[147] A Teoria Messiânica Apostólica Original (Pré-Destruição do Templo)

A Estrela da Redenção
20 min readAug 6, 2021

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Para entender como pôde o cristianismo se tornar tão diferente do judaísmo, apesar de Jesus e seus apóstolos terem sido todos judeus, é preciso buscar certos “elos perdidos”, isto é, elementos de continuidade entre essas tradições que, pelos motivos tal e tal, foram perdidos.

Aqui me proponho a examinar um desses elementos: a provável teoria messiânica original da comunidade apostólica judeu-cristã (de fala aramaica e localizada na Judéia/Galiléia) no período entre a morte de Jesus (~31 EC) e a destruição do Templo pelos romanos (70 EC).

Minha hipótese é que a teoria messiânica da comunidade apostólica judeu cristã teve de sofrer uma alteração decisiva por conta do que aconteceu subsequente à destruição do Templo, especialmente até o próximo ‘pitstop’: a guerra judaico-romana (135 EC). Foi apenas depois da destruição do Templo que a teoria messiânica da igreja passou a divergir frontalmente daquela da sinagoga, e os eventos que antecederam e/ou levaram à guerra judaico-romana terminaram de separar ambas as tradições. Portanto, antes da destruição do Templo, esperaríamos encontrar uma teoria messiânica apostólica ainda judaica, e não “cristológica”.

Não me ocuparei aqui com Paulo e as comunidades cristãs originadas na diáspora judaico-helenista e entre gentios helenistas, mas farei uma breve menção como a teoria messiânica aqui reconstruída também repercute nas cartas paulinas.

Sobre os aspectos metodológicos em pesquisa do Novo Testamento cristão que estou pressupondo aqui, veja o post [143]. Sobre a maneira como caracterizo o Jesus histórico em termos amplos, veja os posts [144]-[145]. Sobre a maneira como caracterizo essa comunidade apostólica original em Jerusalém pós-morte de Jesus (judeu-cristã de fala aramaica), veja o post [146].

Em relação ao material dos evangelhos, tal como é feito majoritariamente na pesquisa sobre o Jesus histórico, usarei primordialmente material dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas). Mas apesar de entrar em ditos de Jesus, não tentarei reconstruir a teoria messiânica do próprio Jesus histórico. O motivo é que tentar fazê-lo dificultaria muito a questão que temos em mente. Para meu propósito aqui, é mais importante considerar como o que ele disse em vida foi entendido após sua morte, especialmente por conta dos apóstolos terem vindo a crer que Jesus ressuscitara.

Antes de começar, lembre os seguintes fatos: Jesus era judeu, e seus apóstolos originais eram todos judeus de fala aramaica que viviam na Palestina (Judéia/Galiléia). Após a morte de Jesus, a comunidade em Jerusalém se tornou a mais importante, por congregar os apóstolos originais, as mulheres seguidoras de Jesus e a figura de Tiago o irmão de Jesus, que se tornou o cabeça da Igreja em Jerusalém (nota = o nome de Tiago na verdade é Jacó, em grego Iacobos). As comunidades cristãs à época (inclusive as supervisionadas por Paulo) frequentavam as sinagogas, e frequentavam o Templo em Jerusalém.

Feitos todos esses esclarecimentos, passemos à reconstrução histórica.

A explicação cristã tradicional para a origem da cisão entre cristãos e judeus na questão messiânica afirma que, após a ressurreição de Jesus, os cristãos o entenderam como o Messias prometido, que também seria o novo Sumo-Sacerdote, o sacrifício final que substituiria os sacrifícios do Templo, o Salvador da humanidade em relação aos seus pecados, o Filho do Homem anunciado no livro de Daniel, o grande Profeta previsto no livro de Deuteronômio, o Verbo Divino, e até mesmo como o próprio Deus, uma das pessoas divinas da Trindade.

O problema é que isso, bem, é totalmente implausível. Essa concepção cristológica decididamente afastada da judaica não poderia ter surgido dessa forma tão repentina. Além disso, é facilmente observado como essa Alta Cristologia depende de já haver um cânon relativamente formado para o que viria a ser o Novo Testamento, uma vez que tal Cristologia não é observável em NENHUM livro do Novo Testamento tomado isoladamente. Na verdade ela apenas é formada quando se pegam várias coisas distintas em diferentes escritos/tradições e tenta-se formar uma coisa só (um exemplo nítido é o Jesus como Sumo-Sacerdote, que aparece exclusivamente na epístola aos Hebreus).

