[120] A Árvore da Vida e a Mãe da Vida (no Éden e fora dele)

A Estrela da Redenção
8 min readMay 22, 2021

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Desde o post [113], tenho feito diversos esclarecimentos e elaborações sobre a narrativa do Jardim do Éden no início do livro de Gênesis. Mas o leitor ainda pode estar intrigado por eu ainda não ter comentado algo sobre a Árvore da Vida. Qual seria o sentido dela?

Considere o que acontece após Deus ter repreendido Adão, Eva e a serpente:

“Então disse o Senhor Deus: “Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele também tome do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre”.
Por isso o Senhor Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado.
Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida.” (Gênesis 3:22–24)

Algumas pessoas entendem que isso significaria que a Árvore da Vida daria àquele que comesse do seu fruto a “Vida Eterna”, mas na verdade tal conceito não aparece nunca na Bíblia Hebraica exceto por uma menção ambígua no livro de Daniel.

Note que a Árvore da Vida é Árvore da… “Vida”. O texto de Gênesis não fala que essa seja a Árvore da Vida Eterna, um atributo dado de uma vez por todas. Contudo, essa árvore de fato permitiria perpetuar indefinidamente a vida humana.

Os comentaristas judaicos clássicos deixam isso bem claro: a Árvore da Vida tinha um fruto que prolongava e estendia a vida (Kimhi/Radak; Ramban/Nahmanides; Ibn Ezra).

Ibn Ezra inclusive chama atenção ao fato de que o termo traduzido no verso como “para sempre”, a saber, “leolam” (לְעֹלָֽם) é usado em diversos contextos de uma maneira que não significa literalmente “para sempre” (numa conotação de eternidade), por exemplo:

“Então seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta, ou ao umbral da porta, e seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre (לְעֹלָֽם).” (Êxodo 21:6)

“Porém Ana não subiu; mas disse a seu marido: Quando o menino for desmamado, então o levarei, para que apareça perante o Senhor, e lá fique para sempre (עוֹלָֽם).” (1 Samuel 1:22)

Ou seja, alguém pode fazer tal coisa “para sempre” e ainda morrer, porque trata-se de uma perpetuidade, algo contínuo ao longo da vida inteira da pessoa até que essa vida chegue ao fim. Um exemplo disso em português seria a expressão “prisão perpétua”, que dura até a pessoa morrer. Por isso Ramban dá duas opções aqui para o que poderia acontecer: ou nunca morrer ou não morreria no seu tempo determinado.

Então o ser humano já era mortal antes de comer do fruto proibido. Ele não tinha “vida eterna”. Contudo, tendo uma alimentação excelente com os frutos das diversas árvores do Jardim e ainda tendo acesso ao fruto da Árvore da Vida, a tendência é que ele vivesse por um tempo extremamente longo para nós e talvez mesmo indefinidamente.

As genealogias de Adão e seus descendentes até Noé em Gênesis 5 deixam claro o quão longas teriam sido as vidas dos primeiros humanos retratados nessas narrativas iniciais do livro de Gênesis, mesmo fora do Éden, se estendendo por séculos (Adão morre com 960 anos e o recordista é Matusalém, com 969 anos). Então poderíamos imaginar que uma vida com acesso à Árvore da Vida poderia ser medida em termos de milênios ou dezenas de milênios.

Assim, para que o decreto de que os seres humanos morreriam num “tempo-limite” fosse satisfeito (“tu és pó e ao pó voltarás”; Gênesis 3:19), o mais óbvio seria tirar o acesso dos humanos à Árvore da Vida, pois comer desse outro fruto permitiria “burlar” a chegada da morte por muito tempo (“para sempre”).

Deus poderia ter determinado uma nova mistvá, “não comerás da Árvore da Vida”, contudo, considerando o que aconteceu com a mistvá de não comer da outra árvore, certamente essa também seria descumprida (Radak; Hizkuni).

Agora um aspecto interessante aqui que pode passar desapercebido é o paralelismo entre a “Árvore da Vida” e “Eva”. Para isso é necessário ler no hebraico: etz hachaim (עֵ֣ץ הַֽחַיִּ֔ים) e chavah (חַוָּ֑ה), respectivamente.

