[116] A serpente no Éden realmente falava?

A Estrela da Redenção
5 min readMay 20, 2021

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Uma retórica comum neo-ateia desferida contra a Torá em particular e a Bíblia Hebraica em geral é que uma narrativa apresentando uma cobra ou serpente falando seria simplesmente ridícula.

Se o leitor vem acompanhando os últimos posts, já deve ter ficado claro que toda essa narrativa de Gênesis 3, longe de ser ridícula, tem muito a ensinar. O próprio fato de ter uma serpente ali é literariamente genial, uma vez que remete à opressão egípcia logo nas primeiras páginas de uma coletânea cuja principal denúncia gira em torno de opressão sociopolítica na região do Levante há mais de 3.000 anos atrás. Veja o post [113].

Agora o neo-ateu ainda pode insistir nessa linha de que, tudo bem, pode ser interessante literariamente ter uma serpente ali, mas ela fala e nós sabemos que serpentes não falam. A resposta do fundamentalista cristão insistiria que temos de realmente acreditar que uma serpente falou em hebraico com Eva, porque isso sempre foi entendido desse jeito e seria anti-bíblico pensar de outro modo.

O que quero explicar nesse post é que AMBOS estão errados. Como já é de costume pro leitor assíduo desse blog, fundamentalistas cristãos e neo-ateus (aka fundamentalistas ateus) são duas faces de uma mesma moeda e geralmente erram feio na hora de ler as Escrituras Judaicas. Esse caso não é diferente!

O problema reside no fato de que o neo-ateu se acha realmente tão inteligentão ao ponto de crer que nunca ninguém pensou nisso antes. Que ninguém nunca sentiu nenhuma estranheza com um relato onde uma serpente fala, sendo que, bem, eles sabiam que serpentes não falam. Trata-se de grave equívoco histórico como veremos.

Outro problema é que o neo-ateu supõe que, se o relato de Gênesis afirma que a serpente “falou”, isso significa que essa narrativa necessariamente afirma que a serpente falou literalmente num idioma humano (o hebraico). Trata-se de uma análise literária inadequada como veremos também.

Como afirmei no já citado post [113], há MILÊNIOS já se discutia na tradição judaica que a serpente no Gênesis pode ser entendida como uma metáfora para a distorção de nossa capacidade imaginativa, para o que ocorre quando seguimos os impulsos de nossa imaginação e desejo sem limita-los (cuja expressão máxima está naqueles que se arrogam autoridade sem limites sobre os outros, como o Faraó do período do êxodo, cuja autoridade faraônica tinha por símbolo a figura de uma serpente).

Essa posição é expressa por figuras como Sforno (1475–1550), Gersonides (1288–1344) e Rambam/Maimônides (1138–1204). Ou seja, literalmente ao longo desses milênios essa possibilidade já era discutida no seio da própria cultura (a judaica) que gerou os escritos em questão.

Contudo, o ponto é ainda mais forte: MESMO SE a narrativa de Gênesis for entendida como completamente LITERAL, e, assim, como envolvendo literalmente uma serpente, AINDA ASSIM não é necessário pensar que o livro de Gênesis de fato afirma que serpentes falam.

A narrativa pode ser entendida como literal e ainda assim não comprometida com uma serpente ter falado. Como isso é possível?

“Adam, Eve et le Serpen” [Adão, Eva e a Serpente], Marc Chagal (pintor judeu), 1977.

As seguintes possibilidades são discutidas pelos sábios judaicos clássicos que entenderam a narrativa como literal e se debruçaram sobre essa questão da fala da serpente:

  1. a serpente falou em linguagem de sinais e/ou na linguagem dos animais, que à época era entendida pelos humanos e e o texto bíblico ‘transcreve’ o que foi dito por meio de sinais/na linguagem animal para o hebraico [Or HaChayim (1696–1743); opinião não atribuída discutida por Ibn Ezra (~1089-92 — ~1164-67)];
  2. a serpente “falou” através de sua aparência e ações (ex. estar próxima ao fruto proibido etc.), levando Eva a pensar aquilo que aparece no ‘diálogo com a serpente’ [Abravanel (1437–1508)];
  3. um anjo falou aquilo pela boca da serpente, possibilitando o diálogo [Saadia Gaon (~882-92 — 942), discutido por Ibn Ezra (~1089–92 — ~1164-67) e por Kimhi/Radak (1160–1235)];
  4. a serpente de fato falou em hebraico com Eva, sob uma das seguintes opções: 1) como uma exceção sobrenatural [Kimhi/Radak (1160–1235)], 2) serpentes de fato falavam nessa época, naturalmente [Ibn Ezra (~1089–92 — ~1164-67)], 3) essa serpente em específico havia comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal por acidente e por isso ela apenas era capaz de falar [Hizkuni (1250–1310)];

Repare os anos em que todos esses comentaristas viveram. Não se trata de opiniões modernas, mas sim de elaborações discutidas a maioria em meio à própria Idade Média!

E a razão para essas opções todas serem possibilidades legítimas é que, como já expliquei no post [111], é comum na Torá o uso de uma escrita “mnemônica”, colocando DE PROPÓSITO informação incompleta mas facilmente completável de memória por um leitor pertencente ao ambiente cultural e idiomático desses textos. Ou seja: um texto escrito propositalmente de forma incompleta/não-exaustiva pois remete a um contexto oral para o qual serve de “dispositivo de lembrança/memorização”. E é nesse contexto tradicional oral que as discussões sobre o sentido completado tomam corpo.

Assim, quando o texto afirma que “a serpente falou”, isso não necessariamente significa que o texto pretende afirmar que a serpente falou a linguagem humana diretamente. O tipo de texto em questão permite que “completemos” essa informação com a ideia de que a serpente usou uma linguagem de sinais, ou que agiu de uma maneira tal que daria a entender (para um ser humano elaborando isso imaginativamente) a fala em questão, etc. simplesmente porque o texto NÃO pretende ser completo.

Então, neo-ateus e fundamentalistas cristãos erram ao tentar fazer uma interpretação “literalista” que força uma completude ao texto que o próprio texto nunca almejou ter. O texto que temos em mãos é muito mais um ponto de partida para um debate baseado em raciocínio e análise criteriosos do que algo para ser aceito “por fé” por seu valor de face supostamente já completo! A Torá NÃO é um livro de doutrinas para crer, mas sim um material de estudo para RACIOCINAR.

E assim esses problemas que o leitor moderno cético encontra com uma serpente aparecer falando já eram notados por esses sábios de eras passadas. Por exemplo, um dos motivos para considerar que a serpente não poderia ter de fato falado reside na incongruência entre a serpente falar em Gênesis 3 e depois disso nunca mais nenhuma serpente aparecer falando, sendo que nenhuma das punições divinas contra a serpente envolveu perder a capacidade de fala ou de inteligência. Então, nessa visão, simplesmente por essa pista no próprio texto já seria possível concluir que a serpente nunca falou literalmente com Eva nos termos da própria narrativa como escrita!

Dessa forma, vemos que a narrativa de Gênesis 3, mesmo se tomada como um acontecimento factual do passado, não obriga o leitor a pensar que uma serpente literalmente falou em hebraico com Eva. Isso não é uma interpretação moderna, mas sim da PRÓPRIA TRADIÇÃO MILENAR da cultura responsável por esses textos.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.