[171] A Proibição do Estupro na Torá/Lei de Moisés (Bíblia Hebraica)

A Estrela da Redenção
17 min readNov 28, 2021

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A Torá (e a Bíblia Hebraica do qual faz parte) é bem conhecida por ter preceitos e ordens do tipo “não matarás”, “não adulterarás”, etc. Mas algumas pessoas ficam um tanto quanto assustadas ao perceberem que não encontramos um verso escrito “não estuprarás”. Alguns neo-ateus chegam ao ponto de sugerir que, em razão disso, a Torá não proibiria o estupro, uma ideia completamente absurda!

O objetivo desse texto é mostrar como exatamente a Torá (e por extensão a Bíblia Hebraica, vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento) proíbe o estupro, e explicar porque ela não precisa usar explicitamente uma afirmação do tipo “não estuprarás” — basicamente porque seria redundante em relação ao já estabelecido em outros pontos dela.

Antes de começar, precisamos só esclarecer uma coisa muito importante sobre a Torá: como já explicado no post [52], a Torá NÃO é uma legislação caída do céu que o divino decidiu tudo de antemão, mas SIM a fonte de uma jurisprudência que precisa ser desenvolvida pelo RACIOCÍNIO HUMANO. (Veja posts [52]-[107]-[110]-[111])

Dessa forma, para entender a Lei Judaica, não basta pegar trechos da Torá e pensar que a entendeu, mas sim é necessário discutir a fundo usando raciocínio lógico e precedentes concretos, como é feito pelas fontes VERDADEIRAMENTE TRADICIONAIS, isto é, aquelas da tradição judaico-rabínica milenar, com especial destaque para o Talmude (e a lógica talmúdica, estudada atualmente inclusive em departamentos de lógica pela sua sofisticação em termos de de raciocínio).

A lógica em questão não se trata de algum parâmetro especial, sobrenatural, reservado àqueles que tem fé em certos dogmas, mas é simplesmente o raciocínio normal, cotidiano, prático, ‘secular’, que você utilizaria em QUALQUER OUTRA ÁREA da vida.

E os precedentes concretos foram examinados (e continuam a sê-lo) pelo povo que de fato guardou a Torá por milênios a fio: o povo judeu. Daí ser incorreto ler a Torá Escrita sem levar em conta a Torá Oral (isto é, a maneira como a Torá Escrita foi efetivamente entendida, observada e dissecada ao longo da história judaica).

Esclarecido os pontos acima, vamos entender melhor onde está a proibição do estupro na Torá.

Um ‘truque’ para entender isso é fazer um paralelo com nosso Código Penal. O raciocínio que usamos no Direito Penal brasileiro, envolvendo tipos penais, concurso (material/formal) de crimes, modalidades simples e qualificadas etc. também pode ser usado aqui. A diferença é que o Código Penal Brasileiro traz tudo mais ‘mastigado’, enquanto a Torá tem uma forma de escrita mais elíptica e intertextual, exigindo que você capte os paralelismos entre trechos de diferentes partes dela.

Então, em primeiro lugar, teríamos a modalidade simples do crime de estupro (ou seja, sem nenhuma qualificação a respeito da vítima ou do delinquente). Sua proibição na Torá encontra-se no seguinte trecho:

“Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,
Queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.” (Êxodo 21:24,25)

A Torá tipifica o crime de estupro como uma forma de lesão corporal (agressão). Ou seja, o estupro é entendido não como um ato sexual em si, mas como uma agressão física.

Por conta disso, aplica-se ao estupro a mesma penalização aplicada a outras formas de agressão física: o princípio do “olho por olho” que, na Jurisprudência Judaica MILENAR, não é aplicado como literalmente causar o mesmo dano físico no agressor, mas sim em obrigar o agressor a pagar uma indenização.

Portanto, o “olho por olho” estabelece o princípio de indenização: você deve indenizar a alguém exatamente o que você prejudicou a pessoa. Por isso ‘olho POR olho’, uma indenização equivalente pelo olho perdido ou cegado, e assim por diante.

A discussão detalhada disso está no tratado Bava Kamma 83b-88a do Talmude. Quem agride outro deve pagar cinco indenizações, estimadas por um tribunal: pelo dano (físico), pela dor, pelas despesas médicas, pela perda de subsistência (não poder trabalhar por certo tempo), e pela humilhação (aqui entra o que chamaríamos de danos morais).

