[63] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 10- Abominação? A Tradução de Toevah

A Estrela da Redenção
7 min readOct 20, 2020

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Como vimos no post anterior, temos três motivos centrais que levaram ao livro de Levítico conter uma proibição ao sexo anal entre homens. O primeiro destes era a luta contra a adoção pelos hebreus antigos de ritos sexuais da idolatria dos povos circundantes.

Antes de entrar na questão de que idolatria seria essa, deve ser esclarecido que CLARAMENTE os trechos de Levítico dizem respeito à idolatria ou, no mínimo, a algum tipo de violação ritual.

A dica nos é sugerida pelo uso do termo ‘toevah’ no original hebraico, geralmente traduzido como ‘abominação’:

“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação [toevah] é;” (Levítico 18:22)

Entretanto, esta tradução de ‘toevah’ como ‘abominação’ nesse contexto tem para nós uma conotação enganadora. Soa que estamos falando de um ato moralmente odioso. Entretanto, toevah geralmente não diz respeito a violações de regras morais, e sim de ofensas rituais.

Veja o caso do profeta Ezequiel, sendo levado numa visão mística a descobrir o que acontecia em segredo no Templo Sagrado, numa atmosfera arrepiante:

“E disse-me: Filho do homem, vês tu o que eles estão fazendo? As grandes abominações que a casa de Israel faz aqui, para que me afaste do meu santuário? Mas ainda tornarás a ver maiores abominações.
E levou-me à porta do átrio; então olhei, e eis que havia um buraco na parede.
E disse-me: Filho do homem, cava agora naquela parede. E cavei na parede, e eis que havia uma porta.
Então me disse: Entra, e vê as malignas abominações que eles fazem aqui.
E entrei, e olhei, e eis que toda a forma de répteis, e animais abomináveis, e de todos os ídolos da casa de Israel, estavam pintados na parede em todo o redor.
E estavam em pé diante deles setenta homens dos anciãos da casa de Israel, e Jaazanias, filho de Safã, em pé, no meio deles, e cada um tinha na mão o seu incensário; e subia uma espessa nuvem de incenso.
Então me disse: Viste, filho do homem, o que os anciãos da casa de Israel fazem nas trevas, cada um nas suas câmaras pintadas de imagens? Pois dizem: O Senhor não nos vê; o Senhor abandonou a terra.” (Ezequiel 8:6–12)

O livro de Ezequiel tem uma conexão importante com a escola Sacerdotal responsável pela redação do livro de Levítico. Ambos tratam de temas ligados ao Santuário (Mishkan) do antigo Israel. O Santuário e as leis de pureza ritual vinculados a ele são um antídoto para a idolatria, representando o divino de forma muito diferente da maneira que os povos circundantes o concebiam.

“The Tabernacle in the Wilderness” [O Tabernáculo/Santuário no Deserto], ilustração da Holman Bible, 1890.

No intuito de manter os israelitas apartados da idolatria, o livro de Levítico visa apartá-los de costumes feitos entre os povos circundantes (caananitas para cuja terra foram e egípcios de cuja terra saíram). Este é o contexto imediato de Levítico 18:22 no qual aparece a palavra toevah.

Antes: “Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual vos levo, nem andareis nos seus estatutos.” (Levítico 18:3)

Depois: “Porém vós guardareis os meus estatutos e os meus juízos, e nenhuma destas abominações fareis, nem o natural, nem o estrangeiro que peregrina entre vós; Porque todas estas abominações fizeram os homens desta terra, que nela estavam antes de vós; e a terra foi contaminada.” (Levítico 18:26,27)

O texto entre ambos os trechos proíbe, em ordem: várias formas de incesto (6-17), poligamia com duas irmãs (18), relação sexual durante a menstruação (19), adultério (20), sacrifício infantil ao deus Moloque (21), sexo anal entre dois homens (22), relação sexual com um animal (23).

Uma coisa curiosa dessa lista é que a própria Torá admite que alguns conceitos presentes aí podem ser relativizados a depender do tempo, lugar ou povo.

O livro do Gênesis pressupõe que o incesto entre irmãos foi permitido entre os primeiros humanos uma vez que todos teriam vindo de Adão e Eva. Isso incluiria à primeira vista mesmo Abraão, um dos patriarcas do povo judeu (Avraham Avinu, Padre querido, Padre bendicho, Luz de Yisrael!), com sua meia-irmã Sara, uma das matriarcas do povo judeu (entretanto, a tradição judaica a interpretou como sobrinha de Abraão assim amenizando essa dificuldade).

Já a regra sobre menstruação (leis de Nidá, ou de pureza familiar, dentro da Lei Judaica tradicional) seria aplicada apenas aos casamentos judaicos, não aos de outros povos.

Um caso ainda mais curioso é o da narrativa sobre Jacó (novamente, um patriarca do povo judeu), que foi casado com duas irmãs, Raquel e Leia (novamente, duas matriarcas do povo judeu).