Portanto, me parece mais lógico pensar que após a morte de Jesus, a teoria messiânica ainda estivesse nos confins judaicos e apenas gradativamente foi ganhando as feições “cristológicas” (i. e. distintivamente cristãs), com alguns momentos de aceleração nessa tendência (a destruição do Templo; a guerra Judaico-Romana).

Qual a principal diferença na visão messiânica judaica e na visão cristológica cristã posterior? Existem várias diferenças, mas uma pouco notada é que a visão judaica é mais plural. Não existe apenas uma figura messiânica. Como se vê na tradição rabínica, geralmente se falam de 4 figuras: o Messias filho de Davi, o Messias filho de José, o Sacerdote [messiânico] e o Profeta Elias. Além disso, o sanhedrin (o supremo tribunal dos sábios de Torá) também tem um papel importante no contexto messiânico.

Ou seja, na visão messiânica judaica tradicional, o Messias filho de Davi compartilha autoridade, papéis, funções, etc. com outras figuras, seja dinásticas (o Messias filho de José, para as 10 tribos ‘perdidas’ do Norte), seja sacerdotais (o Sacerdote messiânico), seja proféticas (Elias), seja arbitrais/judiciais (o Sinédrio messiânico).

A Alta Cristologia cristã simplesmente cumulou todos os cargos e funções possíveis de forma centralizada na figura de Jesus, como já notei acima.

Isso nos permite afirmar então que era muito mais provável que esse ‘acúmulo de funções’ na figura de Jesus tenha sido algo gradativo, e que a esperança messiânica original da comunidade apostólica de fala aramaica fosse mais plural. Encontramos evidência disso? Sim, e nas palavras do próprio Jesus.

A pregação pública de Jesus vista nos Evangelhos Sinóticos não é uma pregação sobre Jesus, mas uma pregação sobre duas peças-chaves no drama escatológico-apocalíptico: o Reino de Deus e o Filho do Homem. Observe o seguinte dito de Jesus:

“Porque, qualquer que de mim e das minhas palavras se envergonhar, dele se envergonhará o Filho do homem, quando vier na sua glória, e na do Pai e dos santos anjos.
E em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte até que vejam o reino de Deus.” (Lucas 9:26,27)

Qualquer que de MIM se envergonhar, o FILHO DO HOMEM o envergonhará, não EU o envergonharei, mas ELE o envergonhará. Jesus se apresentava como um rabino profetizando a vinda do Filho do Homem encontrado no livro de Daniel:

“Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram chegar até ele.
E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído.” (Daniel 7:13,14)

Se você pegar o livro de Daniel inteiro, pode checar: a promessa à dinastia de Davi não tem nenhum papel no livro inteiro (enquanto exista um erro de tradução que leva alguns a lerem a palavra ‘o messias’ ali, que outro dia faço post a respeito). Em verdade, o Filho do Homem no livro de Daniel é uma figura celestial, um ser místico de aparência humana, que, não obstante, é também uma metáfora para o reino dos santos do altíssimos, i. e. o remanescente justo de Israel. (Veja como o Filho do Homem é contraposto às Bestas nesse mesmo capítulo, para significar que tal como o mundo fora dominado por Bestas Monstruosas, no futuro estaria nas mãos do Ser Humano — se as Bestas são simbólicas de reinos, o Filho do Homem também é simbólico de um reino)

A tradição judaica veio a associar a figura do Filho do Homem e a do Messias filho de Davi tal como ocorreu na tradição cristã, mas uma menção ao Filho do Homem naquele período não necessariamente era referência ao Messias filho de Davi. E Jesus não anunciava a vinda do Messias/Cristo, mas sim a vinda do Filho do Homem trazendo o Reino de Deus.

Aqui tem uma lição metodológica. Quando fala do que Jesus disse, sempre estou me baseando no que ele aparece dizendo PUBLICAMENTE nos evangelhos. Por exemplo, naquele capítulo de Lucas que eu citei acima, um pouco antes aparece Jesus aparentemente aceitando ser o Cristo e que o Filho do Homem iria morrer e ressuscitar. Contudo…. isso acontece NÃO PUBLICAMENTE, em privado. Para os estudiosos do Novo Testamento, essas declarações em privado nos Evangelhos refletem muito mais a ideia posterior à morte de Jesus. Se Jesus realmente tivesse dito que era o Messias, os Evangelhos Sinóticos o mostrariam falando disso publicamente, e falando assim de si na 1ª pessoa*. Aqui você deve checar a literatura a respeito do “segredo messiânico” em Marcos, que remonta a William Wrede (1901).

