[128] Amar a Deus acima de tudo NÃO é bíblico

A Estrela da Redenção
10 min readJun 22, 2021

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Às vezes as pessoas acham que certas frases ou ideias estão na Bíblia, quando não há nem sinal disso dentro da Bíblia. Uma dessas frases é que haveria um mandamento para amar a Deus acima de tudo. Esse suposto mandamento simplesmente não existe em nenhum lugar das Escrituras Hebraicas (vulgarmente conhecidas como “Velho” Testamento). E se estivermos falando do Novo Testamento cristão, as suas referências ao mandamento de amar a Deus são extraídas da Bíblia Hebraica de qualquer forma.

Na Torá, encontramos o mandamento de amar a Deus no livro de Deuteronômio:

“Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças.” (Deuteronômio 6:4,5)

E o mandamento de amor ao próximo no livro de Levítico:

“amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:18)

Note que no Novo Testamento cristão, Jesus repete palavra por palavra (ipsis literis!) esses trechos da Torá:

“Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido disputar, e sabendo que lhes tinha respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos?
E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.
E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.” (Marcos 12:28–31)

Então, de onde veio essa ideia de que haveria um mandamento para amar a Deus acima de tudo?

Me parece que o responsável por isso seja a maneira como a Igreja Católica costuma reescrever os Dez Mandamentos (mais um texto da Torá, dessa vez em Êxodo, com uma repetição em Deuteronômio).

Veja como a Igreja Católica descreve os Dez Mandamentos no Catecismo:

“Fórmula catequética dos dez Mandamentos

Eu sou o Senhor teu Deus:

1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
2. Não invocar o santo nome de Deus em vão.
3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda.
4. Honrar pai e mãe.
5. Não matar.
6. Não pecar contra a castidade.
7. Não roubar.
8. Não levantar falsos testemunhos.
9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos.
10. Não cobiçar as coisas alheias.” (Fonte; Fonte)

Agora compare com o texto original dos Dez Mandamentos na Torá (com a numeração judaica tradicional adicionada):

“Então falou Deus todas estas palavras, dizendo:
[1] Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
[2] Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos.

[3] Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.
[4] Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o santificou.
[5] Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.
[6] Não matarás.
[7] Não adulterarás.
[8] Não furtarás.
[9] Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.
[10] Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.” (Êxodo 20:1–17)

As diferenças maiores residem em 4 mandamentos: o 1º na numeração católica que abrange os 1º e 2º na numeração judaica; o 3º na numeração católica que corresponde ao 4º na numeração judaica; o 6º na numeração católica que corresponde ao 7º na numeração judaica; o 9º na numeração católica que corresponde ao 10º na numeração judaica.

Todos esses casos envolvem alterações substanciais no sentido original, como mudar o dia santo semanal do sábado para o domingo ou incorporar uma noção de “castidade sexual” que não existia ali.

Uma dessas alterações diz respeito logo ao início: o que era “Eu sou YHVH o teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa dos escravos, não terás outros deuses diante de mim, não farás para ti imagem de escultura….” virou “amar a Deus acima de tudo”.

O sentido original dessa parte dos Dez Mandamentos é que, quando Deus vem ao encontro do povo judeu no Monte Sinai, Ele começa falando ao povo inteiro os termos da sua aliança. Por isso, Ele inicia com uma apresentação “Eu sou יהוה‎”, ou seja, a divindade cujo nome próprio é o Tetragrama Yud(Y)-He(H)-Vav(V)-He(H). Com isso Deus continua dizendo: por isso, como Eu YHVH sou o Deus de vocês (judeus), vocês não podem ter outros objetos de culto, seja outros deuses ou imagens de escultura (mesmo se a imagem tentasse representar YHVH Ele mesmo).

Bem mais tarde na Torá, aparece a formulação que já vimos anteriormente do Deuteronômio:

“Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças.” (Deuteronômio 6:4,5)

Então, o início dos Dez Mandamentos, para começar a Aliança, não demanda amor a Deus, mas apenas que Deus seja a divindade exclusiva do seu povo. Com um aumento de entendimento e vida na Aliança, passa-se também a amar Deus, algo feito pela pessoa por inteira, por seguir os preceitos da Torá para se conectar ao Divino.

