[165] A Nova Direita Gospel NÃO segue a Bíblia

A Estrela da Redenção
13 min readNov 20, 2021

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Nos últimos posts tenho feito diversos apontamentos críticos ao que denomino de Evangelismo Gospel, conforme definição apresentada no post [159]. Agora chegou o momento de falar do braço político dessa tendência, a Nova Direita Gospel.

Antes cabe esclarecer que, tal como o Evangelismo Gospel, a Nova Direita Gospel não é um sinônimo para todos os evangélicos, e nem mesmo para todos os pentecostais ou neopentecostais. O Evangelismo Gospel é uma tendência muito comum no meio evangélico pentecostal e neopentecostal, mas existem dissidentes e críticos a esse estado de coisas nessas igrejas. Da mesma forma, essa Nova Direita Evangélica, ou como a prefiro chamar aqui, Nova Direita Gospel, é comum nesse mesmo meio evangélico dominado pelo Evangelismo Gospel, mas existem dissidentes e críticos a esse movimento político nessas igrejas. Por isso opto por chamar essa Nova Direita de ‘Gospel’, para deixar mais claro que nem todos os evangélicos e/ou lideranças evangélicas corroboram com tal tendência política.

Vamos relembrar o que é o Evangelismo Gospel: Primeiro, é um fenômeno que ocorre entre os protestantes “evangelicais” ou “evangélicos”. Em geral, são pentecostais e neopentecostais, mas também pegando uma parte das igrejas batistas (as mais reavivalistas). Portanto, não entram aqui católicos, ortodoxos, luteranos, anglicanos, adventistas, etc. Segundo, a tendência em questão é a de formar um meio ‘gospel’ baseado em um grande número de denominações e ministérios autônomos entre si, cujo foco é a maximização do número de pessoas dentro dessas igrejas. O meio ‘gospel’ gira em torno do evangelismo ou evangelização: atrair pessoas para o meio ‘gospel’ redunda na opção de escolher uma entre um grande número de igrejas possíveis que concorrem entre si (Assembleia de Deus, Universal, Mundial, Quadrangular, Batistas de vários tipos, etc.) ou, se preferir, apenas acompanhar o ministério de algum Pastor-Figurão específico (ex. Silas Malafaia, Edir Macedo etc.). Uma marca registrada desse tipo de marketing religioso é o televangelismo, o evangelismo por meio da TV. Além disso, podemos citar a pregação altamente sentimentalista, induzindo um estado emocionalmente carregado no ouvinte, e a ênfase em “milagres”.

A Nova Direita Gospel é o braço político* do Evangelismo Gospel, uma dobradinha que surgiu nos Estados Unidos e agora está com força total no Brasil, representada pela Bancada Evangélica no Congresso Nacional e pelo atual Presidente da República (apesar deste ter identificações religiosas ambíguas: católico, mas foi batizado por um pastor evangélico no Rio Jordão há alguns anos; não obstante, ainda assim se considera católico…).

O foco da Nova Direita Gospel reside em ‘legislar moralidade’ ou ‘pauta de costumes’: a legislação do país deveria seguir a moralidade como definida pelas igrejas conservadoras, rejeitando o aborto, a educação sexual, as pautas LGBT, a descriminalização das drogas etc. Além disso, esse grupo político também busca maiores benefícios fiscais e financeiros para as suas igrejas (o extremo disso foi, durante a pandemia, o lobby para que os cultos continuassem funcionando mesmo em meio à pandemia), bem como parcerias com o poder público em projetos diversos.

Tais pautas políticas se ligam ao Evangelismo Gospel, porque seu objetivo maior é ‘salvar almas’, ganhando-as para Jesus e tirando-as do domínio de Satanás. Então: 1) se a moralidade gospel conservadora estiver à frente da lei do país, isso vai colaborar para ‘salvar almas’; 2) se o poder público vai apoiar as igrejas direta ou indiretamente com certos benefícios, as igrejas terão mais capacidade de ‘salvar almas’. Vamos examinar o raciocínio mais profundamente.

A ideia não é que a legislação moralizante vai salvar alguém, porque seria só ‘aceitando Jesus’ que uma pessoa pode se salvar. Mas a legislação moralizante ajudaria a que as almas ainda não ‘alcançadas pelo evangelho’ não se perdessem ‘tanto’ assim ‘pro mundo’, pois as condutas que colocariam uma pessoa sob o domínio de Satã (nessa visão: sexo gay, aborto, uso recreativo de drogas, etc.) seriam desaprovadas legalmente ou pelo menos não seriam ‘incentivadas’.