“Eva” na verdade é “Chavah” ou “Chava” (חַוָּ֑ה) e “vida” é “chaim” (חַיִּ֔ים). De fato, o nome “Chavah” (חַוָּ֑ה) é uma variante para “chaiah” (חַיָה), apenas trocando o “iud” por um “vav”, uma substituição muito comum no hebraico. A mesma substituição ocorre entre o Sagrado Nome Divino, YHWH (יהוה‎), e o verbo “[eu] serei” (אֶֽהְיֶ֖ה), permutando também outra das letras (o alef inicial ao invés de um iud no verbo indica o sujeito “eu” tensionando o verbo).

E o que é “chaia” do que o nome da primeira mulher, “Chava”, é derivado? “Chaia” significa “vivente”, usado para designar seres vivos animais, o que inclui os humanos: “alma vivente”, nefesh chaia (נֶ֣פֶשׁ חַיָּ֑ה).

“Chava”, “chaia” e “[da] vida” (em “Árvore da Vida”) todos são ligados à palavra “vida” (חי‎). Ou seja, existem duas “doadoras” (ou “fontes”) de vida (“chai”) aqui: a Árvore da “chaim” e a mulher “Chava”.

Chava/Eva e a Árvore da Vida estão conectadas na medida em que é pela mulher que a barreira da morte individual (não mais driblada pelo acesso à Árvore da Vida) será transcendida pela continuidade familiar e/ou comunitária, aqui representada pela “Mãe de Toda a Vida” (אֵ֥ם כָּל־חָֽי).

“E chamou Adão o nome de sua mulher Eva (חַוָּ֑ה); porquanto era a Mãe de Toda a Vida (אֵ֥ם כָּל־חָֽי).” (Gênesis 3:20)

Esse ponto é reforçado pela localização dessa narrativa dentro da primeira parashá da Torá. A estrutura literária dessa parte é a seguinte:

  1. Deus determina que os humanos irão morrer por terem comido do fruto proibido (Gênesis 3:17–19);
  2. A mulher recebe o nome de Chava, por ser a Mãe da Vida (Gênesis 3:20);
  3. O acesso à Árvore da Vida é barrado (Gênesis 3:21–24);
  4. Chava dá à luz Caim, e em seguida Abel (Gênesis 4:1–2).

Tal alocação do nome Chava entre o “do pó viestes e ao pó voltarás” e o “não se pode permitir que comam do fruto da árvore da vida” não é coincidência! Essa justaposição narrativa faz um contraste entre aquilo que foi tirado — a Árvore da Vida que permitiria a continuidade indefinida de vidas individuais — e aquilo que substitui o que foi tirado — Chava/Eva, a Mãe da Vida, que permitiu a continuidade indefinida da humanidade como um todo, e assim indiretamente a de uma vida individual na de seus descendentes ou na da comunidade pelas sucessivas gerações — .

“The Tree of Life” [A Árvore da Vida], Gustav Klimt, 1905.

E ainda poderíamos traçar outro paralelo com uma noção posterior: quando falamos em ancestralidade, nosso costume é falar em uma “árvore genealógica”. Para a narrativa do Gênesis, a árvore genealógica da humanidade como um todo é traçada até “Chava”. Ou seja, “Chava”, a Mãe da Vida, é de certa forma Árvore da Vida nesse sentido! Todos estamos em algum dos galhos de “Chava”…

Outro ponto interessante em termos de intertextualidade dentro da Torá (no sentido dos 5 livros da Aliança, os 5 primeiros livros bíblicos) é que foi dado ao povo de Israel (e, por extensão, à humanidade) um substituto para a Árvore da Vida, no sentido de prolongamento da vida: a própria Torá, no sentido dos preceitos a serem cumpridos pelo povo judeu e da prática da justiça por toda a humanidade.

Sendo que a própria Torá indica uma alimentação especial, por meio de uma série de mitzvot alimentares dadas ao povo judeu (que como eu disse no post [114] servem de bom paralelo para a narrativa do Éden também centrada numa mistvá alimentar).

