[108] Redescobrindo Deus - mesmo numa visão naturalista de mundo

A Estrela da Redenção
16 min readMay 3, 2021

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Não penso que a questão central sobre Deus seja sobre acreditar ou não nele. E sim como o vemos, concebemos, imaginamos. Em vista disso, aqui não darei um argumento a favor da existência de Deus, mas partirei de argumentos a favor e contra a existência de Deus — e de um argumento sobre a linguagem religiosa — para ao final TRANSCENDER a questão da existência ou inexistência de Deus, e, assim, REDESCOBRIR DEUS mesmo sob uma ótica plenamente naturalista e científica sobre o universo.

O que quero dizer com ótica plenamente naturalista e científica sobre o universo? Eu aceito a evidência empírica das ciências — suplementada por uma inferência à melhor explicação (argumento teórico/filosófico) — no sentido de que:

  1. o universo talvez seja eterno, ou tenha surgido espontaneamente sem causa (simplesmente pela probabilidade quântica de sua ocorrência), ou tenha sido criado por alienígenas inteligentes de outro universo, ou criará a sua própria origem no futuro (natural ou artificialmente), ou tenha surgido a partir de outro universo naturalmente (talvez por seleção natural cosmológica para vida inteligente), ou possua alguma causa física natural, ou precise existir (se é para algo existir, tem de ser material; ou há uma necessidade nomológica para sua existência);
  2. a vida se desenvolveu por intermédio de um processo evolutivo e a aparência de design nos organismos vivos é produto de seleção natural cega;
  3. igualmente o comportamento e a mente dos humanos (e de outros animais, incluindo outros animais sociais) se desenvolveram por intermédio de um processo evolutivo e a estrutura complexa do comportamento e da mente (incluindo a religiosidade) é produto de seleção natural cega (mais evolução cultural);
  4. o universo e tudo o que nele há é físico e apenas físico (ou fisicamente realizado), incluindo a vida orgânica e a mente humana;
  5. todas as causas dentro do universo são físicas (ou fisicamente realizadas), então milagres no sentido de causas sobrenaturais não acontecem dentro do universo.

Muitas pessoas acham que adotar essas teses é incompatível com a ideia de Divindade. Se Deus não é uma explicação causal para o universo ou algum fenômeno nele, então Deus não existe.

Eu concordo (seguindo o teólogo luterano Bonhoeffer em suas Cartas na Prisão, onde ele articula a noção de um “cristianismo não religiosoaltamente inspirado namundanidade’ da Bíblia Hebraica) que isso certamente é um motivo para rejeitar o “Deus das lacunas”, a divindade como a explicação que colocamos para as lacunas do nosso conhecimento. Não sabemos explicar algo dentro do mundo, então Deus é chamado. Mas não haveria uma concepção de divindade que escape disso?

O problema é que acreditar ou não nesse “Deus das lacunas”, nesse “Deus como explicação causal”, é tratar a linguagem religiosa como primordialmente uma linguagem objetiva, representacional, cognitiva.

Mas quando olhamos para os textos religiosos em geral e para a Bíblia Hebraica em particular, vemos que sua linguagem é antes de tudo poética, literária, alusiva, mesmo quando fala de acontecimentos reais e objetivos no mundo.

Então, seguindo a literatura da teologia existencial e do existencialismo religioso (cristão e judaico) no campo da filosofia continental, e a literatura sobre ficcionalismo religioso e expressivismo linguístico no campo da filosofia analítica, chegamos na conclusão de que a linguagem religiosa antes expressa atitudes existenciais (sobre o mundo, sobre a vida, etc.), uma certa concepção do ser humano sobre si e seu mundo.

As concepções religiosas, das mais diversas religiões, podem ser traduzidas para a linguagem contemporânea em termos de atitudes existenciais que elas elaboram e cultivam, e com isso enriquecem a experiência humana de uma maneira que uma linguagem puramente secularizada não consegue fazer.

Imaginar certos cenários, seja meramente possíveis mesmo que não reais ou mesmo impossíveis como tal (no jargão, “asserções contrapossíveis”), é crucial para isso.

Até aqui, é possível ainda estar plenamente dentro do ateísmo filosófico, mas endossando o existencialismo religioso ou o ficcionalismo religioso ou posições similares a essas.