Claro que o simples fato de Jacó ter feito isso não o justifica, uma vez que os patriarcas são retratados costumeiramente como humanos falíveis que Deus mesmo assim escolhe. Segundo um midrash do Talmude, Jacó não poderá fazer o Birkat Hamazon (benção da refeição) no Seudat Chiyat HaMatim (o grande banquete que haverá no mundo vindouro, onde a carne do Leviatã será servida aos justos) justamente por ter casado com duas irmãs (Pesachim 119b).

Mas na discussão medieval o Ramban (Nahmânides) tentou explicar tal casamento com irmãs sob a ideia de que, mesmo se os patriarcas já guardassem a Torá antes de sua entrega no futuro (com Moisés), eles somente obedeciam a todos os seus mandamentos quando estavam na terra de Israel! Aqui vemos a relatividade temporal e espacial atuando juntas.

Essas considerações sobre a lista ajudam a mostrar que o peso dessas ‘abominações’ depende do contexto, seja dum ato muito grave como o sacrifício infantil seja dum ato mais banal como a relação sexual durante a menstruação. Isso ocorre porque toevah não significa o mais alto grau de reprovação numa escala linear de caráter moral, mas sim um estigma por associação com práticas idólatras ou de povos idólatras, no contexto bíblico original.

Note que Levítico 11 chama os animais impuros de ‘abominações’ também (enquanto nesse contexto ‘toevah’ não seja usado exceto por um verbo derivado no verso 41 para o caso dos insetos, no restante sendo usado um termo aparentado, ‘shequets’) e Deuteronômio 14:3 usa ‘toevah’ diretamente para designar todos os alimentos impuros (uma lista similar a de Levítico 11 e repetida em Deuteronômio 14).

Ninguém pensaria que comer porco ou camarão (cuja proibição é direcionada apenas ao povo judeu) seria um defeito moral odioso. Mas eles são ‘abominação’, porque direta ou indiretamente se ligavam aos povos que praticavam a idolatria da qual Levítico tenta separar os antigos israelitas.

Assim, uma tradução mais correta para toevah, especialmente no contexto de Levítico e Ezequiel, seria ‘tabu’*. Esse termo consegue captar tanto o aspecto de interdito como o aspecto ritual dessa categoria. O que é associado ou associável à idolatria é tabu.

Agora alguém poderia objetar: “Ok mas na lista de Levítico 18 fala de de atos claramente imorais como adultério ou sacrificar crianças. Então, toevah para eles não significaria ‘imoral’? Caso contrário, estaríamos dizendo que adultério ou sacrificar crianças não é imoral. E, se temos de entender como algo imoral neles, por que não significaria o mesmo para o sexo anal entre homens?”

Bem, o erro está em dizer que o significado da palavra mudaria. Dizer que algo é toevah é dizer apenas que algo é tabu. Mas esse algo que é tabu pode ser também uma infração moral ou qualquer outra coisa. Isso é possível. Mas para sabermos nós temos que PENSAR e pode ser que SEJA OU NÃO. A palavra toevah ali não decide isso por nós como costumeiramente se sugere.

Em termos da Bíblia em si, o fato de proibições como a do adultério e assassinato serem repetidas em contextos sem nenhuma relação com a idolatria lançam luz sobre o caráter moral mais geral dessas proibições bíblicas ao adultério e ao sacrifício infantil.

Agora, os 2 trechos sobre sexo anal entre homens, isolados como estão sem nenhum tipo de repetição em algum outro contexto exceto esse de ‘não copiar as práticas idólatras dos povos vizinhos’, não nos permitem afirmar a mesma coisa sobre essa proibição, muito menos sobre a homossexualidade em geral (incluindo aquelas em contextos muito diferentes de como ela era vivida no mundo antigo).

E não precisamos nos ater apenas a Bíblia. Temos fortes razões morais independentes para condenar adultério ou assassinato, ou seja, independentemente se tais proibições aparecem ou não na Bíblia e se nela são tratadas ou não em termos morais. Mas para a homossexualidade não temos nenhuma razão para sua condenação moral à parte da própria leitura fundamentalista descontextualizada desses trechos.

No próximo post veremos a razão que liga a prática homossexual masculina do sexo anal com a idolatria no contexto do antigo Israel e que, assim, levou à designação de toevah em Levítico: a prostituição ritual masculina.

*O livro de provérbios usa o termo ‘toevah’ de forma mais livre, porque o contexto deste livro reside na sabedoria pratica seja moral ou prudencial. Como nessa bela passagem:

“Estas seis coisas o Senhor odeia, e a sétima a sua alma abomina:
Olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, O coração que maquina pensamentos perversos, pés que se apressam a correr para o mal, A testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia contendas entre irmãos.” (Provérbios 6:16–19)

Entretanto, mesmo que no livro de provérbios o termo não seja usado para o que veríamos como infrações rituais, ainda me parece recair num significado traduzível como ‘tabu’, só que aplicado de uma forma extensiva num contexto moral porque este livro não se ocupa de contextos rituais.

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.