[97] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 44- Arsenokoitai seriam homossexuais? (Paulo)
No último post comentei que dois termos usados por Paulo estão no centro do debate sobre como a questão homossexual seria tratada no Novo Testamento, a saber, ‘malakoi’ e ‘arsenokoitai’. Os termos aparecem em duas listas:
“Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos [pornoi], nem os idólatras, nem os adúlteros [moichoi], nem malakoi, nem arsenokoitai, nem ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.” (1 Coríntios 6:9,10)
“Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os devassos [pornoi], para arsenokoitai, para os roubadores de homem [andrapodistai], para os mentirosos, para os perjuradores, e para o que for contrário à sã doutrina.” (1 Timóteo 1:9,10)
Comentei também que teríamos de analisar separadamente esses termos porque ‘malakoi’ tem um significado e referência mais claro, enquanto ‘arsenokoitai’ é mais disputado quanto ao significado e à referência.
No post anterior falei especificamente sobre ‘malakoi’ e mostrei que esse termo como usado no grego da época não tem uma conotação primariamente sexual, muito menos homossexual. Agora é a hora de falar sobre ‘arsenokoitai’.
Bem, aqui estamos diante de um termo muito curioso porque ele não existe em nenhuma fonte não-cristã, e não possui nenhum uso anterior a esse que vemos em 1Coríntios (e depois em 1Timóteo). Ou seja, em enorme contraste ao caso de ‘malakoi’, alguém que conhecesse o grego da época chegaria nessas listas e se depararia com um termo nunca dantes visto!
Esse fato por si só já é um balde de água fria naqueles que acham que nós temos absoluta certeza que aqui o objetivo de Paulo era condenar os homossexuais de forma absoluta. O termo em questão é muito idiossincrático para permitir um veredicto tão forte!
Mas de onde veio esse termo? O que sabemos com certeza é que a comunidade cristã em Corinto teria conhecido esse termo em anterioridade à carta de 1Coríntios, afinal, não haveria sentido algum em Paulo usar um termo desconhecido para os Coríntios que não é definido em nenhum momento da carta!
Alguns defendem que o próprio Paulo que foi o criador desse termo. Então, talvez ele tenha cunhado e explicado esse termo na sua carta aos Coríntios anterior à de 1Coríntios (essa carta ‘zero’ foi perdida), ou então o fez quando da evangelização original em Corinto (e aí ficaria a dúvida se ele teria comunicado tal conceito ou não em outros lugares, pois suas outras cartas do período são silentes a respeito disso). Ao tempo de 1Timóteo, uma carta tardia (seja escrita pelo próprio Paulo no final de sua vida ou muito depois de sua morte por discípulos de Paulo), o conceito já estaria consolidado nas comunidades fundadas por Paulo e foi repetido ali.
Outros defendem que Paulo teria usado um termo já em uso nas comunidades de judeus helenistas da Diáspora. Aqui um parênteses deve ser feito: a evangelização feita por Paulo só foi possível porque havia na época sinagogas de judeus helenistas em todas as grandes cidades do Império, sendo o próprio Paulo um judeu helenista. Por ‘judeu helenista’, estamos falando de judeus que viviam fora da terra de Israel e não sabiam falar as línguas nativas dos judeus (hebraico e aramaico), por isso seu acesso aos textos sagrados era limitado à tradução grega que já mencionamos, a Septuaginta.
Nós ainda teremos mais o que falar sobre a importância do judaísmo helenista para os rumos do cristianismo, ao ponto que poderemos mesmo dizer que o cristianismo foi um filho desse judaísmo helenista, não do judaísmo nativo que desembocou mais tarde no judaísmo rabínico como o conhecemos (mesmo que Jesus e seu círculo íntimo original continuado por seu irmão Tiago fossem judeus nativos). Mas por enquanto, basta que você entenda que essas comunidades judaicas eram falantes do grego e eram influenciadas pela cultura helenista na qual estavam imersos geográfica e linguisticamente.