O indivíduo ainda é ateu, porque é ateu quanto ao ‘Deus das lacunas’, quanto a uma explicação sobrenatural quando não conhecemos (ainda) a natural, mas ele tem agora acesso ao símbolo ‘Deus’ reinterpretado existencialmente.

Aqui já fica claro que, no fundo, a questão não é sobre acreditar ou não em Deus, como se estivéssemos tratando de um objeto que queremos saber se existe objetivamente ou não. Mas a real dúvida agora é se existe alguma realidade transcendente que corresponda a esse símbolo e ao mesmo tempo não seja o velho ‘Deus das lacunas’.

Nesse caso, temos de dar uma olhada na filosofia analítica da religião, e os famigerados argumentos a favor ou contra a existência de Deus.

Sem me delongar muito no motivo, adotando uma visão plenamente naturalista de mundo nos faz concordar com os ateus filosóficos no que diz respeito aos argumentos teleológico, cosmológico kalam, e ontológico (se isolado) a favor da existência de Deus, assim rejeitando tais argumentos. Então, sobra basicamente o argumento cosmológico da contingência a favor da existência de Deus para examinar.

Já no lado dos argumentos contra a existência de Deus, sem sombra de dúvidas, o argumento mais forte é o argumento evidencial do mal contra a existência de Deus. Vamos então primeiro examinar esse argumento ateológico.

Na sua formulação clássica o argumento do mal se baseia na ideia de que não é possível manter as três seguintes afirmações:

  1. Deus existe e é totalmente bom;
  2. Deus é capaz de fazer tudo o que Ele quiser (e sabe de tudo, inclusive como alcançar aquilo que quiser);
  3. Existem certos males no mundo que são terríveis ou sem nenhuma justificação ou sentido.

A ideia é que se 1) e 2) são verdade, uma visão conhecida como teísmo clássico que informa a principal religião do Ocidente (o cristianismo), então 3) não poderia ser verdade, dado que Deus, por ser bom e capaz de evitar qualquer mal, EVITARIA aqueles males de acontecerem. Assim, segue o argumento, como temos forte evidência de que 3) é verdade, temos forte evidência de que a conjunção de ‘1)+2)’ é falsa. Logo, Deus (provavelmente) não existe, conclui o argumento.

Notem que esse raciocínio também funciona se o ser em questão não fosse totalmente bom, mas tivesse grau suficiente de empatia. Porque muito provavelmente o leitor, se tivesse poder suficiente para tal a custo zero para si mesmo, evitaria que vários eventos terríveis acontecessem contra outros seres humanos. A própria mística dos super-heróis nos quadrinhos ocidentais parte dessa premissa: ‘com grandes poderes vem grandes responsabilidades’.

A resposta teísta comum é formular uma teodicéia: uma justificação para a existência do mal no mundo — de todos os males que há no mundo por mais terríveis que sejam — que seja consistente com a existência de um Ser totalmente bom que seja onipotente e onisciente, isto, é, Deus.

Eu não acho que essa resposta funcione. Entretanto, ela não é a única resposta ao problema do mal. Uma outra forma de responder a esse desafio é mudar a concepção sobre Deus, abdicando de sua onipotência (e/ou onisciência).

Muitos acham implausível chamar de Deus um ser que não fosse capaz de fazer tudo, mas, no fundo, não é exatamente essa a concepção da Bíblia Hebraica sobre Deus?

Quando lemos a Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento) da forma mais natural possível, sem tentar impor a ela o teísmo clássico, encontramos uma visão de Deus definida por meio de bondade e justiça, mas que não pode fazer tudo nem sabe tudo o que irá acontecer.

É muito claro que, na vasta maioria daquelas páginas, Deus só pode atuar no mundo de formas muito específicas. Ele não pode fazer mágica. Às vezes os autores bíblicos encontram sua ação em certos acontecimentos naturais que ocorrem por coincidência ou improvavelmente na hora certa. Mas na maioria dos casos, Deus DEPENDE de seres humanos receptivos a Ele para que Ele possa atuar no mundo. Toda a ideia original hebraica de aliança (não confundir com as teologias da aliança cristãs) reside exatamente nesse ponto.

De fato, na tradição daquele povo e cultura que sempre existiu em paralelo ao mundo cristão, a dos judeus, a questão de que o Deus bíblico não pode fazer tudo sempre esteve mais clara.

