[118] O Faraó e a Serpente do Éden na Kaballah

A Estrela da Redenção
5 min readMay 20, 2021

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No post [113], mostrei que a serpente no Éden remete à opressão egípcia logo nas primeiras páginas de uma coletânea cuja principal denúncia gira em torno de opressão sociopolítica na região do Levante há mais de 3.000 anos atrás.

O fato de uma serpente ser colocada nessa narrativa é uma referência à distorção de nossa capacidade imaginativa, para o que ocorre quando seguimos os impulsos de nossa imaginação e desejo sem limita-los. A expressão máxima desse impulso está naqueles que se arrogam autoridade sem limites sobre os outros, como o Faraó do período do êxodo, cuja autoridade faraônica tinha por símbolo a figura de uma serpente.

Um ponto interessante é que existe uma elaboração acerca dessa relação entre a serpente e o Faraó do êxodo dentro da Kaballah, a tradição mística judaica que tenta decodificar o sentido secreto (“sod”) da Bíblia Hebraica e da Tradição Oral Talmúdica.

Como eu afirmei no outro post, essa questão da serpente no Éden é (também) uma maneira cifrada de se referir ao Faraó, e a Kaballah também conseguiu decifrar isso.

Deve-se destacar que, ao contrário do que alguns acham por aí, a Kaballah judaica NÃO é uma doutrina filosófica/teológica abstrata, mas sim uma elaboração expansiva dos textos da Torá ao estilo do Midrash judaico. A Kaballah é firmemente construída a partir dos significados textuais e da intertextualidade da própria Torá, sendo incompreensível sem esse texto. O próprio Zohar, a mais famosa das obras cabalísticas, é um comentário a todas as parashiot da Torá. Assim, aqui observamos mais uma vez como o judaísmo é primordialmente uma metodologia de estudo da Torá escrita e oral (conforme explicado no post [107]) mesmo quando chega nas alturas mais abstratas e misteriosas da Kaballah!

Em seu Sefer HaLikutim (em trecho traduzido e adaptado pelo R. Moshe-Yaakov Wisnefsky), o Arizal (Rabino Isaque Luria) afirma que o Faraó do êxodo foi a imagem da cobra, a Grande Serpente. Conforme aparece na própria Bíblia Hebraica, no livro de Ezequiel, nesse caso falando do Faraó dos tempos do exílio babilônico:

“Fala, e dize: Assim diz o Senhor DEUS: Eis-me contra ti, ó Faraó, rei do Egito, grande serpente, que pousas no meio dos teus rios, e que dizes: O meu rio é meu, e eu o fiz para mim.” (Ezequiel 29:3)

Os Faraós orgulhavam-se de seu domínio sobre o Rio Nilo, cuja cheia anual garantia irrigação segura para os campos egípcios (ao contrário dos israelitas na terra prometida, que dependem de chuvas que podem ou não vir). Isso permitia ao Faraó ver-se como detentor de uma autoridade divina. Midá kenegued midá (medida por medida), o Faraó do êxodo, opressor dos israelitas, foi afogado no Mar Vermelho, em hebraico, Yam Suf (literalmente, Mar dos Juncos), enquanto perseguia os fugitivos israelitas.

Faraó e seus cavaleiros se afogando no Mar Vermelho, Hagaddah de Pessach por Arthur Szyk, 1940. Essa Hagaddah para o seder de Pessach foi ricamente ilustrada por Szyk fazendo referências diretas e indiretas à ascensão do perigo nazista, fazendo o paralelo entre a libertação dos judeus do Egito e essa à época mais recente ameaça ao povo judeu, no que se provou um prognóstico infelizmente muito real. Para outro exemplo de Hagaddah ambientada nesse contexto histórico, veja a de Nis­sim ben Shi­mon escrita em judeu-arábico, conhecida como “Haggadah de Hitler” (1943), celebrando a libertação da África do Norte e dos judeus norte-africanos em relação à máquina de guerra nazista.