“No mais, a tradição sinótica não deixa dúvidas a respeito do fato de que a vida e a obra de Jesus, se comparadas com a tradicional idéia do Messias, não eram messiânicas, e Paulo, a exemplo de outros, também não as considerou messiânicas, como o demonstra o hino crístico por ele citado em Fp 2.6–11, no qual a vida de Jesus é compreendida como a vida de um ser humano simples, sem brilho messiânico. De igual modo, Rm 1.4, onde Paulo evidentemente usa uma fórmula tradicional, e At 2.36 mostram que a comunidade mais antiga datou a messianidade de Jesus a partir de sua ressurreição. Com efeito: ‘Messias’ é a denominação do soberano escatológico; a palavra significa ‘o ungido’ e adquiriu o simples sentido de ‘rei’. Jesus, porém, não se apresentou como rei, e sim como profeta e rabino — como exorcista, poder-se-ia acrescentar. […] Não muda nada nos fatos dizer, em vista dos ditos de Jesus a respeito do ‘Filho do Homem’, que Jesus dificilmente ou de modo algum imaginou que o Messias fosse o rei davídico, mas, antes, aquela figura celestial do juiz e do salvador da qual fala o apocalipsismo; pois Jesus não se apresentou como juiz do mundo nem como salvador supranatural.” (BULTMANN, p. 67)

Entendido essa parte de que Jesus pregara sobre o Filho do Homem, outro componente relevante da tradição sinótica diz respeito à restauração de Israel durante o Reino de Deus.

Um componente importante da tradição de Jesus era o “arrependei-vos”, uma exortação à Teshuvá (‘arrependimento/‘retorno [à Torá]’) como uma maneira de evitar ou minorar uma catástrofe eminente, envolvendo uma invasão romana à Judéia. Veja a seguinte parábola de Jesus:

“E, Naquele mesmo tempo, estavam presentes ali alguns que lhe falavam dos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios.
E, respondendo Jesus, disse-lhes: Cuidais vós que esses galileus foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas?
Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.
E aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, cuidais que foram mais culpados do que todos quantos homens habitam em Jerusalém?
Não, vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.
E dizia esta parábola: Um certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha, e foi procurar nela fruto, não o achando;
E disse ao vinhateiro: Eis que há três anos venho procurar fruto nesta figueira, e não o acho. Corta-a; por que ocupa ainda a terra inutilmente?
E, respondendo ele, disse-lhe: Senhor, deixa-a este ano, até que eu a escave e a esterque;
E, se der fruto, ficará e, se não, depois a mandarás cortar.”(Lucas 13:1–9)

Luise Schotroff comenta da seguinte maneira:

“[A expressão] ‘Todos vós morrereis’ — para pessoas judaicas do primeiro século anterior à guerra judaico-romana, essa frase era expressão do temor que viesse a acontecer essa guerra com Roma. Jesus a temia (basta ver Marcos 13.2 e paralelos); também outros mestres judeus viram indícios da destruição do templo já quarenta anos antes da guerra [n. de rodapé: Yoma 39b], e Josefo atesta esse temor repetidamente. […] Em Lucas 13:1–5, Jesus fala da guerra iminente que ele, na tradição da Torá, interpreta como castigo de Deus pelo pecado do povo.” (SCHOTROFF, 2007, p. 75–76)

Nesse ponto, as afirmações de Jesus a respeito dessa guerra iminente de destruição por um invasor imperial estão bem em linha com a tradição profética da Bíblia Hebraica, onde os profetas falavam que Deus permitiria aos assírios e babilônios devastar Israel, e mesmo destruir o Templo, caso a desobediência à Torá persistisse.