No Talmude e no Midrash, existem discussões como a de que houve um defeito na obra da criação pelo qual um dos sacrifícios do Templo expiava (vulgo ‘perdoava’) o próprio Deus! Ou que Deus é posto em grilhões quando o povo judeu é exilado. Deus sofre o mal junto aos seres humanos! E por isso tudo Deus precisa de redenção também… Veja o existencialista judaico R. Heschel em seu “Torah Min HaShamayim” para mais instâncias disso na tradição judaica clássica (há praticamente 2 milênios atrás!).

Na Cabalá/Kabbalah (o sentido secreto da Torá), para que o mundo possa existir, Deus se contrai (zimzum). Essa contração significa que Deus se limita em relação ao mundo. Nossos atos de bondade e justiça e de cumprimento de preceitos bíblicos são necessários para trazê-lo de volta em sua plenitude para dentro do mundo. O ser humano contribui para a redenção do próprio Deus ao atuar em favor da redenção de seu próximo! Isso não é uma ideia recente, mas sim desenvolvida na tradição medieval da Kaballah.

Exemplo de shiviti, um tipo de arte judaica para meditação não-figurativa sobre o divino, inspirada pela Kaballah. Shiviti húngaro do início do século XX.

Então, uma das motivações culturalmente mais determinantes para se aceitar o teísmo clássico no Ocidente — que a Bíblia (Hebraica) professaria essa visão — é fruto de um mal entendido milenar. Na verdade, a Bíblia Hebraica dá razões para rejeitar o teísmo clássico. Não só nesse mas em outros aspectos, como a imutabilidade ou ‘perfeição’ divinas que também são estranhas às Escrituras Hebraicas.

De fato, os profetas israelitas, dos quais já falei diversas vezes aqui no blog, encaram o problema do mal não como um problema abstrato de cima para baixo, mas como um problema concreto de baixo para cima.

Leia as páginas da Bíblia Hebraica com isso em mente. Ela é tão acusada de retratar massacres e coisas vis… Sendo que isso está retratado exatamente porque os autores bíblicos conheciam o mal no mundo muito mais de perto do que muitos de nós.

Os profetas em particular viveram de perto a possibilidade de EXTINÇÃO TOTAL de seu povo na mão de impérios enormes e muito mais poderosos. Leia (ou escute) o livro bíblico Lamentações, e você compreenderá que a questão não era nenhuma especulação filosófica sobre o mal no mundo, mas a injustiça e a opressão bem visíveis. Os antigos hebreus sabiam bem como era se sentir abandonado por Deus, abandonados pela vida.

E que tipo de concepção sobre a existência eles criaram? Uma na qual a construção de uma vida comunitária boa e justa, neste mundo, mesmo que só possível no longuíssimo prazo e para as futuras gerações, é a prioridade absoluta. Conhecer Deus é cuidar do órfão e ser olhos para o cego. O problema do mal como problema concreto é contra-atacado por se (tentar) trazer a justiça divina para dentro do mundo. Eis a Aliança.

Assim, vemos que o problema do mal, mesmo aceita sua conclusão contra o teísmo clássico, não é um obstáculo para aceitar uma Divindade totalmente boa mas limitada em poder, que não seja capaz de fazer tudo, e que por isso não evita todos os males do mundo. O problema do mal perde muito de seu apelo quando aceitamos essa visão ‘não clássica’ (que, na verdade, é a mais antiga).

Mas temos algum motivo positivo para aceitar uma Divindade? Bem, eu disse que ainda nos restava uma carta na manga, mesmo que sejamos naturalistas: o argumento cosmológico da contingência.

Esse argumento é compatível com todas as hipóteses físicas sobre a origem do universo (sua eternidade, seu surgimento sem causa, seu surgimento via causas físicas, etc.). Ele não afirma que Deus causou a origem do universo (como o faz o argumento cosmológico kalam).

A ideia do argumento cosmológico da contingência é que Deus é o fundamento lógico-modal para a existência do inteiro conjunto de entidades contingentes no inteiro espaço-tempo. (Mais rigorosamente, todos os fatos contingentes, mas falarei de entidades de forma neutra para facilitar o entendimento)

Suponha que o universo seja eterno. Isso significa que, dado um X, podemos dizer que X foi causado por Y que foi causado por Z, e assim infinitamente…. da mesma forma, esse X causará A que causará B que causará C e assim infinitamente. Cada elemento desse conjunto, todo ele composto por entidades concretas cuja existência é contingente (poderiam ou não ter existido) tem uma explicação dentro desse conjunto. Por exemplo, X é explicado por Y (que o causa) e explica A (por causá-lo).

