dos sábios de que quase nenhum sacerdote aparecesse para cumprir a tarefa em questão!
Mas os sábios da Guemará não estavam satisfeitos. A Mishná afirma que os sábios fizeram a troca da corrida para o sorteio por uma preocupação com a segurança do procedimento. Contudo, talvez fosse outra a razão para mudar pro sorteio. E aqui a Guemará cita uma tradição de uma baraita segundo a qual o sacerdote que fazia a retirada das cinzas também realizava uma tarefa relativa às madeiras do Altar. Ou seja, aquele que retirava as cinzas também se incumbia de alimentar o fogo do Altar de seu combustível: a madeira! Uma função muito importante que certamente seria muito disputada pelos sacerdotes, logo justificando o sorteio, tal como era feito para os outros serviços do Templo.
Apesar de parecer bem convincente, esse argumento pressupõe que desde o início essas duas funções eram atribuídas a um mesmo sacerdote. Assim, a função de retirar as cinzas sempre teria sido associada à função de fazer a alimentação inicial do fogo do Altar. Há alguma evidência de que inicialmente essas funções não estivessem ligadas?
Sim, a Guemará traz uma evidência de que nem sempre esses dois serviços foram associados: segundo Rav Ashi, essas funções eram duas ordenanças separadas. Nessa época os sábios pensavam que quase ninguém iria aparecer, mas na verdade muitos sacerdotes vinham disputar o cumprimento dessa tarefa, e assim, por razões de segurança, os sábios mudaram o procedimento da corrida para o sorteio (basicamente, o relato da Mishná).
Contudo — efeito colateral imprevisto — instituído o sorteio, poucos sacerdotes passaram a vir. O motivo? Sendo agora uma loteria, o sacerdote acabava pensando “quais minhas chances?” e optava por não chegar cedo. Para resolver isso, os sábios tiveram de fazer esse sorteio da retirada das cinzas ser o mesmo para a alimentação inicial do Altar com madeira (uma tarefa muito desejada), para assim atrair de novo os sacerdotes!
O que é bem interessante aqui é a questão dos incentivos na hora de lidar com o comportamento humano (algo muito caro à disciplina acadêmica da Economia, e também da Psicologia Comportamental).
Quando o procedimento era uma corrida, cada sacerdote poderia ver uma possibilidade concreta de ganhar a disputa, pois seria com base no seu esforço.
Mesmo que na prática certo sacerdote não corresse tão bem e não tivesse tanta chance de vencer, ao menos pareceria que havia algo que ele poderia fazer para vencer, e essa esperança o motivaria mesmo suas chances sendo baixas. Talvez mesmo perdendo quase sempre, fosse pelo menos divertido tentar — simplesmente porque correr é uma atividade física gratificante.
E sacerdotes que fossem bons de corrida teriam uma motivação muito grande movidos pela ‘competição’. Imagine os 3 sacerdotes mais velozes. Cada um tinha chances reais de vencer a corrida. Altas chances. E tudo dependeria do seu esforço na hora da corrida.
Mas quando o procedimento mudou para um sorteio, agora a chance de todos era necessariamente igual, independente do que cada um fizesse. Assim, a motivação diminuiu, perdido o elemento “esperança nos próprios esforços”.
O sacerdote bom de corrida veria suas chances caírem drasticamente, igualado agora aos corredores medianos e aos corredores ruins. Portanto, sua motivação despencaria proporcionalmente.
Já os corredores medianos e ruins, enquanto tivessem suas chances absolutas aumentadas, talvez não sentissem tanto um aumento na sua expectativa relativa (afinal, todos os outros de igual perfil aumentaram junto). Além de que muitas vezes a sensação de que se pode fazer algo para mudar o resultado é um motivador maior do que simplesmente ter uma chance maior mas que parece aleatória do ponto de vista dos esforços individuais, devido ao fenômeno da “ilusão do controle”.
E a atitude dos sábios foi bem afim à dos economistas em particular e dos cientistas comportamentais em geral. Para conseguir que os sacerdotes voltassem a comparecer para realizar essa Mistvá, os sábios precisavam ajustar os incentivos (Economia) ou modificar as contingências de reforço para modificação do comportamento na direção desejada (Psicologia). E conseguiram ao associar essa tarefa a outra que fosse intrinsecamente mais desejada, aumentando assim o valor esperado do sorteio.
Ou seja, a probabilidade de ganhar o sorteio continuaria a mesma, mas o valor do sorteio agora aumentara. Assim, considerando que a motivação do sacerdotes fosse uma função da sua probabilidade individual de ganhar o sorteio multiplicada pelo valor do sorteio, ao aumento do valor do sorteio se seguiria um aumento na motivação dos sacerdotes, é o que disciplinas como Economia e Psicologia prediriam. E de fato foi o que aconteceu.
Note que outro caminho seria uma simples reprovação dos sábios, se queixando contra os sacerdotes “preguiçosos” e “relapsos”. Mas a atitude realista dos sábios era a de que, mais do que fazer exortação moral, o importante era tornar mais provável (ou causar) o resultado almejado, isto é, que vários sacerdotes tivessem a chance de realizar essa Mistvá e se ligassem a Deus dessa forma (bem como servissem de canal de comunicação entre Deus e o povo judeu — e mesmo a humanidade como um todo — enquanto realizassem essa tarefa). E de fato conseguiram!
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