[187] Deus NÃO ordenou genocídios — Parte 1: Introdução

A Estrela da Redenção
5 min readJan 16, 2022

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Um dos propósitos primários desse blog é mostrar quão errada é a caricatura que as pessoas tem do Deus do “Velho” Testamento como sendo cruel e punitivo. Ao contrário, como já demonstrei em inúmeros textos aqui, o Deus do “Velho” Testamento (como a Bíblia Hebraica é vulgarmente chamada) é acima de tudo uma Divindade Libertadora, cuja esfera central de atuação é a libertação dos oprimidos em relação a seus opressores — e o grande problema é que Ele demora demais a agir, sendo excessivamente paciente (“tardio em irar-se”).

Essa discussão sobre a caricatura que as pessoas criaram a respeito do Deus do “Velho” Testamento não poderia ser completa sem discutirmos a ideia muito propagada por aí de que, no “Velho” Testamento, Deus teria ordenado o extermínio (“genocídio”, em termos modernos) de populações inteiras de cananeus e de amalequitas, incluindo mulheres, crianças e mesmo bebês! Nessa série irei mostrar que isso é incorreto de uma perspectiva tradicionalíssima e milenar a respeito dos textos em questão (complementada quando for o caso pela pesquisa acadêmico-moderna).

Infelizmente, a maioria das fontes que as pessoas encontram sobre isso partem da polêmica entre neo-ateus e apologetas cristãos conservadores. Ambos tratam como se fosse fato que, nos textos pertinentes da Bíblia Hebraica, Deus teria ordenado matar todos os indivíduos desses povos, inclusive mulheres e crianças, sem deixar sobrar ninguém, e que, caso um israelita não matasse tais mulheres e crianças, seria um pecador condenável. A diferença é que os neo-ateus corretamente entendem que tal concepção redundaria numa monstruosidade moral (o erro deles é achar que tal monstruosidade moral realmente estaria implicada nos textos), enquanto parte dos apologetas cristãos conservadores seguem o caminho perigoso de que o bem é aquilo que Deus ordena, e, portanto, se Deus ordenou naquele contexto matar aquelas mulheres e crianças, então era moralmente correto matar aquelas mulheres e crianças (correlatamente, seria moralmente errado não mata-las).

Minha discussão sobre o tópico girará em torno de dois elementos principais: 1) a análise textual-literária, com especial destaque para onde tais trechos “macabros” aparecem e o que de fato está escrito neles; 2) a jurisprudência judaica (Halacha) pertinente, uma vez que os textos bíblicos-hebraicos dentro da cultura de sua escrita (a judaica) demandam raciocínio e discussão a respeito de como realmente devem ser aplicados na prática, portanto, o texto em si é o começo de uma discussão, não seu fim.

“The Trial” [O Julgamento], Wolfgang Letti, 1981.

Em primeiro lugar, temos de levar em conta que NENHUM texto da Torá que representa uma fala divina (seja de forma mais precisa ou não) ordena matar mulheres e crianças. Os trechos da Torá que são usados como se dissessem isso (e ainda assim, não dizem isso!) são todos do livro do Deuteronômio, que não pretende representar falas divinas, mas sim discursos do próprio Moisés elaborando seu entendimento dos preceitos (mitzvot).

Onde estão os trechos que realmente parecem implicar numa ordem para matar mulheres e crianças dos cananeus e amalequitas? Todos esses estão na próxima seção da Bíblia Hebraica, os Neviim (Profetas), mais especificamente no livro de Josué (para os cananeus) e no livro de Samuel (para os amalequitas). Isso significa que os trechos responsáveis por essa confusão são todos da chamada História Deuteronomista, os livros históricos dos Neviim que apresentam uma continuidade direta com o livro do Deuteronômio (coincidência?). Iremos analisar com atenção o que está em jogo nesses textos.

O restante dos Neviim (com seus 15 Profetas Literários) e praticamente todos os Ketuvim (a terceira e última seção da Bíblia Hebraica, que contém, p. ex. o livro dos Salmos) são notadamente silentes em relação a essa ideia de extermínio completo das populações cananéias e amalequitas. Como irei comentar, esse silêncio estridente tem um motivo evidente: tais seções não compactuam nem mesmo com algo próximo a essa ideia.

Em segundo lugar, os preceitos a respeito dos cananeus e dos amalequitas fazem parte da Lei Judaica, que é muito mais do que meramente um copia e cola cego do texto bíblico. A Lei Judaica é uma JURISPRUDÊNCIA, pela qual o povo judeu ao longo de milênios tem desenvolvido como seria a real aplicação prática dos preceitos da Torá com base em casos concretos (precedentes) e raciocínio lógico. (veja posts [107]-[110]-[111])

No caso em questão, os trechos da Torá e dos Neviim que abordam essa questão dos cananeus e dos amalequitas não podem ser lidos sem levar em conta todo o restante do corpus de preceitos da Torá. Na medida em que a Torá normatizou a guerra, é necessário ler os trechos relativos aos cananeus e aos amalequitas como exceções muito específicas que ‘excepcionam’ o caso geral da forma mais mínima possível, sob pena de que as regras da guerra com cananeus e amalequitas se tornassem incoerentes com o restante da Torá. O mesmo vale para os princípios referentes à Teshuvá (arrependimento) e às Leis de Noé, enquanto regras universais de comportamento humano.

Nesse sentido, a Jurisprudência Judaica concluirá que a ocorrência real de tal extermínio deveria ser evitada ao máximo. Esse resultado (o extermínio total) não é efetivamente desejado nem visto como correto ou bom. Ou seja, esse resultado não é ordenado por Deus, enquanto admita-se que tal resultado colateral poderia acontecer em face de certas circunstâncias (no que, em termos jurídicos-modernos, recairia uma isenção de punibilidade, mas sem retirar a ilicitude intrínseca ao ato).

Só que, indo pruma análise mais histórica fazendo convergir o primeiro e o segundo elemento, chegaremos na conclusão de que toda essa jurisprudência e os textos das quais elas partem no livro de Deuteronômio, Josué e Samuel são basicamente uma discussão hipotética e fictícia. Muito provavelmente tais massacres nunca aconteceram (algo que a própria narrativa bíblica já estabelecia sutilmente). E as regras que poderiam muito excepcionalmente dar brecha a esse resultado macabro se tornaram inaplicáveis antes mesmo que o livro de Deuteronômio viesse a ser escrito (ou ‘redescoberto’, se seguirmos a narrativa tradicional). De fato, iremos ver que a razão para essa discussão hipotética-fictícia ser trazida nos textos não tinha a ver com sua aplicação concreta, mas sim com um intuito pedagógico e literário (por mais estranho que nos pareça usar tal método hoje em dia).

Então, os próximos textos irão elucidar tudo isso. O resultado será demonstrar que Deus NUNCA ordenou genocídios ou extermínios totais na Bíblia Hebraica. Ao contrário, a principal vítima de tentativas de extermínio tanto na narrativa bíblica como na história que lhe sucedeu foram os próprios judeus (veja o post [26], onde falo que a Bíblia Hebraica se tornou tão distinta e singular justamente por refletir sobre a possível extinção de seu próprio povo em termos muito concretos e reais). Portanto, a polêmica em torno disso errou o alvo completamente: no caso em questão, os cananeus e os amalequitas é que foram os opressores primários, não os israelitas (que foram por aqueles oprimidos até que conseguiram dar a volta por cima).

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.