Contudo, se nos perguntarmos qual a explicação para haver esse conjunto de TODAS as coisas contingentes, “ ]… Z, Y, X, A, B, C …[ ” , e não algum outro conjunto ou mesmo nada, não a podemos encontrar em alguma outra coisa contingente, uma vez que todas elas estão DENTRO do conjunto.

Por conta disso, ou esse conjunto não tem uma explicação, ou sua explicação é dada por um Ser cuja existência concreta seja necessária, não contingente, que nós costumamos chamar de ‘Deus’.

Então, segundo o argumento cosmológico da contingência, a rixa entre a tese ateia “Deus não existe” e a tese teísta “Deus existe” seria uma rixa sobre “não há uma explicação para tudo no mundo, certos fatos são brutos e sem explicação” (ateísmo, ou negação do Princípio da Razão Suficiente) versus “há uma explicação para tudo no mundo, então no final das contas há um Ser necessário que explica o conjunto da realidade contingente” (teísmos, ou aceitação do Princípio da Razão Suficiente).

Sendo que todos concordam que um Ser necessário teria sua existência explicada pela necessidade de sua existência, ou seja, por simples lógica, sem precisar de outro ser como precisam os seres contingentes.

Esse argumento é muito forte em favor da razoabilidade de alguma versão do teísmo e desenvolvimentos recentes do mesmo tem feito a balança pender decisivamente para a sua aceitabilidade racional.

Recomendo ler “The Cosmological Argument” (1975) por William Rowe, ele mesmo um ateu, mas que se via como um ‘ateu amigável’, por considerar que alguns argumentos — como o cosmológico da contingência — tornam o teísmo uma posição razoável e racional, mesmo que não o provem.

Também recomendo “The Principle of Sufficient Reason: A Reassessment” (2006) por Alexander Pruss, e “Necessary Existence” (2018) por Alexander Pruss e Joshua Rasmussen, para esclarecimentos adicionais sobre o Princípio da Razão Suficiente e sobre a ideia de uma Existência (Concreta) Necessária.

O caráter persuasivo desse tipo de argumento cosmológico também é atestada pelo filósofo agnóstico Richard Gale, que escreveu o excelente “On the Nature and Existence of God” (1991). Gale desenvolveu uma versão própria desse argumento cosmológico, junto com Alexander Pruss, no artigo “The New Cosmological Argument” (1999), que ele considerava estar essencialmente correto, mesmo que fosse pessoalmente agnóstico. (Coincidência ou não, o Ser necessário cuja existência esta versão tenta mostrar NÃO segue o teísmo clássico)

Muitas objeções já foram levantadas ao Princípio da Razão Suficiente, algumas muito convincentes. Mas já foi mostrado que mesmo um princípio mais relaxado e mais fraco de razão suficiente, por exemplo, um pelo qual ‘todo fato inteiramente contingente normalmente têm uma razão para sua existência’ (que não exige que todos os fatos contingentes tenham uma explicação, mas apenas que geralmente o tenham), já é suficiente para tornar persuasivo esse argumento cosmológico. Veja Koons (1997), Pruss (2003), Alexander (2008) e Rasmussen (2010).

Eu entendo que a relação entre essa entidade necessária e a totalidade das entidades contingentes, por meio da qual a necessária explica o conjunto das contingentes, é melhor entendida como não-causal.

Muito da literatura de fato ainda a entende como causal, mas eu aqui estou na esteira de Pearce (2017), Bohn (2018), Hamri (2017), Deng (2019) e de mim mesmo, Brito Jr. (no prelo), em entender a relação entre Deus e o universo como uma relação metafísica não causal, provavelmente de constituição ou de grounding, que gera uma dependência ontológica constitutiva do universo em relação a Deus.

Essas relações metafísicas não-causais não são misteriosas, mas ubíquas em nosso cotidiano e em todas as ciências. Um exemplo é o da mesa em relação à madeira da qual é feita. A mesa é composta de madeira, é constituída por um arranjo de madeira, o fato de sua existência é fundado no fato da existência da madeira etc. Mas seria errôneo dizer que a madeira causa a mesa. A mesa é feita de, não causada pela, madeira.

Contudo, mesmo aceita a razoabilidade do argumento cosmológico da contingência e do caráter não causal da explicação assim fornecida, ainda fica a dúvida sobre como entender essa misteriosa ‘entidade concreta necessária’.