De fato, grande parte da retórica da Nova Direita Gospel é que uma maior liberalização jurídica significa que o Poder Público ‘incentiva’ condutas ‘anti-cristãs’, e mesmo que o Poder Público ‘perseguiria’ os cristãos (i. e. evangélicos conservadores) por pensarem diferente. Então, se a escola ensinar que é normal que algumas pessoas sejam homossexuais e que sua orientação sexual deve ser respeitada, isso significa que a escola está incentivando as crianças a se tornarem homossexuais, e perseguindo os cristãos que querem apenas preservar a infância….

E já aproveitando a deixa, também nisso a legislação moralizante ajudaria a ‘salvar almas’: as das crianças. As igrejas não somente teriam liberdade plena para ensinar as crianças e adolescentes dentro de assuntos delicados como sexualidade e drogas, como não haveria nenhum contrapeso social a isso, seja da escola ou do governo. Se é a igreja que ensina, não é doutrinação, mas se for a escola que ensina, aí é doutrinação, basicamente.

Como se pode observar, o grande problema aqui não é discutir exatamente quais os limites da educação sexual na infância ou adolescência, qual o papel da escola relativamente ao dos pais, etc. Tudo isso pode e deve ser discutido numa democracia constitucional como a nossa. Mas a Nova Direita Gospel traz para a política uma retórica de ‘satanização dos adversários’ e de ‘paranóia de perseguição anti-cristã’ que é altamente danosa para o debate público saudável, além de profundamente delusional!

Créditos da imagem: “Evangelism isn’t just for the Evangelicals: Progressive Christians have good news to impart, not pre-packaged solutions, says Miranda Threlfall-Holmes” (2011).

Outro ponto relevante também é que a Nova Direita Gospel confunde o moral com o jurídico. Você pode perfeitamente acreditar que certas condutas sejam imorais, e ainda assim entender que o Estado não deve interferir com tais condutas, justamente porque cabe às pessoas voluntariamente ou não seguirem a moralidade (da mesma forma que voluntariamente podem ou não ‘aceitar Jesus’).

Como o pensador político americano Albert Jay Nock bem ilustrou: “O melhor argumento prático em favor da liberdade é que ela parece a única condição que permite que qualquer espécie de fibra moral verdadeira se desenvolva. Tudo mais já foi exaustivamente tentado. Insistindo contra a razão e a experiência, tentamos a lei, a obrigação, autoritarismos de vários tipos, e o resultado não foi nada de que possamos nos orgulhar.” (“On Doing the Right Thing”, tradução do Ordem Livre) Outra recomendação de leitura aqui é o excelente “Vícios Não São Crimes”, de Lysander Spooner.

Dentro de questões mais específicas, o jurista Ronald Dworkin, em seu livro “Domínio da Vida”, reverte um argumento comum contra a legalização do aborto, mostrando como é o respeito pelo valor da vida que pesa em favor da legalização do aborto, dado o pluralismo religioso e político contemporâneo. Diferentes grupos e pessoas na sociedade têm diferentes posições existenciais e religiosas sobre a vida humana. Para algumas pessoas, o valor da vida reside mais em sua perpetuação física, em que todo feto concebido venha a nascer, não importa o que aconteça depois, sendo uma ofensa a tal valor que a gravidez seja interrompida. Para outras pessoas, o valor da vida reside mais na garantia de sua dignidade, em que o feto concebido possa nascer em condições adequadas e dignas para que se desenvolva bem depois, sendo uma ofensa a tal valor que a gravidez não possa ser interrompida se a pessoa mais afetada (a própria grávida) decidir nesse sentido depois de séria consideração e ponderação dessa prospectiva (dentro de certo prazo-limite para tanto).

Portanto, Dworkin argumenta que, com base na LIBERDADE DE RELIGIÃO, é melhor que o aborto seja permitido, justamente para que cada pessoa (e especialmente cada grávida) possa decidir por si mesmo sobre essa questão profundamente valorativa e, caso queira, tente convencer as demais VOLUNTARIAMENTE.

Agora, já entrando na questão que talvez mais deixe o leitor curioso (ok, mas a Nova Direita Gospel não é bíblica?), já podemos emendar dessa própria questão do aborto. Bem, se pegarmos pela própria Bíblia, aborto NÃO É assassinato, como já expliquei no post [42]. A Lei Judaica, presente na Torá, não penaliza o aborto voluntário, e trata um aborto induzido involuntariamente por outrem como uma lesão corporal contra a mãe, devendo ser indenizada financeiramente. Então, já nesse ponto a Nova Direita Gospel começa contraditória ao registro bíblico (com exceção de Edir Macedo, uma vez que ele notoriamente já defendeu a legalização do aborto).