Agora, chegamos num ponto sensível: o Templo. Ponto este que me permitirá chegar na comunidade apostólica original após a morte de Jesus. É bem claro que Jesus falou sobre a destruição e reconstrução do Templo. Nos sinóticos, isso aparece dentro da acusação feita contra Jesus no seu julgamento, enquanto, em João, isso aparece proferido por Jesus, indicando que bem cedo na tradição se falava de um dito de Jesus sobre a destruição do Templo seguida de uma reconstrução milagrosamente rápida (que duraria apenas 3 dias):

“Mas, por fim chegaram duas testemunhas falsas, E disseram: Este disse: Eu posso derrubar o templo de Deus, e reedificá-lo em três dias.” (Mateus 26:60,61; veja também Mateus 27:40)

“E, levantando-se alguns, testificaram falsamente contra ele, dizendo:
Nós ouvimos-lhe dizer: Eu derrubarei este templo, construído por mãos de homens, e em três dias edificarei outro, não feito por mãos de homens.” (Marcos 14:57,58; veja também Marcos 15:29)

“Responderam, pois, os judeus, e disseram-lhe: Que sinal nos mostras para fazeres isto?
Jesus respondeu, e disse-lhes: Derribai este templo, e em três dias o levantarei.
Disseram, pois, os judeus: Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu o levantarás em três dias?
Mas ele falava do templo do seu corpo.
Quando, pois, ressuscitou dentre os mortos, os seus discípulos lembraram-se de que lhes dissera isto; e creram na Escritura, e na palavra que Jesus tinha dito.” (João 2:18–22)

No caso dos Sinóticos, vemos que as testemunhas falsas nesse caso estariam distorcendo algo que Jesus realmente disse, mas que o dissera de outro jeito (sem a conotação de que Jesus iria derrubar o Templo, como concordam vários comentários cristãos). Vejo isso como a interpretação mais provável.

No caso do Evangelho de João, é interessante como o redator faz questão de explicar o que o dito de Jesus realmente significaria, num esforço de afastar a mais natural interpretação literal de uma reconstrução do Templo em 3 dias. Outra lição metodológica aqui: ao checar historicamente um evangelho, mais importa ver o dito em si atribuído a Jesus do que a moldura redacional colocada em torno do dito pelo escritor/redator, moldura na qual muitas vezes o redator coloca a SUA interpretação das palavras de Jesus.

Em todo caso, não era segredo que Jesus falasse da destruição do Templo:

“E, saindo ele do templo, disse-lhe um dos seus discípulos: Mestre, olha que pedras, e que edifícios!
E, respondendo Jesus, disse-lhe: Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada.” (Marcos 13:1,2; veja também Lucas 21:5–6 e Mateus 24:1–2)

Nós sabemos dos Atos dos Apóstolos que os judeu-cristãos da comunidade apostólica em Jerusalém chefiada por Tiago irmão do Senhor continuaram frequentando o Templo, e pelo menos uma vez é mostrado que participavam de seus rituais de oferendas:

“E no dia seguinte, Paulo entrou conosco em casa de Tiago, e todos os anciãos vieram ali.
E, havendo-os saudado, contou-lhes por miúdo o que por seu ministério Deus fizera entre os gentios.
E, ouvindo-o eles, glorificaram ao Senhor, e disseram-lhe: Bem vês, irmão, quantos milhares de judeus há que crêem, e todos são zeladores da lei.
E já acerca de ti foram informados de que ensinas todos os judeus que estão entre os gentios a apartarem-se de Moisés, dizendo que não devem circuncidar seus filhos, nem andar segundo o costume da lei.
Que faremos pois? em todo o caso é necessário que a multidão se ajunte; porque terão ouvido que já és vindo.
Faze, pois, isto que te dizemos: Temos quatro homens que fizeram voto.
Toma estes contigo, e santifica-te com eles, e faze por eles os gastos para que rapem a cabeça, e todos ficarão sabendo que nada há daquilo de que foram informados acerca de ti, mas que também tu mesmo andas guardando a lei.
Todavia, quanto aos que creem dos gentios, já nós havemos escrito, e achado por bem, que nada disto observem; mas que só se guardem do que se sacrifica aos ídolos, e do sangue, e do sufocado e da fornicação.
Então Paulo, tomando consigo aqueles homens, entrou no dia seguinte no templo, já santificado com eles, anunciando serem já cumpridos os dias da purificação; e ficou ali até se oferecer por cada um deles a oferta.” (Atos 21:18–26)

Aqui vemos 4 judeu-cristãos que tinham feito voto de nazireu e estavam indo oferecer a oferenda animal (sacrifício) respectivo ao fim do nazirato, e é dito mesmo explicitamente que o sacerdote ofereceu as ofertas animais em sacrifício desses cristãos! E tudo sob a tutela do irmão de Jesus, Tiago.