Considerando que, pelo argumento do mal, não podemos aceitar o teísmo clássico (como argumentei acima), então essa visão da Divindade não será a clássica. Eu poderia ser tentado a já jogar aqui minha versão favorecida da Divindade limitada que evadia o problema do mal, contudo, ela ainda necessita de uma concepção mais básica que explique a relação entre 1) Deus e o mundo; 2) por que Deus não pode fazer tudo no mundo.

Eu penso que a melhor maneira de ver o Deus pressuposto pelo argumento cosmológico da contingência reside no panenteísmo. O panenteísmo é uma visão muito próxima do panteísmo. No panteísmo, Deus é idêntico ao universo. No panenteísmo, o universo é constituído por Deus, é uma parte de Deus, mas Deus não se esgota no universo, ainda transcendendo-o parcialmente.

Um exemplo de visão que é geralmente alcunhada de panteísta, mas que pode ser entendida de forma panenteísta, é a concepção de Deus advogada pelo filósofo moderno Baruch Spinoza (que coincidência ou não era judeu de nascença):

“VI. Por Deus entendo o ser absolutamente infinito, isto é, uma substância composta de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita. […]

PROPOSIÇÃO XIV Afora Deus não pode haver nem ser concebida nenhuma substância. […]

PROPOSIÇÃO XV Tudo que é, é em Deus e sem Deus nada pode ser nem ser concebido.” (Ética à Maneira dos Geômetras, 1677)

Uma coisa que pouca gente sabe é que não apenas o dissidente judaico Spinoza defendia uma visão assim, como essa visão era lugar comum dentro do judaísmo, entre os estudiosos da Kaballah. A concepção da Kaballah judaica sobre Deus é panenteísta. O mundo é uma emanação da Divindade.

A visão panenteísta possui várias vantagens:

  1. É assumida por quase todas as religiões (altamente reconhecida entre as religiões orientais como hinduísmo, jainismo, taoísmo, sikhismo, etc. e por várias religiões nativas) e suas variantes místicas (Sufismo islâmico, Kaballah judaica, místicos cristãos etc.), sendo assim favorecida em um argumento da experiência religiosa (um argumento acessório afirmativo de Deus);
  2. Justifica a concepção de Divindade mais limitada que eu comentei com base nas Escrituras Hebraicas. Se o mundo é parte de Deus, a natureza da matéria física da qual Deus é feito (por gera-la) o limita. Se o mundo é parte de Deus, Deus não é um ser que pode agir independentemente em meio aos outros seres, mas é a totalidade dos seres e depende de cada ser contingente para agir. E assim por diante.
  3. A relação entre a Divindade e o mundo é de saída não causal. Deus é feito do mundo e o mundo feito de Deus (enquanto Deus transcende o mundo, mas não vice-versa). Justamente o tipo de relação ontológica que eu afirmei ser mais compatível com a requerida pelo argumento cosmológico da contingência.
  4. É mais simples em termos teóricos que o teísmo clássico. Neste, se afirmamos Deus, ainda precisamos postular alguma relação causal ou não causal entre Deus e o mundo. Já no panenteísmo, dada a definição de Deus, já dada está sua relação (não causal) com o mundo. Afirmar Deus é afirmar essa relação.
  5. É tão simples em termos teóricos quanto o ateísmo. Um dos melhores argumentos explanatórios em favor do ateísmo é o da simplicidade. (“The Best Argument Against God”, Graham Oppy, 2013) Mas o panenteísmo não acrescenta novas entidades no mundo. Ele pode trabalhar essencialmente com as mesmas entidades que um ateu aceita.
  6. A referência do termo ‘Deus’ se torna o próprio mundo, mesmo que seu sentido não se esgote inteiramente nele. Então, aceito o símbolo ‘Deus’ em termos existencialistas (que um ateu pode aceitar), agora veríamos que tal símbolo corresponde uma realidade objetiva, o próprio mundo (entendido de tal e tal forma), cuja existência já afirmávamos desde sempre!
  7. Se o panenteísmo é tão simples quanto o ateísmo, e não cai sob o argumento do mal, e se tivermos outras razões para aceita-lo (argumento cosmológico da contingência, existencialismo religioso, expressivismo da linguagem religiosa etc.) o panenteísmo parece uma opção melhor.
  8. Converge com outra visão muito promissora em filosofia da religião, o “Ultimismo” de J. L. Schellenberg: ainda haverá para frente potencialmente milhões de anos de experiência humana sobre a face da Terra, então a experiência religiosa humana está ainda em sua infância. Como prever de que forma evoluirá nosso modo de se relacionar com a ideia de que há uma realidade última? Que graus de sofisticação intelectual alçarão, deixando o ateísmo em desfavor? Schellenberg postula essa Realidade Última sem chama-la de Deus (assim contrapondo seu Ultimismo ao Teísmo como uma versão específica que pode ser falsa). Mas para um panenteísta, o termo ‘Realidade Última’ pode até ser melhor para expressar essa concepção de… ‘Deus’.
  9. Por que Deus é totalmente bom? Porque sendo Deus e o mundo duas faces da mesma moeda, a face do mundo é a limitada e contingente, enquanto a face de Deus é a ilimitada e necessária. O mal só existe se limitação de algum tipo. Um mal ilimitado é uma ideia self-defeating. Então, a realidade enquanto Deus é ilimitada e, do nosso ponto de vista, boa. Já a realidade enquanto mundo é limitada e, do nosso ponto de vista, contém tanto o bom quanto o mau, bem e mal.
  10. Contra o panteísmo, o panenteísmo preserva a possibilidade de entender a relação do humano para com o divino em termos de uma interação pessoal, de entender o divino enquanto transcendente e não só imanente, de permitir uma distinção ontológica entre Deus e o mundo sem recair nem na identidade nem na separação, e de considerar que a presença divina se faz mais ou menos presente e mais ou menos atuante em certas regiões do espaço-tempo (por exemplo, em atos ou acontecimentos de justiça Deus é manifestado ou realizado).

