[100] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 47- Jesus o Rabino de Nazaré

A Estrela da Redenção
11 min readMar 24, 2021

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À essa altura nesta série, tendo analisado à exaustão como a Bíblia Hebraica e a tradição judaica oral trataram a questão da homossexualidade, e estando em andamento uma comparação com o paradigma encontrado no Novo Testamento cristão, muitas pessoas podem estar com a seguinte dúvida: e Jesus? Como ele se encaixa em tudo isso?

O fato é que, em todos os Quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) encontrados no Novo Testamento cristão, Jesus nunca fala nada sobre o homoerotismo. Logo, literalmente não encontramos nenhum dito de Jesus condenando qualquer tipo de relação homoerótica, ou estabelecendo regras nesse âmbito.

E como é razoável (histórica e teologicamente) afirmar que os Quatro Evangelhos seriam o centro da Bíblia cristã (“Velho” Testamento + Novo Testamento), ocupando os ditos de Jesus um lugar de destaque na moldura desses livros, é sim muito significativo para os cristãos que entre esses ditos não exista nenhuma injunção contra a prática homossexual.

Agora para entender esse silêncio de forma adequada, temos de explicar quem foi Jesus. Talvez o leitor ache desnecessário isso, pois afinal, quem seria mais famoso que Jesus (ao menos no mundo ocidental)? Mas para entender o ponto que estou suscitando aqui, é preciso recuperar uma faceta muito negligenciada de sua vida.

Jesus era judeu. Isso é bem conhecido, mas pouco refletido a fundo. Que (tipo de) judeu? Bem, Jesus era um rabino.

“La crucifixion blanche” (A Crucificação Branca), Marc Chagall, 1938. Nesta pintura vemos um artista judeu representando o Jesus crucificado em vestes tradicionais para reza no judaísmo rabínico, o Talit.

Isso já nos leva a pensar em qual a relação de Jesus para com o judaísmo rabínico, a tradição oral discutida e transmitida pelos rabinos clássicos (parte dos quais contemporâneos ou anteriores a Jesus) que foi posta por escrito na Mishná e na Guemará (formando o Talmude) e nos Midrashim.

No meio cristão fundamentalista, é comum imaginar que Jesus se opunha ao judaísmo de sua época, que seria uma ‘deturpação’ do verdadeiro ensino da Bíblia Hebraica justamente por conta dessas tradições, aquelas dos fariseus. Daí concluem que Jesus seria um opositor ao judaísmo rabínico, como incorporado no Talmude.

Mas e se eu te dissesse que talvez Jesus ao invés de ser inimigo dos fariseus, FOSSE um fariseu? Parece difícil acreditar? Mas o fato é que, se Jesus não fosse fariseu, ele no mínimo estava bem próximo deles em prática e raciocínio, ao ponto que ele passa boa parte do tempo conversando com eles. Sim, essa conversa toma a forma de ‘discussões’ e ‘discordâncias’, mas se você olhar o Talmude verá que isso é o NORMAL para os sábios da época. Não implica em hostilidade.

Jesus se opunha sim a um tipo de judaísmo da época. Não por coincidência, o mesmo judaísmo a que os fariseus se opunham: o dos saduceus, uma elite da Judéia ligada à classe sacerdotal e ao Império Romano. A classe sacerdotal ligada ao Templo em Jerusalém estava profundamente comprometida com Roma, ao ponto que os Sumo-Sacerdotes eram apontados por Roma. E essa elite saducéia entendia que mesmo assim a correta interpretação da Torá era uma prerrogativa sacerdotal, da linhagem das famílias dos cohanim. Por isso rejeitavam a tradição oral debatida pelos fariseus, em prol de uma leitura que se pretendia ‘literal’ da Torá.

Ou seja, a questão da tradição oral farisaica não foi uma maneira de ‘oprimir’ os judeus como muitos cristãos foram levados a pensar, mas a rejeição dessa tradição pelos saduceus de fato tinha por objetivo legitimar o domínio de uma casta sacerdotal em grande medida comprometida ao Império opressor (‘em grande medida’ porque alguns sacerdotes eram fariseus).

Os fariseus eram um partido ‘do povo’, mais próximo do povo, e que defendia que nenhuma casta de judeus (mesmo as sagradas linhagens dos cohanim) poderia monopolizar a interpretação da Torá. Ao contrário, mesmo que o sacerdócio fosse uma prerrogativa legítima de certas famílias (como a própria Torá estabelecera), o estudo da Torá fora dado a todo judeu. Mesmo a família mais humilde de judeus poderia ter acesso à Torá (e muitos dos sábios rabínicos eram, como Jesus, de origem humilde). A Torá não era apenas um texto fixo para os sacerdotes decidirem o que está ou não lá, mas sim uma discussão viva (oral!) entre professores e aprendizes.

Por fim, também outro partido se opunha aos saduceus (enquanto curiosamente representem uma forma de zadoquismo mais purista na questão sacerdotal): os essênios. E é inegável que Jesus também estivesse próximo de questões essênias, especialmente por sua imersão na apocalíptica judaica.