Para saber mais sobre como essas indenizações eram calculadas e porque os sábios chegaram na conclusão de que o ‘olho por olho’ significa uma indenização, veja o post [4].

Aqui também já fica prevista a proibição e penalização do estupro marital, como discutido em outra parte do Talmude: Eruvin 100b, onde se lê expressamente:

“Rabbi bar Hama disse que Rav Asi disse: É proibido que um homem force sua esposa à mitsvá [preceito, nesse contexto, o preceito de ter relações sexuais com o cônjuge], como estabelecido em: ‘peca aquele que se apressa com seus pés.’ [Provérbios 19:2, entendendo aqui ‘pés’ como eufemismo para a relação sexual]” (Talmude, Eruvin 100b.14)

Então, há milênios o povo judeu já tinha na sua tradição oral talmúdica a proibição do estupro marital, muito antes da modernidade. Tudo derivado de raciocínio aplicado pelos sábios à questão do ‘olho por olho’!

Também vale dizer que essa regra do ‘olho por olho’ consta do Código da Aliança (como nomeado pela crítica bíblica) ou Parashá Mishpatim (como nomeada na divisão tradicional das leituras da Torá), isto é, a primeira seção de leis dentro da Torá inteira, que se segue aos Dez Mandamentos (no final da parashá anterior).

A pesquisa histórico-crítica da Bíblia nomeia essa seção de leis como Código da Aliança, por entenderem-na como o estrato legal mais antigo da Torá, datado de mais de 3.000 anos. Já a tradição judaica nomeia essa seção de leis como Parashá Mishpatim, por conta de iniciar com a frase “estes são os estatutos [mishpat]”, sendo que mishpat é um termo que pode ser traduzido como ‘justiça corretiva’. A Torá inteira tem como um de seus princípios reguladores a busca pela mishpat, a justiça corretiva no caso concreto. E é dentro dessa seção que temos o ‘olho por olho’ onde o estupro já restava proibido, e de onde se deriva via raciocínio lógico que o estupro marital também é proibido.

Agora, também existem modalidades qualificadas do estupro dentro da Torá, cuja penalização é mais severa.

Textualmente, é fornecido apenas o exemplo de uma modalidade qualificada, sendo as demais derivadas via conjugar o ‘olho por olho’ com regras sobre ‘relações sexuais ilícitas’ (o que chamaríamos na nossa legislação penal de ‘concurso de crimes’).

O exemplo textual é o do estupro contra uma mulher casada, mesmo que antes da esposa já ter tido relações sexuais com seu marido. Existem alguns detalhes a respeito dos costumes envolvidos que explicam como essa hipótese ocorre (onde já se é legalmente casado, mas ainda não houve a cerimônia completa depois da qual se costumava realizar o ato sexual), mas não entrarei nos detalhes aqui. O texto:

“E se o homem achar a uma moça desposada no campo, e o homem se forçar e se deitar com ela, então morrerá somente o homem que se deitou com ela. Mas à moça não fará nada; a moça não tem pecado de morte porque, como no caso do homem que se levanta contra o seu companheiro e o mata, assim também é este caso; pois no campo a achou: a moça desposada gritou e não houve quem a salvasse.” (Deuteronômio 22: 25–27)

Aqui ao estuprador é cominada também a pena de morte, uma vez que teve relações sexuais com uma mulher casada. A relação consensual de um homem (e uma mulher casada também era passível da pena de morte, dessa maneira, o estupro de um homem contra uma mulher casada incorre na pena de morte para o estuprador que, com seu ato, cometeu uma dupla proibição: a da agressão e a da relação sexual com uma mulher casada.

Contudo, diferente do caso do adultério em si e de outras transgressões sexuais (a que já me referiremos), onde geralmente a pena de morte prevista não seria aplicada pelo Tribunal (pela questão dos requisitos rigorosos para sua aplicação na Lei Judaica, como já explicado nos posts [5]-[75]; veja também o post [165]), aqui se permite a aplicação da pena de morte ‘defensiva’ por transeuntes ou pela própria vítima, no sentido de que é permitido matar aquele que está em vias de estuprar essa mulher casada ou a persegue para estuprá-la etc. É a chamada lei do ‘Rodef’.