Muitos trechos seja dentro da Torá em si como nas demais coletâneas da Bíblia Hebraica deixam claro que a Torá e a prática da justiça (justiça social!) retificam a perda da Árvore da Vida:

“Vês aqui, hoje te tenho proposto a vida e o bem, e a morte e o mal;
Porquanto te ordeno hoje que ames ao Senhor teu Deus, que andes nos seus caminhos, e que guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para que vivas, e te multipliques, e o Senhor teu Deus te abençoe na terra a qual entras a possuir.” (Deuteronômio 30:15,16)

O temor do Senhor aumenta os dias, mas os perversos terão os anos da vida abreviados.” (Provérbios 10:27)

“Jamais me esquecerei dos teus preceitos, pois é por meio deles que preservas a minha vida.” (Salmos 119:93)

“Os tesouros da impiedade de nada aproveitam; mas a justiça livra da morte.” (Provérbios 10:2)

O livro de Provérbios é o que vai mais longe nessa direção (como notado também pelo comentarista judaico Gersonides). Nesse livro a Torá e os atos de justiça são chamados diretamente de “uma árvore da vida”, etz hayim!

[A Sabedoria (da Torá)] É árvore de vida para os que dela tomam, e são bem-aventurados todos os que a retêm.” (Provérbios 3:18)

O fruto do justo é árvore de vida, e o que ganha almas é sábio.” (Provérbios 11:30)

“A esperança adiada desfalece o coração, mas o desejo atendido é árvore de vida.” (Provérbios 13:12)

A língua benigna é árvore de vida, mas a perversidade nela deprime o espírito.” (Provérbios 15:4)

De fato, a narrativa do Éden pode ser entendida como a explicação que a própria Torá dá para o fato dela mesma ter sido dada aos humanos (Gersonides). Lendo a narrativa toda metaforicamente, quando Adão e Eva optaram por descumprir a mistvá que lhes fora dada de não comer do fruto proibido (uma forma bem simples de Torá), foi naquele mesmo momento que eles perderam a Árvore da Vida, isto é, despiram-se da Torá (nesse caso, aquele preceito) que lhes fora dada. Mas Deus não deixaria a humanidade sem a Torá, como toda a história que virá depois irá demonstrar.

Não à toa a entrega plena da Torá (uma Árvore da Vida) ocorre após a libertação do povo judeu da opressão no Egito. Como mostrei em posts anteriores, a serpente do Éden remete ao Egito porque a serpente era um símbolo da autoridade faraônica ([113]) e o afogamento do Faraó do êxodo remete à promessa de pisar a serpente na cabeça ([114]). Assim, após a libertação da opressão sob Faraó (uma “grande serpente”), no Monte Sinai uma Árvore da Vida foi entregue novamente à humanidade mesmo fora do Éden, desfazendo a obra da “serpente” que tinha levado a humanidade a perder o acesso à Árvore da Vida dentro do Éden.

Considerando que a Torá em seu sentido pleno funda um tipo de comunidade humana que almeja a justiça em todas as suas relações, e deu à luz a um “povo eterno”, vemos a conexão entre a Torá e Chava enquanto formas na qual a morte individual é transcendida por meio de uma vida transindividual, pela qual persistimos após nossas mortes nas contribuições positivas que fizemos à vida dos demais repercutindo por gerações à frente.

Nesse sentido, a Bíblia Hebraica favorece um pensamento de longuíssimo prazo, em prol das gerações futuras, rumo à redenção final da humanidadee à redenção final do próprio Deus!

Assim, a Torá prolonga a vida, não somente num sentido direto de proporcionar mais aniversários a um indivíduo, mas sim especialmente num sentido indireto, de prolongar nossas contribuições à vida, de intensificar qualidade e valor de nossa existência pela realização da justiça nas comunidades humanas, da perspectiva da eternidade.

A Torá ensina a viver. Ela é vida.

Para finalizar, cabe destacar que “Sefer Etz Hayim” é o nome de uma importante obra de Kaballah, uma coleção de ensinamentos do Arizal (R. Isaac Luria) compilada pelo seu discípulo, R. Chaim Vital, com isso contribuindo à sistematização da Kaballah Luriânica. Se fôssemos para Kaballah, que investiga o sentido secreto da Torá Escrita e Oral, muito mais poderia ser dito a respeito da Árvore da Vida. Contudo, aqui apenas faço remissão ao fato de que tudo o que foi dito pode ser ainda mais expandido dentro desse espectro do “mistério”….

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Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.