[73] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 20-Proibição do Levítico: Bíblia ou Tradição?

A Estrela da Redenção
6 min readNov 29, 2020

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No post anterior, comentei que o segundo motivo listado para a proibição do Levítico, o caráter hierárquico que circundava a prática do sexo anal entre homens na Antiguidade, se tornou de fato relevante a partir do período helenista em especial durante a dominação romana da Judéia.

Contudo, alguns leitores podem ter ficado intrigados: ao tempo do período romano, o livro do Levítico já tinha sido escrito! Então, como eu poderia dizer que uma razão para o trecho do Levítico proibindo o sexo anal entre homens ser algo que apenas aconteceria depois de sua escrita? O correto não seria dizer que foi a Tradição (Judaica), ao invés da Bíblia (Hebraica), que estabeleceu a proibição geral ao sexo anal entre homens?

Bem, essa crítica tem certa razão de ser. De fato não quero propor uma teoria de causação retroativa para o texto bíblico, onde fatos futuros iriam influenciar a escrita no passado do livro de Levítico.

Mas eu penso que a questão é mais sutil do que Bíblia Hebraica versus Tradição Judaica, em especial quando estamos falando da cultura responsável por ambas, isto é, a judaica.

Antes de prosseguir, tenha em mente que: 1) por ‘período bíblico (hebraico)’, entendo das origens do Antigo Israel (sua etnogênese) até o período da dominação persa da terra de Israel; 2) por ‘período pós-bíblico mas pré-diáspora’ entendo os períodos da dominação grega-helenista, dinastia judaica independente hasmonéia e dominação romana da terra de Israel, indo até o ano 135 da nossa era, no qual a diáspora judaica começou formalmente (com a expulsão dos judeus pelos romanos da Palestina).

Como afirmei no post [65], com base em hipóteses bem aceitas sobre a data da redação dos livros da Bíblia Hebraica, o livro de Levítico teve sua redação finalizada mais para o fim do período bíblico, durante o domínio persa. O trecho pertinente de Levítico 18:22 foi provavelmente escrito apenas nesse período, o que significa que a maioria dos textos bíblicos não conhecia essa proibição estabelecida em termos gerais simplesmente porque até então o livro de Levítico não havia sido terminado.

E ao tempo da própria escrita de Levítico 18:22, a principal preocupação que ensejou a redação deste trecho seria a questão da prostituição ritual e/ou da associação dessa prática sexual com os povos idólatras circundantes. MAS o trecho foi escrito em termos gerais, sem estabelecer exceções. Então, assim como está escrito ali que várias formas de incesto não podem ser praticadas, sem estabelecer exceções, também o sexo anal entre homens é proibido de forma geral, sem estabelecer exceções.

Agora, mesmo que o texto não estabeleça exceções e esteja escrito de modo geral, de modo que pela gramática simples ele proibiria o sexo anal entre homens em quaisquer circunstâncias, isso não significa que o texto DIZ que não há exceções. O texto é lacônico quanto a isso (e sim, isso também vale igualmente para os casos de incesto).

Repetindo: uma coisa é o texto dizer ‘é proibido haver sexo anal entre homens’ que significa uma proibição sem estabelecer exceções. Talvez possam haver exceções ou não, mas o texto não estabelece nenhuma e por isso o lemos como prima facie sem exceções. Outra coisa seria se o texto dissesse ‘é proibido haver sexo anal entre homens, e não há nenhuma exceção a essa regra’, que significa uma proibição necessariamente sem exceções.

O estabelecimento de exceções ou sua ausência é algo que cabe menos ao texto e mais à tradição interpretativa que sempre circuncidou esses textos e desenvolve normas a partir dos textos. Ou você acha mesmo que as leis da Torá como escrita realmente são suficientes para guiar decisões práticas? É muito claro que, pelo caráter lacônico de sua escrita, MUITA coisa está de fora do texto escrito. Por isso temos de ir para os debates da Tradição Oral, que nada mais é que uma jurisprudência tradicional.

E note: ao contrário do que vejo muitos pensarem, não é que primeiro temos a Bíblia (ou a Torá escrita) fechadinha, e só depois temos a Tradição Oral (ou a Torá oral). Na verdade o texto bíblico faz PARTE da Tradição Oral, ele é produto de tradições orais.