Note: no caso da relação adúltera consensual, não é permitido matar nenhum das pessoas para evitar que cometam o adultério. Mas no caso do estupro de um homem contra uma mulher casada, é permitido matar o homem para evitar que ele cometa esse estupro. Por isso o texto equipara ao caso do assassinato: “como no caso do homem que se levanta contra o seu companheiro e o mata, assim também é este caso”.

Também podemos fazer uma analogia com a legítima defesa na nossa legislação criminal. A ideia é que não somente quando o objetivo do criminoso é matar que é permitido se defender matando o transgressor, mas também quando o objetivo do criminoso for estuprar, se a vítima for uma ‘pessoa proibida’ ao criminoso (isto é, entra no rol de relações sexuais proibidas da Torá).

Então, enquanto em outros casos de legítima defesa (incluindo a do estupro contra uma ‘pessoa não-proibida), a eventual morte do criminoso seria avaliada caso-a-caso, nesses casos específicos a legitimidade de tê-lo matado para impedir o resultado criminoso já seria presumida, por assim dizer, aplicando defensivamente ‘a pena de morte’ cabível.

Como já deve ter ficado claro pela exposição acima, essa mesma aplicação da pena de morte ao estupro, incluindo a legitimidade de matar o transgressor para evitar que ele cometa o estupro, ocorre para todos os casos de concurso entre o estupro e as ‘relações sexuais proibidas’ de Levítico 18/20: adultério de um homem com uma mulher casada (já exemplificado em Deuteronômio 22 acima); vários casos de incesto heterossexual; sexo anal entre homens; um homem ter relação sexual com uma mulher menstruada; um homem casar com uma mulher e sua mãe. (Também há o caso de relação sexual proibida com animais, por parte de qualquer pessoa, mas este caso não nos interessa para a discussão sobre estupro)

A algumas das relações sexuais proibidas é prevista a pena de morte pelo Tribunal (caso fossem passados os requisitos difíceis para tanto, dentre eles o de que 2 testemunhas avisassem os envolvidos de que o ato seria passível de pena de morte, e os envolvidos ainda assim persistissem no ato), enquanto para outras é prevista apenas o ‘karet’, o castigo de morte pelas mãos dos Céus (enquanto tradicionalmente também se use o flagelamento como punição corporal aqui a depender do caso). Mas a Jurisprudência Judaica tradicional entendeu que para todos esses casos se aplica a regra de que, caso alguém tente estuprar uma pessoa ‘proibida’ para ela, tal pessoa pode ser morta antes que consiga cometer o estupro, de modo a evitar que o estupro ocorra (Sanhedrin 73a).

Além desses casos, temos ainda outra modalidade qualificada via o concurso de crimes: quando o estupro é feito mediante sequestro e/ou cárcere privado.

Ao sequestro é cominada a pena de morte:

“E quem raptar um homem, e o vender, ou for achado na sua mão, certamente será morto.” (Êxodo 21:16)

“Quando se achar alguém que tiver furtado um dentre os seus irmãos, dos filhos de Israel, e escravizá-lo, ou vendê-lo, esse ladrão morrerá, e tirarás o mal do meio de ti.” (Deuteronômio 24:7)

Então àquele que sequestra para estuprar alguém também se aplica a pena de morte na Torá, mesmo que não seja um caso no qual a vítima seja uma ‘pessoa proibida’ nos termos das relações sexuais proibidas de Levítico 18/20.

Por fim, alguém que estupra e mata outrem também é sujeito à pena de morte.

Então, vamos esquematizar como ficam os casos concretos:

a) Um homem estuprar uma mulher não casada, uma mulher estuprar um homem (seja casado ou não), uma mulher estuprar outra mulher (seja parente ou não) — a pena era a indenização da forma como já explicado acima.

b) Um homem estuprar uma mulher casada, um homem estuprar outro homem (seja parente ou não), um homem ou uma mulher estuprarem o respectivo parente proibido do sexo oposto sob a lei do incesto (no caso que aplica a pena de morte), uma pessoa estuprar outra e matá-la— a pena era de morte, possivelmente cumulada com indenização por danos (veja abaixo).

c) Um homem ou uma mulher estuprarem o respectivo parente proibido do sexo oposto sob a lei do incesto (no caso que aplica o ‘karet’ divino), um homem estuprar uma mulher menstruada — a pena era de indenização e/ou flagelamento (no máximo 39 chicotadas).

d) Uma pessoa estuprar outra em contexto de sequestro e/ou cárcere privado— a pena era de morte, possivelmente cumulada à de indenização (veja abaixo).