Então, segundo essa hipótese, o termo ‘arsenokoitai’ já seria de uso corrente na comunidade judaica-helenista de Corinto antes mesmo de Paulo chegar nela, e daí sua naturalidade em usá-lo sem fornecer nenhum tipo de explicação. O grande problema dessa hipótese é que nós não encontramos esse uso em nenhum documento judaico-helenista da Antiguidade, com exceção do próprio Paulo! Então neste post assumirei a hipótese mais segura, atribuindo ao próprio Paulo a cunhagem do termo.
Tanto entre os defensores da origem paulina como da origem judaico-helenista desse termo, alguns ainda acrescentam a tese de que tal termo é uma derivação direta da tradução grega de Levítico pela Septuaginta, justamente retirado do trecho no qual há a proibição de um homem se deitar com outro homem como se fosse mulher (isto é, a proibição do sexo anal entre homens):
“meta [com] arsenos [homens] ou koimeeteesee [não deitarás] koiten [na cama] gynaikos [mulher]” (Levítico 18:22)
Lembrem do post [56] no qual expliquei que numa tradução grosso modo o versículo fica ‘com homem não deitarás na cama de mulher’, o que significa ‘com homem não deitarás como deita com mulher’. Por isso a tradução grega usa ‘koiten’, um termo para cama aqui.
Sob essa hipótese, Paulo ou alguns judeus helenistas teriam juntado as palavras ‘arsenos’ e ‘koiten’ encontrada nesse verso da Septuaginta, e criado o termo ‘arsenokoites’ (do qual ‘arsenokoitai’ é o plural).
Enquanto seja possível que a origem etimológica da palavra realmente esteja relacionada à tradução da proibição de Levítico, Dale B. Martin nos alerta que linguisticamente é frágil você deduzir o significado de uma expressão a partir de sua etimologia: a etimologia de uma palavra é sua história, não seu significado (Martin, 1996, p. 2). Para um exemplo, quando usamos a palavra ‘guarda-chuva’, você não pensa em ‘guardar’ e ‘chuva’ separadamente (o que nos levaria a pensar em algo que armazenaria a chuva), mas sim em algo que nos protege da chuva.
A melhor maneira de decifrar o significado dessa expressão, então, é examinar seus usos em diferentes documentos, que nesse caso serão inteiramente cristãos, de Paulo em diante.
Com base nessa análise, quatro hipóteses foram propostas no meio acadêmico e ainda são muito discutidas: exploração sexual (cafetinagem/prostituição cultual), pederastia, sexo não consensual entre homens (estupro) ou sexo consensual entre homens (homossexualidade). (veja Torres, 2012)
O significado desse termo está longe de ser unânime entre os estudiosos. A ideia de que ‘arsenokoitai’ se refere ao sexo consensual entre homens como tal é apenas uma entre quatro hipóteses principais levantadas para esse termo, e não necessariamente a melhor delas.
Considerando apenas isso já seria suficiente para concluirmos que traduzir ‘arsenokoitai’ como ‘sodomitas’ ou ‘homossexuais ativos’ ou ‘homossexuais’ é claramente tendencioso, onde o tradutor está decidindo por você qual dessas é a hipótese mais plausível — e além disso introduzindo termos cuja conotação é diferente da que Paulo estaria dando mesmo se a hipótese de ‘arsenokoités’ como ‘sexo (anal) consensual entre homens’ fosse a correta!
Reforçando: mesmo se a hipótese de ‘arsenokoités’ como ‘sexo (anal) consensual entre homens’ fosse a correta (ainda discutiremos se é mesmo ou não), seria uma tradução tendenciosa usar o termo ‘homossexual’. O motivo é que a concepção de orientação sexual moderna é muito recente, e ela faz parte da conotação do termo ‘homossexual’. Além disso, não haveria no termo grego uma condenação à homossexualidade masculina como tal, mas sim ao sexo anal entre homens, cuja relação entre ativo e passivo era objeto de muita discussão na cultura greco-romana como um todo (ver post [72]).
