[75] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 22- Pena de Morte? Não é o Que Você Pensa!

A Estrela da Redenção
6 min readDec 1, 2020

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Agora que já analisamos exaustivamente a questão homoerótica na Bíblia Hebraica e na Tradição Judaica, incluindo o escopo da proibição de Levítico e suas razões, parece que nos faltou dizer uma coisa.

Ok, já entendi que a proibição de Levítico diz respeito exclusivamente ao sexo anal entre 2 homens. Já entendi que quaisquer proibições para além disso são desenvolvimentos rabínicos, não bíblicos. entendi as razões que levaram Levítico a conter aquela proibição. Já entendi que a Bíblia não fala da homossexualidade no mundo atual, mas sim de como ela era praticada e/ou concebida no mundo antigo. Já entendi mesmo que é possível que algumas narrativas bíblicas tratem indiretamente do homoerotismo em contexto afetivo de forma positiva (respeitadas certas considerações).

Mas…. e a pena de morte que o livro de Levítico estabelece para os homossexuais???

“Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram toevah [tabu]; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.” (Levítico 20:13)

Bem, de fato existe esse trecho mas… provavelmente ele não estabelece o que você está pensando.

Em primeiro lugar, o verso não diz respeito a NENHUM ato que não seja: sexo anal entre 2 homens. Quaisquer outro ato homoerótico masculino que não seja esse, e todo e qualquer ato homoerótico feminino, NÃO estão sujeitos a essa penalização. Isso por si só já reduz bastante o escopo que as pessoas, geralmente cristãs ou ateias, acham que esse texto diz mas que ele NÃO diz.

Em segundo lugar, temos de lembrar que grande parte da penalização à morte prevista na Torá é hipotética, teórica. A Lei Judaica é muito garantista, como expliquei num dos primeiros posts deste blog, o post [5]. Vamos recapitular alguns pontos que expliquei naquele post.

Os sábios do Talmude reconheciam uma série de garantias e procedimentos a serem cumpridos antes de penalizar alguém à morte. Alguns exemplos (com base em Makkot 6b; Mishnah Sanhedrin 1; Sanhedrin 17a):

1) Duas testemunhas precisavam presenciar o ato (Deuteronômio 17:6), então confissão (seja forçada ou voluntária) não era admitida como prova;

2) Aquele que cometia o ato devia ser avisado no momento que o ato era passível de pena de morte, e só seria punível com a morte se ainda assim fizesse o ato;

3) As testemunhas seguiam alguns requisitos para serem confiáveis, elas tinham de conseguir uma ver a outra no momento do ocorrido, seu testemunho não poderia se contradizer mesmo em detalhes menores;

4) O tribunal precisava ser composto por pelo menos 23 juízes;

5) A condenação à morte precisava de uma maioria qualificada no tribunal (13 votos);

6) Caso o tribunal fosse unânime na decisão de forma imediata, todos os juízes a favor da morte, o acusado era absolvido; [a ideia aqui é que um tribunal não podia condenar no mesmo dia do procedimento de ouvir as testemunhas, era preciso uma suspensão de uma noite porque algum juiz poderia pensar em algum motivo para absolver o acusado; então, se todos já estavam convencidos de sua culpa, não haveria possibilidade desse contraditório]

7) O tribunal poderia dar uma nova chance ao acusado (tipo um benefício de ‘reú primário’ hoje em dia) e apenas se ele repetisse o mesmo ato seria condenado à morte.

Ou seja. o entendimento rabínico tornou quase impossível aplicar a pena de morte, os antigos sábios judaicos eram muito indispostos a aplicar esse tipo de regra MESMO QUE ela estivesse autorizada nas próprias Escrituras.

Havia mesmo um dito segundo o qual um tribunal que condena UM ÚNICO homem a cada SETENTA ANOS era um tribunal assassino (Mishnah Makkot 1). Vejam: isso não é uma interpretação moderna. É um dito de DOIS MILÊNIOS ATRÁS, por rabinos da própria época de Jesus.

Um caso interessante para entender isso é a possibilidade bíblica de condenar à morte um ‘filho teimoso e rebelde” (Deuteronômio 21:18–21). O que os sábios do Talmude concluíram? NUNCA HOUVE E NUNCA HAVERÁ o ‘filho teimoso e rebelde’ descrito nessa passagem! Isso é apenas uma possibilidade teórica que nos dá a oportunidade de ganharmos uma recompensa por estudá-la na Torá. (Sanhedrin 71a) Lembrem: não é interpretação moderna, mas de DOIS MILÊNIOS ATRÁS.