A lei do Rodef (matar preventivamente o transgressor) se aplica a todos os casos de ‘b’ e ‘c’.

Também cabe esclarecer que, nos casos onde a pena é de morte, me parece possível argumentar que a aplicação da pena de morte não prejudica a imposição da indenização conjuntamente (a depender da lesão corporal sofrida pela vítima), ou no mínimo que, caso a pena de morte não possa ser aplicada por algum motivo, impõe-se a indenização. Já no caso onde o flagelamento se aplicaria, me parece possível argumentar que a indenização não necessariamente isentaria do flagelamento (como geralmente ocorre), a depender da lesão corporal sofrida pela vítima, pois nesse caso a indenização cumulada ao flagelamento não constituiria uma dupla punição pelo mesmo fato. Além disso, no caso de não aplicação da pena de morte por razões processuais, seria possível a aplicação do flagelamento disciplinar (makkat mardut, uma criação pós-bíblica, dentro da tradição oral talmúdica).

Contudo, nossa discussão ainda não acabou. Existe um trecho particularmente mal entendido da Torá que prevê a imposição de uma penalidade adicional para um caso sujeito à indenização, mas não à morte: quando a vítima de estupro por um homem é uma mulher virgem não casada.

Aqui o trecho:

“Quando um homem achar a uma moça virgem que não foi desposada, e a pegar e se deitar com ela, e forem encontrados, então o homem que se deitou com ela dará ao pai da moça 50 siclos de prata, e ela lhe será por mulher, porquanto a afligiu, e não poderá separar-se dela por todos os seus dias.” (Deuteronômio 22: 28–29)

Já precisamos alertar de antemão: a vítima NÃO É OBRIGADA a casar com seu agressor. Eu sei que pode parecer que seja isso, mas lembre que você está lendo uma tradução de algo que foi escrito em um contexto de raciocínio e escrita muito diferente do atual. Já irei explicar o motivo de porque esse trecho NÃO implica que a vítima tivesse de casar com o estuprador.

Cabe dizer que existe algum grau de discussão sobre se esse trecho originalmente se refere a um caso de ‘sedução de mulher virgem’ ao invés do ‘estupro de mulher virgem’ como tal. Em todo caso, o trecho serviu para amparar a discussão sobre estupro de mulheres virgens não casadas dentro da discussão rabínica talmúdica.

Repetindo: a vítima NÃO É OBRIGADA a casar com seu agressor. A Jurisprudência Judaica MILENAR entendeu que a vítima apenas casa com seu agressor caso ela queira e seu pai também aceite. Caso o pai ou a vítima não aceitem casar com o agressor, a vítima não casará com o mesmo (veja Rambam, em Mishnê Torah, Hilkhot Na’arah Betulah 1:3).

A questão aqui é novamente baseada em raciocínio: a penalização é destinada ao agressor, não à vítima. Então a vítima não pode ser forçada contra sua vontade. Nesse caso, a Lei Judaica entende que estamos diante de uma possível dupla vitimização: a da moça e a do pai da moça.

É por isso que o trecho prevê uma multa de 50 ciclos de prata endereçada ao pai da moça. Isso aqui não exclui de nenhuma maneira a indenização devida à própria mulher, mas se trata de uma multa fixa por ter tirado ilicitamente a virgindade da moça. A multa contribui para compensar o pai pela perda do dote que a família receberia em arranjos conjugais da filha virgem (uma vez que a virgindade era ‘monetizada’ nesses contratos conjugais), caso a filha seja menor de idade (<12 anos nesse caso). Se a moça for maior (12 anos ou mais), a multa vai para ela mesma, não para o pai (Ketubah 39a-b). Por fim, caso seja uma situação onde se aplica pena de morte ou flagelamento, a multa não é cobrada, evitando uma dupla punição — note que a multa não é indenizatória, por não ser apurada de forma individualizada, por isso é tratada como uma punição afim à da pena de morte ou do flagelamento.