Mas depois que o texto bíblico foi formado, a Tradição Oral vai reagir a isso pela possibilidade de fazer uma leitura normativa mais geral daqueles textos e assim chegar à sua forma ‘pós-bíblica’, propriamente ‘rabínica’ (que começa em 200 AEC com os Zugot, no fim do período de dominação helenista).

Então, a relação entre Bíblia Hebraica e Tradição Judaica é menos a de ‘Bíblia primeiro, Tradição segunda’, mas sim de um feedback mútuo entre tradições orais e textos escritos que vai ao final resultar num texto escrito canônico estável (a Bíblia Hebraica) com um conjunto de tradição oral canônica que a interpreta e complementa (a Tradição Rabínica, que vai depois ser escrita no Talmude e no Midrash).

“The Pictorial Content” [Conteúdo Pictorial], Rene Magritte, 1947.

Contudo, não podemos esquecer que ambas (texto bíblico e tradição oral) tem uma história prévia na qual o texto escrito é uma parte menor de uma tradição oral maior que permaneceu não escrita.

Para dar um exemplo, a Torá proíbe o furto, numa linguagem sem exceções (“não furtarás”). Mas nos debates da Tradição Oral existe a ideia de que há exceções sim. Por exemplo, o risco de vida abriria essa exceção. (O que já tinha um relance em textos de sabedoria como Provérbios 6:30)

Então, voltando à questão de Levítico 18:22, até quase o fim do período helenista, não havia a possibilidade de fazer uma leitura geral do cânon bíblico hebraico.

Mas a partir do fim desse período, com o fechamento da maior parte do cânon e por conseguinte com o início do método propriamente rabínico na Tradição Oral (com os Zugot), se tornou possível desenvolver, para Levítico 18:22, um significado normativo geral em relação ao cânon bíblico como um todo e em relação às várias tradições orais, isto é, uma norma não só ‘sacerdotal’ (pois escrita pela Escola Sacerdotal), mas sim ‘bíblica’ (ou ‘mosaica’).

E tal significado foi afetado pela história subsequente do povo judeu, em especial pela controvérsia da helenização (vide Antioco Epifânio) e pela dominação romana posterior que a aprofundou.

Nesse contexto de relação forçada com a cultura helenista (primeiro via os gregos, selêucidas etc. e depois sob os romanos), Levítico 18:22 vai sair de seu contexto mais ritual vinculado à Escola Sacerdotal original que redigiu o livro de Levítico, e vai ganhar um escopo muito mais social, com a temática da hierarquia social-sexual entre pessoas do sexo masculino na cultura helenista de que falei no post anterior.

E tal motivo já tinha ressonância com o texto bíblico original, mas não com o livro de Levítico em si, e sim com as narrativas de Gênesis e Juízes nas quais a ameaça do estupro de um homem por outro (via penetração anal) era usada como um instrumento de dominação e poder.

Então, lendo Levítico 18:22 à luz desses textos paralelos (que já refletiam o tema da hierarquização) e à luz de uma tradição oral agora em contato com o mundo helenista (que tinha ainda mais em evidência a questão da hierarquização), o sentido gramatical sem exceções de Levítico 18:22 vai ser entendido, na aplicação prática, como um sentido normativo sem exceções.

Isso foi entendido assim mesmo que, na verdade, os rabinos do período pós-bíblico pré-destruição do Templo NÃO tiveram acesso a todos os casos possíveis relevantes para determinar se de fato o melhor era aplicar Levítico 18:22 sem nenhuma exceção ou se haveriam exceções sim.

E a nós hoje cabe continuar esse debate dado que conhecemos casos que eles não conheceram (como sempre foi feito na tradição judaica por milênios depois deles, admitindo-se mudanças de entendimento).

Mas devemos ter em mente nesse debate como o sentido do texto foi formado:

  1. tanto por sua escrita original registrando-o num livro específico (com o primeiro motivo preponderando, contra a idolatria)
  2. como por seu desenvolvimento normativo inicial no contexto canônico geral, em meio a um conjunto de livros ‘autorizados’ (com o segundo motivo preponderando, contra a hierarquização).

No próximo post enfim veremos o ‘terceiro motivo’, que na verdade é apenas acessório a esses dois e assim não diretamente responsável nem pela escrita original nem pela recepção interpretativa inicial, mas que é relevante para entendermos de uma vez por todas o contexto dessa proibição na cultura judaica: o pró-natalismo da Lei Judaica.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.