Os essênios consideravam que o sacerdócio tinha se tornado tão corrompido que o culto feito no Templo tinha se tornado inteiramente ilegítimo. Nisso contrastavam aos fariseus que ainda validavam o culto no Templo mesmo que a governança sacerdotal estivesse comprometida pela elite saducéia e Roma.

A resposta essênia a isso era abandonar completamente esse circuito do Templo e formar comunidades próprias (como a de Qmram, com cohanim zadoquitas dissidentes), praticando ascetismo e esperando uma guerra iminente seja literal ou simbólica que iria pôr fim à opressão e restituir o sacerdócio legítimo. Daí o peso da apocalíptica judaica, que era mais intenso entre eles do que nos demais grupos (mas os fariseus também foram influenciados pela apocalíptica).

Jesus foi influenciado por questões caras aos fariseus e aos essênios. Mas sem entrar no mérito das proporções exatas dessas influências, o fato de que Jesus legitimava a tradição oral é algo que é possível observar nos Evangelhos, em grau maior ou menor dependendo do evangelho em questão. Então nesse sentido vemos:

a) Os rabinos (‘fariseus’) devem ser seguidos, porque são sucessores legítimos de Moisés na cadeia de transmissão de ensinamentos:

“Então falou Jesus à multidão, e aos seus discípulos, dizendo: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem” (Mateus 23:1–3)

b) Jesus fala coisas que implicam que muitos fariseus são de fato homens justos, e não pecadores necessitando de arrependimento, sendo sua crítica mais voltada à falta de receptividade para com aqueles que se desviaram:

“E Chegavam-se a ele todos os publicanos e pecadores para o ouvir.
E os fariseus e os escribas murmuravam, dizendo: Este recebe pecadores, e come com eles.
E ele lhes propôs esta parábola, dizendo:
Que homem dentre vós, tendo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove, e vai após a perdida até que venha a achá-la?
E achando-a, a põe sobre os seus ombros, jubiloso;
E, chegando a casa, convoca os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha perdida.
Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” (Lucas 15:1–7)

[Essa sequência culmina na parábola do Filho Pródigo, que muito fortemente implica que o filho pródigo são tais publicanos e pecadores, enquanto o filho obediente que se chateia com o pai receber bem o filho pródigo seriam os escribas e fariseus, o que pressupõe que estes são de fato obedientes à Torá]

c) Jesus constantemente jantava com os fariseus, conversava com eles, e eles o respeitavam e o reconheciam como um rabino como eles (isso nunca ocorre entre Jesus e os saduceus!):

“E rogou-lhe um dos fariseus que comesse com ele; e, entrando em casa do fariseu, assentou-se à mesa.” (Lucas 7:36)

“E respondendo, Jesus disse-lhe: Simão [um fariseu], uma coisa tenho a dizer-te. E ele [o fariseu] disse: Dize-a, Mestre.” (Lucas 7:40)

“E havia entre os fariseus um homem, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus. Este foi ter de noite com Jesus, e disse-lhe: Rabi, bem sabemos que és Mestre, vindo de Deus” (João 3:1,2)

“José de Arimatéia, membro de destaque do Sinédrio, que também esperava o Reino de Deus, dirigiu-se corajosamente a Pilatos e pediu o corpo de Jesus.” (Marcos 15:43)

“E eis que havia certo homem, chamado José, natural de Arimatéia, uma cidade da Judéia, e membro do Sinédrio, que era bom e justo.” (Lucas 23:50)

“E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não há outro além dele; e que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios.
E Jesus, vendo que [o escriba] havia respondido sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de Deus” (Marcos 12:32–34)

“Naquele mesmo dia chegaram uns fariseus, dizendo-lhe: Sai, e retira-te daqui, porque Herodes quer matar-te.” (Lucas 13:31)

d) Jesus cumpria Chanuká, uma festa judaica cuja instituição é via tradição, não pela Bíblia:

“E em Jerusalém havia a festa da dedicação [isto é, Chanuká], e era inverno. E Jesus andava passeando no templo, no alpendre de Salomão.” (João 10:22,23)

e) Jesus discutia questões de Lei Judaica num estilo similar ao que vemos no Talmude, inclusive entrando em tópicos clássicos de discussão como o divórcio e a observância do Shabat. Vemos que Jesus é apresentado como entendendo mais da Lei Judaica do que alguns fariseus com quem se encontrava, pressupondo uma similaridade de métodos e raciocínio (veja uma análise elucidativa em Basser, 2003, p. 77–100):

“E os fariseus, vendo isto, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer num sábado.
Ele, porém, lhes disse: Não tendes lido o que fez Davi, quando teve fome, ele e os que com ele estavam?
Como entrou na casa de Deus, e comeu os pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem aos que com ele estavam, mas só aos sacerdotes?
Ou não tendes lido na lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado, e ficam sem culpa?
Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o templo.
Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes.” (Mateus 12:2–7)