Portanto, até esse momento, não é possível afirmar que a comunidade apostólica original tivesse rejeitado o Templo, ou entendido que este fora tornado supérfluo ou mesmo pecaminoso após a morte de Jesus. Ao contrário, eles aguardavam com aperto no peito o dia em que o Templo seria destruído, mas na esperança que seria em seguida reconstruído…. por Jesus!

É esse o ponto-chave que faltava. O que nos impedia de ver o real caráter da crença messiânica original é que muitos de nós temos a premissa de que, desde a morte de Jesus, os apóstolos consideraram que o Templo havia esvaziado seu papel. Mas, ao contrário, a comunidade apostólica em Jerusalém nutria o máximo respeito pelo Templo*, enquanto se opunham à elite sacerdotal saducéia que dominara o Templo com apoio romano — no livro de Atos dos Apóstolos, é muito claro como os saduceus eram mais hostis aos cristãos, e como era com essa elite sacerdotal que os cristãos entravam em conflito (algo que já aparece nos próprios Evangelhos). Para se ter uma ideia, nessa época, os romanos apontavam o Sumo-Sacerdote!

Então, segue uma reconstrução da esperança messiânica original dessa comunidade apostólica.

Os romanos invadiriam Jerusalém e destruiriam o Templo. Em seguida, o Filho do Homem viria em toda a sua glória com os anjos destruindo a força armada romana e coroaria o Jesus ressuscitado como Rei Messias filho de Davi (alternativa = Jesus ao ressuscitar tornara-se o Filho do Homem no Céu e seria coroado Rei Messias filho de Davi quando aparecesse diante de todos na Terra). O direito de Jesus ao Trono Messiânico fora obtido ao custo do seu sangue: ao aceitar morrer nas mãos dos romanos, Jesus provara que tinha a coragem de morrer pelo seu povo, e, assim, se mostrava digno do cargo, passando no teste supremo de fidelidade à Aliança. A Casa Herodiana cai perante o Reino Davídico reconstituído. O Rei Messias Jesus reconstrói o Templo (milagrosamente em 3 dias) e reinstitui o sacerdócio, sem interferência romana e sem a elite saducéia. O Império Romano cai perante o Reino de Deus Triunfante e os gentios justos que já haviam aceitado Jesus como Rei Messias ao longo do Império se tornariam juízes das nações. Com isso Jesus também traz os remanescentes dispersos das 10 tribos de Israel que estavam perdidas entre todas as nações do mundo, e os 12 apóstolos se tornam os 12 cabeças das 12 tribos de Israel assim restauradas, dando fim definitivo ao exílio israelita. O Reino de Deus torna-se pleno sobre toda a terra, com a paz mundial e de todos os povos afluindo gente para ouvir Torá e rezar no Templo sob a direção do Rei Messias Jesus. Por fim, os mortos seriam ressuscitados e julgados conforme terem ou não praticado atos de justiça, nesse julgamento participando como juízes aqueles que, antes do reaparecimento de Jesus, já haviam aceito seu Reinado, tanto judeus como gentios. Israel está restaurado — o mundo inteiro está restaurado.

“Exodus”, Marc Chagal, 1952–1966. Nesta pintura vemos um artista judeu representando Jesus crucificado no contexto do retorno dos judeus ao que restou de suas casas após a 2ª Guerra Mundial e a terrível Shoá (Holocausto) onde milhões de judeus morreram. O símbolo da crucificação de Jesus nessa pintura identifica Jesus como um judeu perseguido entre tantos outros judeus que foram perseguidos ao longo da história, enfatizando simbolicamente a solidariedade de Jesus ao povo judeu — inclusive pela restauração de Israel.

Isso inclusive ajuda a explicar porque Tiago irmão de Jesus teria um papel importante na comunidade apostólica original de fala aramaica: sendo irmão de Jesus e ao que tudo indica o irmão mais velho entre os demais irmãos de Jesus (ele sempre é mencionado em primeiro lugar quando os Evangelhos mencionam os irmãos de Jesus), Tiago em condições ‘normais’ seria um sucessor legal de Jesus ao Trono. Pois pense: se um rei morre sem filhos, um irmão pode assumir o reinado. Então, considerando que os apóstolos acreditavam que Jesus fosse um descendente de Davi com aspiração legítima ao Trono Davídico, a preponderância de um irmão biológico de Jesus no movimento em Jerusalém após Jesus ter morrido faz muito sentido — para além do próprio valor pessoal de Tiago. E Maria seria uma (aspirante a) Rainha-Mãe, enquanto esteve viva e ativa na comunidade.