A questão das drogas também é outro bom exemplo dessa discrepância, como já discuti no post [135]. A Bíblia não tem nenhuma indicação a respeito de proibir drogas. A Lei Judaica presente na Torá não penaliza o uso de drogas. Existem nela alertas contra o abuso de drogas (mais especificamente, o abuso do álcool), mas isso ocorre justamente na esfera do aconselhamento prático, não de uma penalização jurídica.

E notem: a questão aqui não é que a Bíblia incentive a abortar ou usar drogas recreativas, ou que ela entenda que tais coisas sejam sempre corretas etc. O ponto não é esse, como em breve ficará melhor explicado (entrando na maneira como a Lei Judaica funciona, uma vez que esse é o único parâmetro jurídico-institucional realmente encontrado na Bíblia, mas profundamente mal entendido fora do seu contexto original judaico). Mas volta aquilo que eu disse antes: permitir algo juridicamente não significa necessariamente que esse algo seja moralmente bom.

Agora, alguns argumentariam que pecados sexuais podem ser criminalizados, uma vez que a Lei Judaica na Torá não penalizava o adultério e a homossexualidade? Mas também isso está equivocado…..

Em primeiro lugar, não existe penalização para a homossexualidade em geral na Torá, mas apenas para o sexo anal entre homens (esse ato em específico, NÃO CABENDO interpretação extensiva; veja post [56]). Em segundo lugar, não existe a penalização para o adultério em geral (no entendimento mais comum desse termo) na Torá, mas apenas para o sexo penetrativo entre uma mulher casada e um homem (esse ato em específico, NÃO CABENDO interpretação extensiva).

O fato de que esses atos em específico eram penalizados (enquanto atos que nós veríamos como próximos desses não eram) já deveria despertar o ‘alerta vermelho’ de que a razão para essa previsão de penalização não era tanto moralizante ou espiritualizante (como seria hoje para a Nova Direita Gospel), mas sim visava objetivos mais práticos na época: no caso do sexo anal entre homens, desincentivar a prostituição ritual masculina e preservar a igualdade entre as pessoas do sexo masculino (não entendeu o que essas coisas tem a ver com sexo anal entre homens? leia meus posts [61]-[64]-[68]-[71]-[72] para entender essa questão no contexto da antiguidade); no caso do adultério entre a mulher casada e um homem por meio de uma relação sexual penetrativa, evitar o risco de filhos ‘bastardos’ (e até mais: evitar a simples suspeita disso), evitando assim também a confusão patrimonial entre linhagens de homens diferentes.

Mas a questão não para por aqui. As exigências que a Lei Judaica prevê para a aplicação dessa penalização ao adultério da mulher casada com um homem praticado por meio de uma relação penetrativa, e ao sexo anal entre homens, são muito rigorosas. Entre essas exigências, para que a penalização possa ocorrer, é necessário que as 2 testemunhas que presenciem a relação sexual em questão avisem seus participantes de que, caso continuem, eles se sujeitam à pena de morte. É apenas se os participantes não interromperem a relação sexual mesmo assim que eles poderiam ser penalizados! Isso sem contar os demais requisitos, que comentei nos posts [5]-[75]. Portanto, ao contrário das aparências, a probabilidade real dessas penalizações específicas serem aplicadas era muito baixa — e isso era PROPOSITAL! Uma ‘feature’ do sistema, não um ‘bug’. Inclusive há casos, como o da penalização do filho rebelde contumaz, que os sábios judaicos chegam a afirmar que não somente NUNCA FOI APLICADA, como também NUNCA SERIA APLICÁVEL.

(Se quiser entender mais sobre a real questão da homossexualidade na Bíblia, sob lentes judaicas e acadêmicas, analisando tanto a Bíblia Hebraica e o judaísmo como o Novo Testamento e o cristianismo, veja minha série sobre homossexualidade aqui do blog, cuja lista de textos está no post [-1]; você certamente irá se surpreender!)

Podemos, é claro, multiplicar os exemplos dessas inadequações entre a Nova Direita Gospel e a Bíblia. Como falei no post [12], há muitas razões TRADICIONAIS para pautas PROGRESSISTAS, e essa identificação do ‘tradicional’ com o ‘reacionarismo’ da Nova Direita Fundamentalista é um erro sob o ponto de vista bíblico e sob o ponto de vista histórico. Em muitos momentos, aquilo que chamamos de ‘progressista’ está muito mais próximo do ‘tradicional’ do que aquilo que entendemos por ‘conservador’, por mais incrível que isso possa parecer!