Assim, mesmo se a hipótese de ‘arsenokoités’ como ‘sexo (anal) consensual entre homens’ fosse a correta, isso não permitiria concluir nada sobre outras formas de expressão homoerótica, sejam as homoeróticas não penetrativas entre homens ou sejam quaisquer formas homoeróticas entre mulheres.
E isso parece o mais natural considerando que, na Bíblia Hebraica, o objeto da proibição de Levítico era apenas e exclusivamente o sexo anal entre homens. A extensão de uma proibição para outros atos sexuais entre homens ocorreu apenas via expansão rabínica para que se evitasse a prática do ato realmente proibido (o sexo anal), pondo uma cerca ao redor dessa proibição bíblica, e dentro da tradição rabínica é um ato bem menos grave que o sexo anal entre homens.
Se ‘arsenokoitai’ significasse o sujeito (provavelmente ativo como veremos adiante) do sexo anal entre homens em 1Coríntios e 1Timóteo, isso apenas significaria que Paulo explicitamente estaria validando a proibição de Levítico — mas não nos indica se ele aceitava a proibição expandida oriunda da tradição rabínica* (até porque nem sequer sabemos se naquele período referida expansão já era unânime na tradição judaica!), ou sob que status a aceitaria (se como uma nova proibição de cunho bíblico ou como uma proibição equivalente à rabínica mas agora em termos de cercas eclesiásticas, etc.), ou qual gravidade ele daria para esses outros atos seja sob qual status fossem entendidos como proibidos. Nessa parte ficaríamos apenas com interrogações, nada como um banimento cabal e explícito como os teólogos fundamentalistas tendem a pensar.
Agora, essa hipótese de ‘arsekonoités’ como ‘sexo anal consensual entre homens’ é realmente a mais adequada entre as quatro discutidas na literatura? Ao que tudo parece indicar, penso que não (ainda mais quando entendida de forma simplista e anacrônica). O motivo é que a maneira que o sexo anal entre homens era encarado na antiguidade era muito diferente de como vemos hoje, sendo associado a uma relação hierárquica entre ativo e passivo.
Como mostrei no post [72], nos mundos grego e romano antigos a sexualidade era vista como uma relação de poder ou dominação:
- Um homem cidadão livre poderia ter relação sexual com um escravo, um garoto ou uma mulher, mas não com um cidadão de igual status (o qual era mesmo legalmente processável);
- A divisão era entre penetradores, homens, e penetrados, mulheres ou homens, organizados hierarquicamente de modo que a que o penetrador seja superior ao penetrado, o qual sempre é um subordinado;
- Um homem cidadão que tivesse se subordinado sexualmente a um igual era rebaixado socialmente à categoria das mulheres, estrangeiros e escravos, e tinha sua cidadania perdida ou restringida.
(Veja Greenberg, 2004, p. 196–197, citando nomes como Kenneth James Dover, Eva Canterella, Michael Foucault, Daniel Boyarin e David Halperin, e o Volume 1 da História da Vida Privada, para entender quão consensual e bem atestado é esse panorama)
Então mesmo se Paulo tivesse em mente uma relação ‘consensual’ de sexo anal entre homens, ainda assim ele não teve em mente relações consensuais no sentido mais forte que temos em mente hoje em dia quando discutimos essa questão. Com toda probabilidade ele tinha em mente essas relações ‘consensuais’ que haviam em sua época, vivenciadas num contexto hierárquico (ou seja, com certos ‘vícios de consentimento’ e em alguns casos mesmo sem consentimento algum). Isso não nos diz nada sobre como Paulo veria as relações consensuais de sexo anal entre homens num contexto não-hierárquico, ainda mais se fosse afetivo, pois Paulo nunca teve a oportunidade de pesar e avaliar tais casos.