“E aconteceu que, passados três dias, o acharam [o menino Jesus com 12 anos] no templo, assentado no meio dos doutores, ouvindo-os, e interrogando-os. E todos os que o ouviam admiravam a sua inteligência e respostas.” (Lucas 2:46,47)

f) A questão do maior mandamento da Lei ser o amor ao próximo faz parte da tradição talmúdica, sendo que um dos sábios mais importantes da tradição judaica e anterior ao próprio Jesus, de nome Hilel, já havia dito isso:

“Não faça aos outros o que não quer que façam a você. Aí está toda a Torá. O resto é interpretação. Vai e estude.” (Shabbat 31a)

g) Jesus era um fiel observante da Lei Judaica/Jurisprudência Judaica, entendendo que sua validade para o povo judeu seria permanente, e nada perderia vigor até que tudo se cumprisse (isto é, a era messiânica com a paz mundial etc. se tornasse realidade):

Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til jamais passará da lei, sem que tudo seja cumprido.
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Mateus 5:17–20)

h) Jesus pressupõe a validade da Halacha (Jurisprudência Judaica) para questões civis entre os judeus e questões religiosas envolvendo o Templo e o sacerdócio:

“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do geennan [guehinom]. Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta.” (Mateus 5:21–24)

“E, tendo ele [Jesus] dito isto, logo a lepra desapareceu, e ficou limpo. E, advertindo-o severamente, logo o despediu. E disse-lhe: Olha, não digas nada a ninguém; porém vai, mostra-te ao sacerdote, e oferece pela tua purificação o que Moisés determinou, para lhes servir de testemunho.” (Marcos 1:42–44)

Se quiser saber um pouco mais de como ver Jesus à luz do judaísmo explicado de forma bem acessível veja esse vídeo de Theo Hotz, ou esse vídeo do Rabino Dudu, ou esse artigo do rabino Henry Sobel. Essa tabela comparando ditos de Jesus com ditos de sábios na Mishná também pode ser interessante. No resumo do resumo, Jesus era um rabino focado num movimento de Teshuvá (arrependimento/retorno) como preparação para a eclosão iminente do Reino de Deus.

Como tudo isso ajuda a entender o silêncio dos ditos de Jesus em relação à questão homoerótica? Bem, basicamente isso nos permite usar as considerações que eu falei sobre o judaísmo, tanto na questão da Bíblia Hebraica como de que modo a tradição oral tentou criar cercas para a Torá, para o caso de Jesus.

Os sábios do Talmude quase não falam sobre esse assunto, o que significa que a esmagadora maioria dos rabinos tal como o rabino Jesus de Nazaré não tem algum dito sobre isso (post [88]). A Bíblia Hebraica em si no livro de Levítico proíbe exclusivamente o sexo anal entre homens (post [56]), principalmente motivada pela questão da prostituição ritual (post [64]), mas no contato com a cultura helenista essa proibição veio a ser entendida de forma genérica para o sexo anal entre homens em geral (post [73]) considerando que naquela época o sexo anal entre homens era vivenciado num contexto hierárquico e de humilhação ao passivo (post [72]).

Nem a Bíblia Hebraica nem a tradição oral falam da homossexualidade (incluso o sexo anal entre homens) tal como vivenciada hoje, então não há nelas uma condenação automática para isso (ou alguma outra resposta automática para isso), cabendo ao nosso raciocínio desenvolver essa parte (post [61]).

A ideia dum inferno eterno não existe nem na Bíblia Hebraica nem na tradição oral, as quais se focam muito mais nessa vida aqui do que no além, e por tudo isso a questão de se os homossexuais vão para o inferno não faz sentido nesse horizonte (post [92]).

A Bíblia Hebraica não proíbe outras formas de homoerotismo masculino, não-penetrativas, e isso é objeto apenas de proibição rabínica posterior com o intuito de evitar o sexo anal que seria o ato realmente proibido (post [57]). Contudo, ao tempo de Jesus não é claro se tal tradição adicional tivesse sido estabelecida, e a questão desses outros atos parece praticamente irrelevante na tradição àquele tempo (post [88]). A Bíblia Hebraica não proíbe a lesbianidade (post [58]), e a proibição rabínica a respeito é muito posterior, medieval, não existindo ao tempo de Jesus (post [59]).

Se tivessem a informação e conhecimento que temos hoje sobre a questão da orientação sexual, é provável que os sábios do Talmude adotassem uma Halacha (Jurisprudência Judaica) mais inclusiva na questão homoerótica (post [88]), e talvez mesmo os escritores do próprio livro de Levítico fossem judeus reformistas hoje (post [90]).

Assim, é PLENAMENTE POSSÍVEL dentro do mundo da Bíblia Hebraica e da Tradição Oral Judaica, não só acomodar a homossexualidade, mas também apreciar como esses outros horizontes da sexualidade humana podem contribuir ativamente para uma melhor comunidade judaica e para a plena realização da experiência humana em toda a sua diversidade (post [91]).

Tudo isso também se aplica a Jesus como retratado nos Evangelhos.

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.