Por conta de todo esse panorama, na prática não existe nenhum registro de que Levítico 20:13 tenha sido aplicado. Nos quase 2.500 anos de existência desse trecho conforme o método acadêmico (ou 3.300 anos para quem crê na autoria mosaica da Torá), os judeus NUNCA aplicaram tal penalização à morte. De fato a pena existe ali, mas sua aplicação é teórica apenas.

Em terceiro lugar, haver normas dentro da Jurisprudência Judaica (Halacha) que sejam meramente hipotéticas ou teóricas não é um bug ou defeito da Lei Judaica, mas sim uma feature, um aspecto proposital do pensamento judaico rabínico.

No livro “Halakhic Man” (1984), o existencialista judaico e Rabino Ortodoxo Joseph B. Soloveitchik confere uma interpretação existencial para a Halacha. Um dos aspectos proeminentes dessa visão é o de que a Halacha produz significado no contexto judaico MESMO quando várias normas dela são discutidas e pensadas mas NUNCA aplicadas. Ainda mais forte: discutidas e pensadas de maneira que NUNCA seja sequer possível aplicá-las. Mais para frente neste blog farei posts sobre essa perspectiva dentro do existencialismo judaico.

“Natural Encounters”, Rene Magritte, 1945.

Em quarto lugar, sim, claro que é incômodo haver essa previsão, mesmo que hipotética e teórica, à pena de morte no caso de sexo anal entre 2 homens. Mas agora que o leitor fez toda aquela jornada comigo pra entender o teor da proibição original nos posts anteriores da série, fica muito mais claro porque existe essa previsão da pena de morte aqui.

Se você ler os versos circundantes a pena de morte também é prevista para outras relações sexuais penetrativas proibidas, no caso, várias de teor incestuoso, adúlterio, de zoofilia e casar com uma mãe e sua filha (Levítico 20: 10–21). Da mesma forma, o livro de Levítico também prevê a pena de morte para certas práticas idólatras (Levítico 20:2 e 27).

(Lembrando: o livro de Levítico aplicava algumas dessas penalidades, seja hipoteticamente ou não, EXCLUSIVAMENTE para judeus e para a categoria de ‘estrangeiros residentes [na terra do antigo Israel]’, não aplicando-a fora do povo de Israel)

Então, o tratamento de Levítico ao caso do sexo anal entre 2 homens não é diferente de como o texto de Levítico trata quaisquer relação sexual penetrativa com alguém proibido, ele simplesmente atribui a previsão da pena de morte de forma geral a todos (excetuando alguns casos de incesto que sofreriam a punição à morte pelas mãos dos Céus, isto é, pelo próprio Deus).

Isso fica claro quando olhamos para a relação sexual durante a menstruação. Mesmo também aparecendo nessa lista de atos sexuais ilícitos, não recebe pena de morte porque a relação em questão, mesmo que proibida, ocorre com uma pessoa permitida (p.ex. a esposa). MAS ainda assim é previsto para ela uma punição à morte pelas mãos dos Céus, o que também ocorre para transgressões como… comer sangue de animal ou certa gordura proibida! (Levítico 7:23–27)

E como já disse no post [64], o texto de Levítico em seus trechos sobre o sexo anal entre 2 homens tem como o propósito primário evitar a prostituição ritual. Daí que, sendo práticas idólatras dos povos circundantes puníveis com a morte, esse ato associado à idolatria desses povos o seria também. Note que o texto em questão usa o termo ‘toevah’, que como já disse no post [63] também funciona para sinalizar exatamente essa associação com a idolatria.

Então… na verdade:

  1. Nem toda previsão à pena de morte na Torá (seja por um tribunal humano ou mesmo pelo tribunal divino) tem aplicação prática.
  2. O objetivo da (previsão da) penalização à morte na Torá no geral tem um caráter mais pedagógico do que literal. (Pode parecer estranho, mas é simplesmente uma diferença CULTURAL a ser entendida no mínimo com sensibilidade antropológica)
  3. Garantias processuais visavam impedir a real realização de uma execução à morte mesmo nos casos de aplicação prática.

Por tudo isso, a previsão de Levítico 20:13 na prática não prevê o que parece prever.

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.

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