A questão do número de apóstolos ser 12 mostra a esperança na restauração de Israel à configuração de 12 tribos que existira antes dos exílios assírio e babilônico. Cada um dos apóstolos originais (com Matias substituindo Judas Iscariotes) tornaria-se o cabeça de uma das tribos israelitas.

“Então Pedro, tomando a palavra, disse-lhe: Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos; que receberemos?
E Jesus disse-lhes: Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel.
E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor de meu nome, receberá cem vezes tanto
, e herdará a vida eterna.” (Mateus 19:27–29)

O livro do Apocalipse, que apesar de posterior à destruição do Templo, consegue preservar uma teoria judeu-cristã bem similar àquela que expus acima (veja PAGELS, 2012, e ENCYCLOPAEDIA JUDAICA, 1906; futuramente farei post só sobre esse livro), também nos dá um reflexo disso:

E vi tronos; e assentaram-se sobre eles, e foi-lhes dado o poder de julgar; e vi as almas daqueles que foram degolados pelo testemunho de Jesus, e pela palavra de Deus, e que não adoraram a besta, nem a sua imagem, e não receberam o sinal em suas testas nem em suas mãos; e viveram, e reinaram com Cristo durante mil anos. […] serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele mil anos.” (Apocalipse 20:4,6)

E Paulo fornece evidência de que também os gentios convertidos teriam um papel de julgamento entre aqueles povos dos quais vieram:

“Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas?
Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida?” (1 Coríntios 6:2,3)

Falando em Paulo, apesar de eu nesse momento não entrar no mérito de como exatamente ele se relacionava com a concepção original da comunidade apostólica de fala aramaica, também nele vemos a influência dela, uma vez que Paulo, apesar de muito diferente de Tiago, também esperava a restauração de Israel:

“Digo, pois: Porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum; porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim.
Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu” (Romanos 11:1,2)

“Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado.
E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, E desviará de Jacó as impiedades.
E esta será a minha aliança com eles, Quando eu tirar os seus pecados.” (Romanos 11:25–27)

Então, essa me parece ser a teoria messiânica original pós-morte de Jesus até a destruição do Templo, dentro da comunidade apostólica judeu-cristã de fala aramaica chefiada por Tiago irmão de Jesus. Como é possível ver, tal teoria ainda estava bem dentro do judaísmo. Mas por que mudou? No futuro farei um post mais detalhado sobre isso. Mas o que posso antecipar aqui é que uma das causas foi a própria destruição do Templo. Sim, essa destruição era esperada. O problema é que se esperava uma reconstrução do Templo logo em seguida. Quanto mais tempo foi passando (meses, anos, décadas…) sem que os eventos apocalípticos restaurativos acontecessem, mais havia incentivo para a teoria messiânica mudar em resposta isso — e em diferentes direções por diferentes comunidades. O Novo Testamento mesmo é testemunha de que a plena instalação do Reino de Deus era esperada para a própria geração apostólica:

“[Jesus disse:] Porque o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então dará a cada um segundo as suas obras.
Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino.” (Mateus 16:27,28)

“Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder.” (Marcos 9:1)

“Porque, qualquer que de mim e das minhas palavras se envergonhar, dele se envergonhará o Filho do homem, quando vier na sua glória, e na do Pai e dos santos anjos.
E em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte até que vejam o reino de Deus.” (Lucas 9:26,27)

Aqui é interessante porque Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito e provavelmente após a destruição do Templo, já modifica redacionalmente o significado do dito de Jesus. Marcos justapõe essa fala de Jesus ao relato (privado, não-público) da Transfiguração de Jesus diante de 3 apóstolos selecionados. Com essa interpretação, se resolveria o problema de que, ao tempo de Marcos, a geração apostólica já tinha praticamente toda morrido, e acontecimentos importantes já tinham acontecido (como a própria destruição do Templo), mas o Reino de Deus em toda a sua glória não havia ainda sido estabelecido***. Ou seja, ao invés de ser necessário que tudo se cumprisse na geração apostólica, a transfiguração perante discípulos selecionados já satisfaria a profecia. Aí Mateus e Lucas simplesmente repetem essa interpretação de Marcos, pois nesse ponto seguem a mesma estrutura marcana (a essa fala de Jesus é seguido o relato da transfiguração).