Contudo, isso não significa que se ama a Deus ACIMA de tudo. A meu ver, o problema da formulação católica é que, na Torá, é mais meritório estar CONTRA Deus se isso for A FAVOR do teu próximo, especialmente se tratando do povo de Deus como um todo. Por isso encontramos na Torá figuras bíblicas que questionam posturas divinas, como Abraão e Moisés, para que Deus não exerça seu juízo contra o povo de Israel mesmo quando este pecou seriamente (Moisés) e mesmo não exerça seu juízo contra as cidades abertamente injustas de Sodoma e Gomorra (Abraão).

O caso de Moisés é extremamente ilustrativo, e irei mencionar aqui apenas um dos casos (que já havia comentado no início desse blog, no post [6], por ser um dos meus trechos favoritos de todas a Bíblia).

Na história do pecado do bezerro de ouro, o povo trai Deus (que acabara de os libertar da escravidão no Egito e de lhes ditar os Dez Mandamentos já citados) em favor de um bezerro de ouro que eles mesmos fizeram.

Deus fica irado, zangado, se sentindo traído e enciumado pelo bezerro de ouro. E fala para Moisés no Monte Sinai: “Agora, pois, deixa-me, para que o meu furor se acenda contra [o povo], e o consuma; e eu farei de ti uma grande nação.” (Êxodo 32:10)

Moisés poderia ter dito: “tem razão, eles fizeram algo errado, então pode punir!” Muitos religiosos têm essa postura de justificar Deus, talvez por achar que devem amar a Deus acima de tudo. Mas Moisés era diferente. Ele ARGUMENTA com Deus, invocando tanto a falta de lógica em Deus destruir o povo logo depois de tê-lo salvo, como a necessidade de Deus cumprir suas próprias promessas. E conclui:

“Torna-te do furor da tua ira, e arrepende-te deste mal contra o teu povo.” (Êxodo 32:12)

Sim, Moisés diz que Deus está ERRADO e pede para ele se arrepender. Depois de ter sido assim questionado, Deus fulmina Moisés? Não. Ao contrário:

“Então o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo.” (Êxodo 32:14)

Deus se ARREPENDEU. Isto é, Deus ACEITOU QUE ESTAVA ERRADO.

Assim, o homem mais justo naquele momento, o homem por quem Deus deu a Lei, é retratado como o homem que amava tanto o povo que se opunha mesmo a Deus em favor do povo!

Ao contrário daquela noção de ‘a salvação é individual, importe-se com a SUA salvação e a SUA relação com Deus’, Moisés não queria uma salvação que fosse SUA se ela não fosse NOSSA também, a salvação de sua comunidade e de seus próximos. Por isso mesmo os sábios rav Hillel (Shabbat 31a) e rav Akiva (Sifra, Kedoshim, 4:12) que o resumo da Lei Divina é exatamente o amor ao próximo. E acrescento: mesmo CONTRA Deus. Como Moisés exemplifica:

“Agora, pois, perdoa o seu pecado [do povo]; se não, risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito.” (Êxodo 32:32)

Ou seja, Moisés pede para ele mesmo ser riscado junto com o povo. Não parece que ele tivesse em mente aqui um suposto mandamento de amar a Deus acima de tudo!

Para finalizar, algumas pessoas poderão dizer: mas por que só de Deus é pedido para amar com a inteireza das forças, coração, etc., enquanto do próximo se pede para amar como ‘a si mesmo’? Não significaria isso que se deve amar mais a Deus que ao próximo?

O motivo não tem nada a ver com amar a Deus acima de tudo. A diferença na formulação simplesmente reflete as diferentes naturezas de amar outro ser humano versus amar a Deus.

Quando se ama outro ser humano, pede-se para amar como a si mesmo, porque você também é um ser humano, ou também é uma pessoa. Além disso, existem muitos humanos para amar, o que geraria decisões conflitantes se você sempre precisasse estar totalmente empenhado com cada um dos seus próximos.