Arizal afirma que Yam Suf pode ser lido como Yam Sof, significando “Mar do Fim”. Isso seria uma alusão à Serpente do Éden, no sentido de uma serpente que morde a própria cauda.

O Faraó do êxodo seria tanto a cabeça como a cauda dessa Serpente: representando o mau impulso, é a cauda enquanto uma consciência imperfeita e inferior (de uma emanação divina mais baixa), e a cabeça, enquanto essa “cauda” arrogando-se e usurpando o papel da verdadeira cabeça, que é a consciência divina em sentido próprio (de uma emanação divina mais elevada).

Isso seria similar a como a Serpente, por enganar Adão, virou “cabeça” fazendo Adão ser “cauda”. Esse seria o significado secreto da maldição que Deus lançou sobre a serpente:

“E porei inimizade entre ti [serpente] e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Gênesis 3:15)

Isto é, ao ser humano ( = Adam/“Adão”, em hebraico) ficaria a incumbência de assumir novamente o controle, não deixando que seu mau impulso o domine, como ocorreu no episódio da Serpente e Adão. Afinal, o mau impulso sempre estará ali, na retaguarda, pronto a fisgar o ser humano.

O Faraó do êxodo é a antítese desse objetivo de controle do mau impulso: vemos na narrativa do livro de Êxodo um governante humano, do alto de seu poder, inteiramente entregue ao mau impulso, deixando que a “cauda” domine a “cabeça” (isto é, que a serpente domine Adam), por arrogar a si mesmo uma autoridade que não lhe é devida e, assim, oprimindo o povo de Deus mesmo quando o próprio Criador do Universo solicita que os israelitas oprimidos sejam libertados!

Ou seja, o Faraó do êxodo representa o colocar de uma consciência imatura como se esta fosse a consciência máxima. Dar autoridade como que divina ao mau impulso individual. E isso é muito mais grave nas mãos de alguém com poder. Afinal, quando se trata da autoridade máxima de um país que tinha o poder supremo nas mãos e muitas riquezas, por se tratar o Egito de um grande Império, pode ser dada livre vazão a esse mau impulso, com todas as consequências sociopolíticas nefastas que vemos na narrativa do Êxodo.

A própria insistência do Faraó em manter os israelitas escravos mesmo com tantas pragas, apenas para afirmar seu poder, nem sequer é irrealista nesse sentido de quando o mau impulso sobe à cabeça; basta olharmos para o presidente do nosso país no meio dessa pandemia da Covid-19, que vemos uma instância desse fenômeno!

Então, vemos que nesse escrito de Kaballah, o Arizal corrobora como a Serpente do Éden remete ao Faraó do Êxodo dentro desse subtexto codificado da Torá, de uma maneira similar a como eu abordei no post [113].

Para finalizar, existe um Midrash bem curioso sobre esse episódio no qual o Faraó do êxodo e seus cavaleiros são afogados no Mar Vermelho. Tal ato foi uma enorme libertação do povo judeu, inspirando o Cântico de Moisés e Miriã descrito em Êxodo 15:1–21. Afirma essa tradição oral posta por escrito no Talmude que os anjos ministradores diante de Deus estavam prestes a ressoar num cântico celestial quando o próprio Deus os interrompeu. Aí Deus falou aos anjos:

“O trabalho das minhas mãos está se afogando no mar, e vocês [ousam] recitar cânticos [alegremente] diante de Mim?” (Megillah 10b; Sanhedrin 39b)

Então, apesar de ter deixado o mau impulso subir à cabeça e tomar o controle, apesar de ser ele mesmo a [representação da] Grande Serpente que está finalmente sendo pisada na cabeça, o Faraó do êxodo ainda assim é importante para Deus e Deus não se alegra com sua destruição! Mesmo nesses episódios de castigo vemos que o amor divino é ilimitado, infinito, incondicional…

“Dize-lhes: Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva.” (Ezequiel 33:11)

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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