E uma vantagem extra é que essa concepção nos permite retroceder e avaliar se de fato era adequado nos perguntarmos se Deus existe ou não, como o argumento cosmológico da contingência pressupõe que o façamos. Talvez a existência ou inexistência de Deus seja uma ‘não-questão’.

Paul Tillich, um teólogo existencial(ista) cristão, defendia que Deus não existe, porque afirmar a existência de Deus já seria negá-lo. E dele também não se pode defender que não exista. (Uma perspectiva inclusive bem judaica)

A razão? Porque quando afirmamos sua existência (ou a negamos), estamos tratando Deus como uma entidade entre outras entidades, que pode ser contada em adição às demais (mundo + Deus). Mas, para Tillich, Deus é o Fundamento do Ser, o Sentido Último do Ser, ou o Poder-Ser (Poder-de-Ser). O símbolo ‘Deus’ exprime aquilo que é da preocupação última do ser humano.

Em outros termos, faz sentido afirmar ou negar a existência de entidades. Mas não faz sentido afirmar ou negar a existência da existência, a realidade da existência, o ser real do existir.

Note que aqui estamos saindo do uso mais fino de ‘existência’ encontrado na filosofia analítica, que informa os debates de filosofia analítica da religião — não surpreendentemente —, para um uso mais espesso de ‘existência’ que é típico da linguagem figurada do existencialismo em particular e da filosofia continental em geral.

Assim conseguimos falar coisas como ‘o existir da existência’ que não seriam possíveis na semântica de condições de verdade que rege a linguagem filosófica analítica. Esse movimento é legítimo porque, se a linguagem religiosa é expressivista, a linguagem filosófica expressivista da filosofia continental pode estar mais apta a trabalhar esses aspectos figurados.

E curiosamente tal ideia também possui uma prefiguração nas Escrituras Hebraicas. O Nome Próprio de Deus é Yud(Y)-He(H)-Vav(V)-He(H), isto é, YHVH ou YHWH (יהוה‎). O texto original hebraico não possui vogais, e não foram acrescentadas vogais ao Sagrado Tetragrama no texto massorético. Assim, não sabemos como exatamente isso seria pronunciado.

O que significa YHWH? Em conformidade com a gramática hebraica, YHWH pode ser entendido como… “o que serei” ou “existindo”. O Nome de Deus é um VERBO! Deus é um acontecimento, um processo, que está ocorrendo. Ele não é uma coisa estática, mas um evento dinâmico. Deus não existe (enquanto objeto). Ele acontece. E cabe a nós fazer Deus acontecer:

“Julgou a causa do aflito e necessitado; então lhe sucedeu bem; porventura não é isto conhecer-me? diz o Senhor.” (Jeremias 22:16)

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A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.