Já quando se fala de Deus, estamos falando de outra ordem de realidade. E de um relacionamento exclusivo, dado Deus ser único. Então, amar a Deus deve ser feito pela pessoa inteira, sem sobrar nada na pessoa que sirva a outro objeto de culto (seja outros deuses ou uma imagem de escultura mesmo que seja do próprio Deus; e podemos estender para outros ídolos mais abstratos).

Então, acabamos por voltar ao início dos Dez Mandamentos: a rejeição à idolatria, com a Aliança determinando o serviço exclusivo a YHVH, entre os deuses, é o que está em jogo aqui ao falar em amar a Deus ‘por inteiro’. (Aos não-judeus a demanda seria mais relaxada: eles podem servir ao Criador junto a outros deuses, que daquele seriam colaboradores ou mediadores; Schulchan Arukh, Orach Chayim, 156)

Outra maneira de entender isso é apelando para a concepção mais plausível de Deus dentro de uma interpretação existencial panenteísta (que, no caso deste blog, também é judaica: existencialista-judaica e místico-judaica), apresentada no post [108].

Então, se estamos dentro de uma sala contendo 4 pessoas, e quiséssemos contar Deus também, o resultado não seria “5”, mas continuaria sendo “4”. O motivo é que Deus nada mais é do que outra forma de concebermos (o sentido d)a totalidade do que há (e não há) enquanto transcendência. Ele não é mais 1 ser específico para ser contado entre outros seres, mas o processo do vir a ser da totalidade dos seres. Deus é um verbo, um acontecimento em andamento.

“Metamorphosis II”, M. C. Escher, 1939–1940.

Assim, quando se demanda amar a Deus com a inteireza da pessoa, é porque Deus se refere ao âmago do que vem a ser em tudo. Não se pede a inteireza da pessoa para amar os seres específicos, porque nenhum deles corresponde ao todo, então o amor dirigido a cada um tem de conviver com o amor paralelo (e até certo ponto concorrente) dirigido a outros seres. Mas quando estamos falando de Deus, não existe essa concorrência: sendo Ele Tudo e Todo e Nada, amá-lo não concorre com amar qualquer ser específico. Ao contrário, amar a Deus consiste em amar os seres nos quais Deus se realiza. Ou, de outro modo, sempre que amamos alguém amamos Deus também em alguma medida. Onde existe amor, Deus aí está.

Então, quando se ama a Deus e se ama a um próximo específico, estritamente falando não estamos diante de duas atitudes de amor separadas, mas sim, no fundo, de uma única atitude de amor, só que vista sob duas perspectivas diferentes (a total e a parcial). Um amor a Deus que seja separável do amor a cada um dos teus próximos não é mais do que amor a um mero ídolo.

Por conta de todas as considerações acima feitas, podemos concluir que não é bíblico dizer que se deve amar Deus acima de tudo. O que é realmente bíblico é amar a Deus junto com as pessoas e outros seres vivos por Ele criados. Porque amar a Deus nada mais é do que amar ao próximo, que nada mais é do que a prática da justiça no entorno social:

“Julgou a causa do aflito e necessitado; então lhe sucedeu bem; porventura não é isto conhecer-me? diz o Senhor.” (Jeremias 22:16)

“Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a benignidade, e andes humildemente com o teu Deus?” (Miquéias 6:8)

“SENHOR, quem habitará no teu tabernáculo? Quem morará no teu santo monte?
Aquele que anda sinceramente, e pratica a justiça, e fala a verdade no seu coração.
Aquele que não difama com a sua língua, nem faz mal ao seu próximo, nem aceita nenhum opróbrio contra o seu próximo;
A cujos olhos o réprobo é desprezado; mas honra os que temem ao Senhor; aquele que jura com dano seu, e contudo não muda.
Aquele que não dá o seu dinheiro com usura, nem recebe peitas contra o inocente. Quem faz isto nunca será abalado.” (Salmos 15:1–5)

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.