Apesar disso, os evangelhos ainda preservam o ritmo do entendimento original, pelo qual, brevemente após a destruição do Templo, viria o Filho do Homem. Vou transcrever o trecho de Mateus abaixo, mas o mesmíssimo trecho está em Marcos e em Lucas também:

“E, quando Jesus ia saindo do templo, aproximaram-se dele os seus discípulos para lhe mostrarem a estrutura do templo.
Jesus, porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada.
E, estando assentado no Monte das Oliveiras, chegaram-se a ele os seus discípulos em particular, dizendo: Dize-nos, quando serão essas coisas, e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo?
E Jesus, respondendo, disse-lhes: […]
Quando, pois, virdes que a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel, está no lugar santo; quem lê, entenda;
Então, os que estiverem na Judéia, fujam para os montes;
E quem estiver sobre o telhado não desça a tirar alguma coisa de sua casa;
E quem estiver no campo não volte atrás a buscar as suas vestes.
Mas ai das grávidas e das que amamentarem naqueles dias!
E orai para que a vossa fuga não aconteça no inverno nem no sábado;
Porque haverá então grande aflição, como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, nem tampouco há de haver.

E, se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria; mas por causa dos escolhidos serão abreviados aqueles dias.
[…]
Porque, assim como o relâmpago sai do oriente e se mostra até ao ocidente, assim será também a vinda do Filho do homem.
Pois onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão as águias.
E, logo depois da aflição daqueles dias, o sol escurecerá, e a lua não dará a sua luz, e as estrelas cairão do céu, e as potências dos céus serão abaladas.
Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão o Filho do homem, vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória.
E ele enviará os seus anjos com rijo clamor de trombeta, os quais ajuntarão os seus escolhidos desde os quatro ventos, de uma à outra extremidade dos céus
.
Aprendei, pois, esta parábola da figueira: Quando já os seus ramos se tornam tenros e brotam folhas, sabeis que está próximo o verão.
Igualmente, quando virdes todas estas coisas, sabei que ele está próximo, às portas.
Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam.” (Mateus 24:1–34; veja também Marcos 13:1–30 e Lucas 21:20–32)

Segundo o trecho acima de Mateus, também presente em Marcos e Lucas, ainda existe uma expectativa nos Evangelhos Sinóticos de que tudo aconteceria naquela mesma geração, mesmo que o dito de Jesus mais forte (o que falava dos apóstolos especificamente) tenha sido reinterpretado como falando da transfiguração privada de Jesus.

É essa expectativa que vai acabar se desintegrando entre a destruição do Templo em 70 EC e a guerra judaico-romana em 135 EC. E por isso será esse próximo período o decisivo no rompimento entre cristãos e judeus, cujo carro-chefe estará entre os gentio-cristãos espalhados pelo Império, que também nesse período se tornarão maioria demográfica absoluta, relegando os judeu-cristãos a um papel secundário no desenvolvimento do cristianismo. As comunidades judeu-cristãs persistiram pelo menos até o 5º século, mas serão vistos como heréticas pela Igreja (Gentio-)Cristã Proto-Ortodoxa, e seus evangelhos em aramaico e talvez em hebraico foram perdidos.

*Esse é um dos motivos inclusive para o Evangelho de João não ser muito útil à reconstrução histórica, pois nesse ponto ele fortemente contradiz os Sinóticos.

**Sobre a questão da relevância do Templo para a comunidade apostólica original, recomendo o livro “The Temple in Early Christianity: experiencing the sacred” (2019) por Eyal Regev. Em português temos o livro “À Sombra do Templo: as influências do judaísmo no cristianismo primitivo” (2004) por Oskar Skarsaune que também traz muitas informações e discussões úteis (esse é interessante por mostrar que mesmo um pesquisador bastante ‘teologicamente conservador’ em relação ao texto neotestamentário ainda chega nessas conclusões a respeito da importância do Templo para os primeiros cristãos).

***Note que não muda muito se o evangelho de Marcos tiver sido escrito poucos anos antes da destruição do Templo. Nesse caso o mesmo problema ainda estaria sendo enfrentado mesmo antes da destruição do Templo: como pode ser que praticamente todos os apóstolos já se foram (inclusive Tiago irmão de Jesus, em 62 EC) e o Reino de Deus ainda não foi manifestado (tanto que nem sequer o Templo foi destruído ainda)?

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A Estrela da Redenção
A Estrela da Redenção

Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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