Com o propósito de dar o fio condutor que justifica esses exemplos (ao invés de ter que discutir exemplo por exemplo, algo que alongaria excessivamente o presente texto), finalizarei o texto explicando a razão sistemática pela qual a Nova Direita Gospel diverge do texto bíblico, em especial da Bíblia Hebraica (vulgarmente conhecida como ‘Velho’ Testamento), uma vez que é apenas essa parte que traz indicações de tipo jurídico: a Lei Judaica, cujo entendimento deve ser feito por meio de fontes VERDADEIRAMENTE TRADICIONAIS, isto é, aquelas da tradição judaico-rabínica milenar.

Em primeiro lugar, o objetivo da Lei Judaica (e da Bíblia Hebraica em geral) NÃO é ‘salvar almas’, como já explicado nos posts [28]-[29]. Ao contrário, o foco da Lei Judaica e da Bíblia Hebraica é a realização comunitária da justiça social e de uma boa vida NESSE MUNDO. A real questão é como estabelecer JUSTIÇA para os injustiçados e AMOR entre as pessoas de modo a se construir uma convivência comunitária ótima NESTE mundo.

A redenção e a libertação divinas sempre são entendidas de modo material, terreno, sociopolítico, ‘carnal’, ‘corporificado’. O que é redenção? É a libertação de condições opressivas, é o fim da guerra e da opressão social, é ter alimento em abundância para todos e condições que promovam a saúde humana. (Veja posts [149]-[158]-[148]) A própria Torá tem como centro a narrativa de uma revolução sociopolítica pela qual um povo escravizado foi libertado de seus opressores e iniciou sua caminhada na direção do auto-governo e da liberdade.

“No Êxodo 1–24, uma revolta religiosa e outra social vão claramente de mãos dadas. Um povo decide não mais aceitar passivamente sua difícil condição social porque ouviu dizer que um Deus, anteriormente desconhecido para ele (ao menos pelo seu verdadeiro nome), quer, em breve tempo, mudar a posição social desse povo. […] diante de nós, no Êxodo 1–24, temos um relato (embora muito deteriorado) da primeira revolução sociopolítica da história do mundo com base em ideologia.” (DUS, 1975, p. 28)

E note: a Lei Judaica em seus próprios termos é vigente e obrigatória apenas para o povo judeu. Em nenhum momento da Bíblia Hebraica você verá os judeus tentando forçar outros povos a aceitarem suas leis. Mas podemos encontrar ali a denúncia profética aos malfeitos cometidos em outros povos sim. E qual o parâmetro usado nesses casos extrajudaicos? A justiça, a honestidade, o trato para com os vulneráveis, o repúdio ao imperialismo e à tirania… (veja posts [37]-[39]-[40]) Ou seja, aspectos universais sobre como tratar as pessoas de forma justa e equitativa. Dentro da tradição judaica, isso é codificado na discussão das ‘Leis da Noé’, cujo preceito positivo é o de que as nações estabeleçam tribunais para estabelecimento da justiça nas relações humanas.

Em segundo lugar, como já explicado no post [52], a Lei Judaica NÃO é uma legislação caída do céu fixa duma vez para sempre, mas sim uma jurisprudência comunitária dinâmica que pode ser e foi mudada diversas vezes.

A determinação da Halacha [Normativa Jurisprudencial de Casos Concretos] segue um processo de raciocínio intensamente dialético como é facilmente observável por pegar qualquer página do Talmude para ler. O Talmude basicamente contém MILHARES de sábios (em um intervalo de tempo que vai do 2º século antes da Era Comum — antes mesmo do nascimento de Jesus — até o 6º século da nossa era) debatendo entre si qual seria a decisão aplicável a cada caso para estabelecer as Halachot pertinentes. Como é possível observar, é uma linha do tempo que leva séculos de desenvolvimento jurisprudencial resultando no Talmude (sendo que depois disso ainda houve novos desenvolvimentos e mudanças nas eras subsequentes, agora pelos estudiosos do próprio Talmude).

A coisa toda é tão complexa que existe mesmo um ramo de pesquisa em lógica denominado de “Lógica Talmúdica”, que estuda o tipo de raciocínio lógico utilizado dentro da tradição judaica talmúdica.