Dale Martin (1994) salienta ainda que, num exame dos documentos cristãos a respeito da arsenokoitia, seria possível vislumbrar que o contexto desse termo é algum tipo de exploração econômica por meios sexuais, talvez homossexual (mas não necessariamente). Ele o faz por intermédio duma comparação de outras listas cristãs pós-apostólicas nas quais o termo aparece. Sim, tudo que realmente precisávamos, mais listas! Aparentemente ninguém se importou em realmente definir esse termo… (quão diferente da situação judaica, no qual o desenvolvimento das coisas ficaram registradas com muito mais clareza!)
O interessante de sua análise não é tanto provar que o termo signifique X ou Y, pois como ele mesmo admite, ninguém sabe de fato o que significa. Mas ele lança luz sobre como o significado desse termo é muito menos ‘linear’ do que muita gente supõe por aí. Uma identificação direta com ‘homens que fazem sexo com outros’ gera problemas na análise, não sendo inteiramente consistente com toda a evidência disponível para os primeiros séculos da Igreja cristã. (Kea, 2020, também chega na conclusão de que ‘arsenokoitia’ provavelmente se refere a algum tipo de relacionamento sexual pederasta que envolvia exploração ou coerção.)
E um dos motivos que eu acentuaria quanto à complexidade do significado desse termo é que pelo menos uma vez ‘arsenokoitia’ foi usado para falar expressamente de algo praticado por um homem com mulheres! E ainda mais intrigante: com a própria esposa!
Isso aparece em uma autoridade eclesiástica, no Penitencial de João o Jejuador (transcrito em Kea, 2020, p. 22–23), o 33º Patriarca de Constantinopla, durante os anos de 582–595 da nossa era, e venerado como santo pela Igreja Ortodoxa Oriental.
Por fim, outro ponto interessante é que a lista de 1Timóteo traz em sequência ‘pornoi, arsenokoitai, andrapodistai’. Como ‘pornoi’ se refere mais tecnicamente no grego a ‘prostitutos masculinos’ e ‘andrapodistais’ se refere a ‘traficantes de escravos’, seria natural concluir que ‘arsenokoitai’ é ‘aquele que têm relações com esses prostitutos vendidos/aliciados por traficantes de escravos’ (Scroggs, 1983). Mas veja as considerações de Kea (2020, p. 14) para o caso de ‘pornoi’ aqui ter um significado mais genérico, ‘arsenokoitai’ também teria de tê-lo, enquanto provavelmente ainda no sentido de um homem que visa relações sexuais com outro de status social subordinado nos moldes hierárquicos já mencionados antes, seguindo a análise sobre 1Coríntios por Hedlund (2017).
Assim, diferente de ‘malakoi’, que muito provavelmente não tinha conotação sexual direta (muito menos homossexual), ‘arsenokoitai’ tem conotação sexual (talvez com uma dimensão econômica associada à sexual), provavelmente homossexual (mas talvez não exclusivamente homossexual), mas o contexto desse termo (independente de qual seja exatamente seu significado mais preciso) se refere ao modo como o sexo anal entre homens era praticado na antiguidade clássica, num contexto agressivamente hierárquico.
Ou seja, o termo ‘arsekonoitai’, mesmo se referindo a um tipo de vivência homoerótica masculina, não é de grande serventia para analisar nem outras formas de homoerotismo (seja masculino não-penetrativo seja lésbico), nem para analisar a homossexualidade tal como vivenciada em tempos modernos. Não sabemos e nem temos como saber o que Paulo pensaria desses outros casos com base em 1Coríntios/1Timóteo. Agora nos resta conferir o que Paulo fala dessas coisas na epístola aos Romanos, objeto do próximo post.
*Àquele tempo tradição ‘proto-rabínica’, isto é, farisaica, sob a qual Paulo teria estudado conforme ele afirma em Galátas 1:14 ao falar das ‘tradições dos pais’ e o livro de Atos dos Apóstolos explicitamente o identifica como fariseu. Não vou entrar no mérito se de fato Paulo era fariseu, porque o objetor que tenho em mente aceita essa identificação tradicional de Paulo como fariseu anteriormente à sua conversão para a Igreja.
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