Aqui há um ponto importante para se destacar, o sexo antes do casamento NÃO é sujeito a uma proibição pela Torá. Repetindo: sexo antes do casamento não é biblicamente proibido, nem para homens nem para mulheres. Mas sua prática reflete em possíveis consequências patrimoniais, mais especificamente no valor do dote conjugal no caso da mulher já ter perdido sua virgindade, dentro dos arranjos contratuais feitos em cima disso.

Então, nesse caso, o estupro de uma mulher não casada que ainda fosse virgem é visto como pior que o estupro de uma mulher não casada que não fosse mais virgem, porque no primeiro caso haveria uma perda patrimonial maior para a mulher e sua família (representada pela figura paterna), bem como uma possível perda afetiva significativa para a mulher, que talvez não mais conseguisse casar com alguém por conta disso, por razões completamente alheias à sua livre escolha (pois fora forçada a perder a virgindade, não a tendo perdido voluntariamente).

Daí essa penalização ao agressor: caso a mulher queira, o estuprador seria obrigado a casar com ela e não teria a permissão de se divorciar dela. Lembre-se ainda que o estupro marital era proibido, então referida mulher não seria obrigada a transar com seu marido caso se casasse com ele, bem como um homem poderia ter mais de uma esposa ou concubina, de tal modo que não dependeria exclusivamente dessa esposa para ter relações sexuais. A ideia aqui, então, parece estar ligada à segurança patrimonial fornecida à mulher por estar casada, como parte de sua indenização.

Agora, seria realmente recomendável à vítima usar desse direito de obrigar o agressor ao casamento? Isso já é uma questão totalmente independente, que a Lei Judaica deixou nas mãos da própria mulher e de seu pai. Então, é plenamente possível aqui pensar que a mulher se casar com seu agressor não é nada recomendável!

Agora, ainda temos um caso mais perturbador para tratar: o do estupro em situações de guerra, contra estrangeiras aprisionadas.

Nós sabemos que esse tipo de coisa é, infelizmente, comum onde ocorrem guerras, e a Bíblia Hebraica conhece esse fato, lamentando que esse tipo de coisa aconteça. Por exemplo, no livro de Lamentações, chorando pela destruição de Jerusalém:

“Forçaram as mulheres em Sião, as virgens nas cidades de Judá.” (Lamentações 5:11)

Então, dado essa visão negativa sobre o estupro em guerras, alguma medida teria de ser tomada por parte da Torá. O livro de Deuteronômio aborda esse assunto sutilmente, de forma englobada à questão mais geral de que a Torá tenta desincentivar de maneira geral a relação sexual puramente casual de um homem judeu/israelita com prisioneiras de guerra estrangeiras.

“Quando saíres à peleja contra os teus inimigos, e o Senhor teu Deus os entregar nas tuas mãos, e tu deles levares prisioneiros,
E tu entre os presos vires uma mulher formosa à vista, e a cobiçares, e a tomares por mulher,
Então a trarás para a tua casa; e ela rapará a cabeça e cortará as suas unhas.
E despirá o vestido do seu cativeiro, e se assentará na tua casa, e chorará a seu pai e a sua mãe um mês inteiro; e depois chegarás a ela, e tu serás seu marido e ela tua mulher.
E será que, se te não contentares dela, a deixarás ir à sua vontade; mas de modo algum a venderás por dinheiro, nem a tratarás como escrava, pois a tens humilhado.” (Deuteronômio 21:10–14)

A ideia aqui é que, caso um homem israelita quisesse ter realmente relações sexuais com uma prisioneira de guerra, esta NÃO poderia ser submetida à escravidão, mas sim teria de ocorrer pela via do casamento (inclusive pelas reservas patrimoniais contratuais que o casamento judaico tradicional fornece à esposa em caso de divórcio). Além disso, havia um tempo de espera (1 mês) para evitar justamente que, ‘no calor do momento’, algo impensável ou inadequado fosse feito.

A tradição judaica oral não viu com olhos bons essa permissão jurídica, mas é ela a maneira de regular se e quando um israelita poderia ter relações sexuais com uma prisioneira de guerra, o que acaba impactando também na questão mais específica de evitar o estupro contra as prisioneiras estrangeiras.