O pulo do gato aqui reside na palavra ‘lógica’. A lógica em questão não se trata de algum parâmetro especial, sobrenatural, reservado àqueles que tem fé em certos dogmas, mas é simplesmente o raciocínio normal, cotidiano, prático, ‘secular’, que você utilizaria em QUALQUER OUTRA ÁREA da vida.

De uma vez por todas, entenda: a Torá NÃO é uma legislação caída do céu que o divino decidiu tudo de antemão, mas SIM a fonte de uma jurisprudência que precisa ser desenvolvida pelo RACIOCÍNIO HUMANO. (Veja posts [107]-[110]-[111])

Não à toa as fontes rabínicas e a Bíblia Hebraica foram peças-chaves na revolução política SECULAR MODERNA, como demonstrado pelo historiador Eric Nelson em seu livro “The Hebrew Republic: Jewish Sources and the Transformation of European Political Thought” (2011).

Além disso, as fontes rabínicas reconhecem de pronto que a Lei Judaica como forma de governança comunitária não é o mesmo que uma moralidade individual absoluta. É possível que alguém esteja tecnicamente dentro dos contornos da Lei Judaica e ainda assim seja uma pessoa ruim. Existe uma expressão para isso: “Naval biR’shut haTorah, uma pessoa sórdida dentro dos limites legalmente permissíveis da Torá. Então, a diferença entre o que é legalmente permitido/liberado e o que é moralmente bom/melhor já se encontrava presente nas próprias discussões judaicas tradicionais…. (Essa questão foi relevante para um debate entre Rambam/Maimônides e Nachmanides/Ramban em plena Idade Média)

Assim, o problema não é que um cristão tenha a Bíblia como motivação para trazer impacto social positivo, mas sim querer usar parâmetros ‘especiais’, ‘baseados em fé’, para regular e avaliar a vida pública. No post [163] dei o exemplo do Adventismo como exemplo (geralmente) positivo: a Igreja Adventista do Sétimo Dia fomenta uma série de instituições com impacto social significativo para a Educação e a Saúde de uma forma alinhada aos parâmetros gerais (não-religiosos) utilizados dentro dessas áreas (com a infeliz exceção da controvérsia a respeito do criacionismo científico), o que é exatamente o contrário daquilo que é feito pelo Evangelismo Gospel e pela Nova Direita Gospel (veja os exemplos que trouxe naquele post, que elucidam muito bem o contraste gritante!).

Nisso o adventismo segue a linha de pensamento da Bíblia Hebraica, o que não me parece coincidência pois se trata da organização eclesiástica cristã contemporânea que mais sistematicamente lê o Novo Testamento à Luz da Bíblia Hebraica, como explicado nos posts [163]-[164]. Um correto entendimento da Bíblia Hebraica (e do Novo Testamento por conseguinte) claramente vai na contramão da Nova Direita Gospel! (No próximo post, irei inclusive comentar como o adventismo no meio cristão-protestante traz um insight interessante diretamente contra a Nova Direita Gospel)

Portanto, essa contaminação do político e do jurídico ‘pela fé’ simplesmente NÃO é bíblica, mesmo que a própria Bíblia Hebraica seja um livro profundamente sociopolítico, dada sua mensagem consistentemente anti-opressão!

A Nova Direita Gospel simplesmente abdica de utilizar o raciocínio humano normal, em prol de uma apreciação dogmática simplista dos dilemas sociais em termos de ‘Jesus x Satanás’. Com isso a Nova Direita Gospel DETURPA a própria Bíblia, trazendo desonra às Escrituras.

*Nem todos os políticos cuja religião pessoal é a evangélica fazem parte da Nova Direita Gospel. Um exemplo é a própria Marina Silva, evangélica, mas cuja orientação política é frontalmente divergente da Nova Direita Gospel. Seu programa de 2014 tinha: união civil homossexual (apenas a palavra ‘casamento’ retirada), direitos de adoção homossexual, Lei João Nery para identidade de gênero. O programa mais LGBT-friendly entre os candidatos que à época tinham mais chance de ganhar, e um dos mais overall. E: mulher, classe trabalhadora, nortista/amazônida, ascendência indígena (e atuante dos direitos indígenas). Poderíamos ter tido um governo LGBT-friendly de uma evangélica. Mas acabamos em 2018 com Bolsonaro,usando e abusando da linguagem bíblica para uma agenda reacionária e agora, com a pandemia, simplesmente insana….

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Written by A Estrela da Redenção

Releitura existencial da Bíblia Hebraica via existencialismo judaico + tradição judaica e pesquisa bíblica acadêmica. Doutor em Filosofia Valdenor Brito Jr.