Para finalizar esse texto, cabe lembrar que a Lei Judaica tradicional lida com a questão do estupro de forma principalmente preventiva. No interesse de evitar o estupro, existia uma regra tradicional, conhecida como Leis do Yichud, que impedem um homem de estar sozinho com uma mulher casada em um local fechado. Segundo a tradição, o Rei Davi estendeu essa regra para as mulheres não casadas, após o infortúnio sofrido por sua própria filha, Tamar, por parte de seu meio-irmão, Amnon (também filho de Davi).

“E aconteceu depois disto que, tendo Absalão, filho de Davi, uma irmã formosa, cujo nome era Tamar, Amnom, filho de Davi, amou-a.
E angustiou-se Amnom, até adoecer, por Tamar, sua irmã, porque era virgem; e parecia aos olhos de Amnom dificultoso fazer-lhe coisa alguma.
Tinha, porém, Amnom um amigo, cujo nome era Jonadabe, filho de Siméia, irmão de Davi; e era Jonadabe homem mui sagaz.
O qual lhe disse: Por que tu de dia em dia tanto emagreces, sendo filho do rei? Não mo farás saber a mim? Então lhe disse Amnom: Amo a Tamar, irmã de Absalão, meu irmão.
E Jonadabe lhe disse: Deita-te na tua cama, e finge-te doente; e, quando teu pai te vier visitar, dize-lhe: Peço-te que minha irmã Tamar venha, e me dê de comer pão, e prepare a comida diante dos meus olhos, para que eu a veja e coma da sua mão.
Deitou-se, pois, Amnom, e fingiu-se doente; e, vindo o rei visitá-lo, disse Amnom, ao rei: Peço-te que minha irmã Tamar venha, e prepare dois bolos diante dos meus olhos, para que eu coma de sua mão.
Mandou então Davi à casa, a Tamar, dizendo: Vai à casa de Amnom, teu irmão, e faze-lhe alguma comida.
E foi Tamar à casa de Amnom, seu irmão (ele porém estava deitado), e tomou massa, e a amassou, e fez bolos diante dos seus olhos, e cozeu os bolos.
E tomou a frigideira, e os tirou diante dele; porém ele recusou comer. E disse Amnom: Fazei retirar a todos da minha presença. E todos se retiraram dele.
Então disse Amnom a Tamar: Traze a comida ao quarto, e comerei da tua mão. E tomou Tamar os bolos que fizera, e levou-os a Amnom, seu irmão, no quarto.
E chegando-lhos, para que comesse, pegou dela, e disse-lhe: Vem, deita-te comigo, minha irmã.
Porém ela lhe disse: Não, meu irmão, não me forces, porque não se faz assim em Israel; não faças tal loucura.
Porque, aonde iria eu com a minha vergonha? E tu serias como um dos loucos de Israel. Agora, pois, peço-te que fales ao rei, porque não me negará a ti.
Porém ele não quis dar ouvidos à sua voz; antes, sendo mais forte do que ela, a forçou, e se deitou com ela.
Depois Amnom sentiu grande aversão por ela, pois maior era o ódio que sentiu por ela do que o amor com que a amara. E disse-lhe Amnom: Levanta-te, e vai-te.
Então ela lhe disse: Não há razão de me despedires assim; maior seria este mal do que o outro que já me tens feito. Porém não lhe quis dar ouvidos.
E chamou a seu moço que o servia, e disse: Ponha fora a esta, e fecha a porta após ela.
E trazia ela uma roupa de muitas cores (porque assim se vestiam as filhas virgens dos reis); e seu servo a pôs para fora, e fechou a porta após ela.
Então Tamar tomou cinza sobre a sua cabeça, e a roupa de muitas cores que trazia rasgou; e pôs as mãos sobre a cabeça, e foi andando e clamando.” (2 Samuel 13:1–19)

“Desolation of Tamar” [A Desolação de Tamar], James Tissot, ~1896-1902.

O desfecho desse episódio é bem impactante, no qual Absalão mata Amnon para vingar Tamar.

Assim, a prática tradicional do Yichud era entendida, à luz desse episódio, como uma forma de prevenir a ocorrência do estupro.

Dessa forma, resta claro que a Torá e a Bíblia Hebraica veementemente proíbem o estupro, em todas as suas formas (incluindo a marital), estabelecendo uma série de regras e medidas que foram grandemente debatidas e articuladas no contexto de sua aplicação prática pelos tribunais rabínicos ao longo de milênios de história judaica.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.